Coisa julgada entre estabilidade e mutabilidade: um diálogo possível entre Liebman e o direito processual civil brasileiro contemporâneo

10/12/2025 às 11:03

Resumo:


  • A coisa julgada no direito brasileiro contemporâneo está passando por transformações profundas devido à consolidação de precedentes vinculantes, ao fortalecimento do controle de constitucionalidade e à adoção de teorias flexibilizadoras.

  • O retorno às lições clássicas de Enrico Tullio Liebman pode oferecer fundamentos conceituais para orientar o debate atual sobre a coisa julgada, destacando a importância da estabilidade e adaptabilidade no sistema jurídico.

  • A articulação entre estabilidade e adaptabilidade da coisa julgada deve ser sustentada mediante critérios claros, como a mutabilidade decorrente de fundamentos normativos específicos e a preservação da distinção entre decisão declaratória e constitutiva.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Coisa Julgada Entre Estabilidade e Mutabilidade: Um Diálogo Possível entre Liebman e o Direito Processual Civil Brasileiro Contemporâneo

Resumo

A coisa julgada, enquanto instituto destinado a estabilizar a declaração judicial proferida sobre o mérito, encontra-se no centro de uma profunda transformação no direito brasileiro contemporâneo. A consolidação dos precedentes vinculantes, o fortalecimento do controle de constitucionalidade e a progressiva adoção de teorias flexibilizadoras têm tensionado seus limites tradicionais. Neste artigo, propõe-se um retorno metodológico às lições clássicas de Enrico Tullio Liebman, cuja teoria da sentença, da preclusão e da coisa julgada oferece fundamentos conceituais aptos a orientar um debate atualmente marcado por fluidez argumentativa. Argumenta-se que a dogmática processual não demanda retorno ao imobilismo, mas exige rigor na identificação das hipóteses em que a mutabilidade é juridicamente possível. Assim, demonstra-se que a articulação entre estabilidade e adaptabilidade somente se sustenta mediante a recuperação da arquitetura conceitual originalmente delineada por Liebman.

Palavras-chave: coisa julgada; preclusão; Liebman; segurança jurídica; precedentes; constitucionalismo; sentença declaratória.

Abstract

Res judicata, as an institute aimed at stabilizing judicial declarations on the merits, stands at the core of a major transformation in contemporary Brazilian procedural law. The institutionalization of binding precedents, the strengthening of constitutional review, and the emergence of flexibilizing theories have stressed its traditional boundaries. This article proposes a methodological return to Enrico Tullio Liebman’s classical framework, whose theory of judgments, preclusion, and res judicata provides conceptual tools capable of grounding a debate increasingly marked by doctrinal looseness. It is argued that contemporary dogmatics does not require rigidity but demands analytical precision in identifying the legally permissible avenues for mutability. Thus, it is shown that the interplay between stability and adaptability depends on recovering the conceptual architecture originally outlined by Liebman.

Keywords: res judicata; preclusion; Liebman; legal certainty; precedents; constitutional review; declaratory judgments.

Sumário: 1. Introdução — 2. A matriz clássica de Liebman — 3. A flexibilização contemporânea — 4. Estabilidade, adaptabilidade e rigor dogmático — 5. Conclusão — Referências.

1. Introdução

A coisa julgada sempre foi compreendida como um dos pilares da estrutura jurisdicional, garantindo segurança jurídica, previsibilidade e encerramento definitivo dos litígios. No entanto, o direito processual brasileiro contemporâneo experimenta uma reconfiguração profunda desse instituto, marcada pela convivência tensa entre estabilidade e mutabilidade. A ascensão do constitucionalismo, a multiplicação de técnicas de precedentes e a crescente aceitação de teorias flexibilizantes vêm desafiando os contornos tradicionais da coisa julgada, a ponto de questionar se ainda subsiste uma formulação dogmática coerente para o tema.

Nesse contexto, a reflexão teórica parece ter se afastado das distinções fundamentais que estruturavam o instituto na tradição clássica. As lições de Enrico Tullio Liebman — em especial aquelas expostas em suas aulas proferidas na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1944 — oferecem um ponto de partida privilegiado para recolocar a discussão sobre bases analíticas sólidas1. O retorno a Liebman não se apresenta como exercício de arqueologia dogmática, mas como método para recuperar categorias conceituais fundamentais ao funcionamento do processo civil.

A hipótese defendida neste artigo é que a dogmática contemporânea, ao flexibilizar a coisa julgada sem reconstruir adequadamente sua lógica interna, produz tensões sistêmicas incompatíveis com a função jurisdicional. Propõe-se, assim, um diálogo entre a concepção clássica — centrada na natureza declaratória da sentença e na distinção entre preclusão e res judicata — e as exigências interpretativas do constitucionalismo e dos precedentes vinculantes.

2. A matriz clássica de Liebman

Liebman separa, com precisão, a preclusão da coisa julgada. A primeira diz respeito à perda de faculdades processuais ao longo do iter procedimental; a segunda, à estabilização externa da decisão de mérito2. Enquanto a preclusão organiza o processo, garantindo sua marcha contínua, a coisa julgada protege o resultado final, impedindo sua rediscussão fora do processo em que foi proferida.

O autor demonstra que decisões interlocutórias jamais produzem coisa julgada material — ainda que possam vincular o próprio processo pela via da preclusão. A distinção entre eficácia interna e eficácia externa é central na arquitetura liebmaniana e constitui, até hoje, um dos critérios mais sólidos para determinar os limites da imutabilidade.

Outro elemento fundamental de Liebman é sua defesa da natureza declaratória da sentença. Ao decidir a lide, o juiz não cria o direito material, mas declara sua existência3. Mesmo a sentença condenatória, ao autorizar a execução, é precedida de um momento declarativo. A coisa julgada, portanto, não confere existência ao direito, mas estabiliza a declaração judicial que o reconheceu.

Esse ponto é crucial para refutar teses contemporâneas segundo as quais a mutabilidade interpretativa dos tribunais superiores exigiria que a coisa julgada acompanhasse as mudanças de orientação. Se a sentença é declaratória, o estado jurídico reconhecido não depende da evolução jurisprudencial posterior; depende, isto sim, da estabilidade institucional da declaração.

Liebman estabelece que a imutabilidade incide sobre aquilo que constitui o mérito da causa e que foi objeto de declaração judicial. Trata-se de um limite tanto objetivo quanto subjetivo: a decisão estabilizada vincula o que foi decidido e vincula aqueles que participaram da relação processual, respeitando os contornos formais do contraditório.

Essa delimitação impede que se estenda a coisa julgada para além do que constitui seu objeto natural — movimento que parte da doutrina contemporânea tem promovido de modo pouco criterioso.

3. A flexibilização contemporânea

O direito brasileiro dos últimos vinte anos assistiu à expansão das teorias relativizadoras. A ideia de “coisa julgada inconstitucional”, por exemplo, ganhou prestígio ao sustentar que nenhuma decisão estabilizada poderia prevalecer contra o texto constitucional. Também surgiram teorias como “coisa julgada dinâmica”, “coisa julgada progressiva” e “coisa julgada instável”, todas defendendo graus variáveis de permeabilidade às mudanças jurisprudenciais.

A consolidação dos precedentes vinculantes pelo CPC/2015 intensificou a tendência de atribuir às decisões dos tribunais superiores um poder retroativo capaz de reconfigurar situações jurídicas estabilizadas. Em alguns casos, sustentou-se que a decisão transitada em julgado contrária ao precedente posterior estaria automaticamente invalidada — tese incompatível com a proteção constitucional da coisa julgada.

A jurisprudência, por sua vez, tem oscilado. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 885, fixou entendimento no sentido de que a alteração jurisprudencial não autoriza, por si só, a rescisão da coisa julgada4. Em sentido semelhante, o STJ reconhece que a ação rescisória continua a ser o instrumento adequado para desconstituir o julgado — e que mudanças jurisprudenciais são insuficientes para justificar a rescisão5.

No entanto, algumas teses — como a inexigibilidade do título judicial fundado em norma posteriormente declarada inconstitucional — introduzem pontos de tensão. Embora previstas no CPC, tais hipóteses precisam ser lidas restritivamente, sob pena de subverter a própria função estabilizadora da jurisdição.

4. Estabilidade, adaptabilidade e rigor dogmático

A leitura integrada de Liebman e das exigências contemporâneas sugere que a solução não está nem no imobilismo nem na fluidez interpretativa irrestrita. A coisa julgada pode — e em certos casos deve — conviver com instrumentos de mutabilidade controlada, desde que observados os seguintes critérios:

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  1. A mutabilidade deve decorrer de fundamento normativo específico, como o controle concentrado de constitucionalidade ou a ação rescisória.

  2. A coisa julgada não pode ser afetada pela mera mudança jurisprudencial, salvo hipóteses excepcionalíssimas em que a decisão transitada viole frontalmente norma constitucional de aplicabilidade imediata.

  3. A força vinculante dos precedentes opera prospectivamente, devendo orientar decisões futuras, e não desconstituir sentenças estabilizadas.

  4. A distinção entre decisão declaratória e constitutiva deve ser preservada, evitando que se imponha à sentença caráter criativo incompatível com a teoria clássico-dogmática.

Esse ponto de vista não implica desprezo pela adaptação institucional. Ao contrário: reconhece que um sistema jurídico complexo exige mecanismos de correção. O que se rejeita é a flexibilização argumentativa que, ao não se subordinar a critérios conceituais claros, contribui para a erosão da confiança no sistema judicial.

5. Conclusão

A crise contemporânea da coisa julgada decorre, em grande medida, da perda de rigor na distinção entre estabilidade e revisibilidade. As categorias clássicas, tal como formuladas por Liebman, oferecem instrumentos conceituais que permanecem indispensáveis para compreender e estruturar o debate atual. A convivência entre coisa julgada, constitucionalismo e precedentes vinculantes é possível — mas somente quando ancorada em dogmática sólida.

Recuperar a arquitetura conceitual liebmaniana não significa retornar ao passado, mas reconstruir os fundamentos que permitem ao processo civil cumprir sua função institucional: produzir decisões estáveis, previsíveis e legitimadas pelo devido processo legal. A verdadeira síntese entre tradição e modernidade não está na flexibilização ilimitada, mas no equilíbrio metódico entre permanência e adaptação.

Notas

  1. As lições de Liebman aqui citadas baseiam-se no manuscrito “Decisão e coisa julgada”, proferido em 1944 na Faculdade de Direito de São Paulo.

  2. LIEBMAN, Enrico Tullio. Decisão e coisa julgada. Notas taquigráficas, 1944, pp. 8–12.

  3. Id., pp. 28–33.

  4. STF, RE 949.297/CE (Tema 885 da repercussão geral), Rel. Min. Roberto Barroso, j. 03.02.2022.

  5. STJ, AR 2.250/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 14.03.2018.

Referências

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Decisão e coisa julgada. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 40, p. 203–270, 1945.
Disponível em: https://revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66047. Acesso em: 10 dez. 2025.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da ação rescisória. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Recurso Extraordinário 949.297/CE, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 03 fev. 2022 (Tema 885 da repercussão geral).

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Ação Rescisória 2.250/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 14 mar. 2018.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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