Crise no fornecimento de energia elétrica e limites do modelo regulatório das concessões públicas: reflexões jurídicas a partir do caso Enel
Resumo
Os recentes episódios de interrupção prolongada no fornecimento de energia elétrica na Região Metropolitana de São Paulo reacenderam o debate sobre a eficácia do modelo jurídico-regulatório das concessões de serviços públicos essenciais. A partir do caso envolvendo a concessionária Enel, o presente artigo propõe uma análise técnico-dogmática dos limites da responsabilização do concessionário, da efetividade das sanções administrativas e das medidas extremas de intervenção estatal, como a caducidade da concessão. O estudo também enfrenta o impacto dos eventos climáticos extremos sobre as premissas tradicionais do Direito Administrativo regulatório, sustentando que a recorrência desses fenômenos exige a revisão estrutural dos critérios de planejamento, investimento e fiscalização. Conclui-se que a superação das crises reiteradas na prestação do serviço público demanda menos respostas conjunturais e mais aperfeiçoamento institucional do modelo regulatório, orientado à resiliência, à continuidade do serviço e à segurança jurídica.
Palavras-chave: serviço público essencial; concessão administrativa; regulação; energia elétrica; eventos climáticos extremos.
Abstract
Recent episodes of prolonged power outages in the Metropolitan Region of São Paulo have revived the debate on the effectiveness of the legal and regulatory framework governing public service concessions. Drawing on the case involving Enel, this article provides a doctrinal analysis of the limits of concessionaire liability, the effectiveness of administrative sanctions, and the use of extraordinary measures such as state intervention and concession forfeiture. The study also addresses the impact of extreme climate events on the traditional foundations of regulatory administrative law, arguing that the increasing recurrence of such phenomena requires a structural reassessment of planning, investment, and oversight criteria. It concludes that overcoming recurring crises in essential public services depends less on reactive measures and more on institutional refinement aimed at resilience, service continuity, and legal certainty.
Keywords: essential public services; public concessions; regulation; electric power distribution; extreme climate events.
Sumário: 1. Serviço público essencial e regime jurídico da concessão de energia elétrica. 2. Falha operacional, inadimplemento regulatório e responsabilidade do concessionário. 3. Multas administrativas e judicialização: limites da eficácia sancionatória. 4. Caducidade da concessão e intervenção estatal: pressupostos e riscos jurídicos. 5. Eventos climáticos extremos e a revisão das bases tradicionais da regulação. 6. Considerações finais: entre a crítica conjuntural e o aperfeiçoamento institucional
1. Serviço público essencial e regime jurídico da concessão de energia elétrica
A energia elétrica ocupa posição central no sistema jurídico-administrativo brasileiro, não apenas por sua relevância econômica, mas sobretudo por sua indispensabilidade à dignidade da vida contemporânea. A Constituição Federal de 1988, ao estruturar o modelo de prestação dos serviços públicos, atribuiu ao Estado a titularidade desses serviços, admitindo sua execução indireta mediante concessão, permissão ou autorização, sempre sob regime jurídico de direito público e com observância estrita do interesse coletivo.
No caso da energia elétrica, essa essencialidade se revela de modo ainda mais sensível. Trata-se de serviço cuja interrupção prolongada não gera apenas desconforto, mas impacta diretamente direitos fundamentais conexos, como saúde, segurança, trabalho, mobilidade urbana e atividade econômica. Por essa razão, o ordenamento jurídico brasileiro historicamente submeteu a distribuição de energia elétrica a um modelo de concessão altamente regulado, no qual a liberdade empresarial é mitigada pela imposição de deveres contínuos de adequação, eficiência e continuidade.
A concessão de serviço público não se confunde, portanto, com uma simples relação contratual privada. Ainda que formalizada por meio de contrato administrativo, ela se estrutura como uma relação jurídica complexa e dinâmica, em que o concessionário assume riscos empresariais relevantes, mas também se beneficia de prerrogativas específicas, como a exploração exclusiva da atividade em determinada área e a remuneração via tarifa regulada. Em contrapartida, submete-se a padrões técnicos, indicadores de desempenho e mecanismos de fiscalização definidos pelo poder concedente e pela agência reguladora.
No setor elétrico, essa regulação é exercida de forma centralizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a quem compete estabelecer parâmetros de qualidade do serviço, autorizar investimentos considerados prudentes, aplicar sanções e, em situações extremas, recomendar medidas mais gravosas, como a intervenção ou a declaração de caducidade da concessão. O modelo parte da premissa de que a continuidade do serviço é a regra, e a interrupção, a exceção juridicamente tolerável apenas em hipóteses justificadas e temporárias.
É justamente nesse ponto que os episódios recentes de interrupções prolongadas no fornecimento de energia, especialmente em grandes centros urbanos, tensionam o regime jurídico tradicional da concessão. A recorrência das falhas, aliada à sua duração e extensão territorial, desafia a noção clássica de excepcionalidade e impõe uma reflexão mais profunda sobre os limites do modelo vigente. Quando milhões de unidades consumidoras permanecem sem energia por períodos incompatíveis com os padrões regulatórios, a questão deixa de ser meramente operacional e passa a adquirir relevo jurídico-institucional.
Nesse contexto, torna-se necessário distinguir, com rigor técnico, aquilo que pode ser atribuído a eventos externos imprevisíveis daquilo que se insere no âmbito de responsabilidade do concessionário e do próprio arranjo regulatório. A concessão de um serviço público essencial pressupõe, por definição, capacidade de resposta a situações adversas, ainda que extraordinárias. A discussão jurídica relevante não reside em negar a ocorrência de fenômenos climáticos extremos, mas em examinar se o regime normativo e regulatório vigente incorporou, de forma adequada, esses riscos ao planejamento, à fiscalização e à estrutura de incentivos do setor.
Assim, a análise do regime jurídico da concessão de energia elétrica revela que os problemas observados não podem ser compreendidos apenas como falhas isoladas de execução contratual. Eles convidam a uma reflexão mais ampla sobre a atualidade das premissas regulatórias, sobre o equilíbrio entre risco empresarial e interesse público e sobre a necessidade de evolução do Direito Administrativo diante de novos desafios sistêmicos. É a partir dessa base que se pode avançar, com serenidade e técnica, para a análise da responsabilidade do concessionário e da eficácia dos instrumentos de controle estatal.
2. Falha operacional, inadimplemento regulatório e responsabilidade do concessionário
A responsabilização do concessionário de serviço público exige, no Direito Administrativo, uma análise que vá além da simples constatação de falhas pontuais na execução do serviço. O regime jurídico da concessão impõe ao particular um dever permanente de adequação, que não se esgota no cumprimento formal do contrato, mas se projeta na observância contínua dos padrões de qualidade, eficiência e continuidade definidos pela regulação setorial.
No setor elétrico, a atuação do concessionário é avaliada não apenas pelo restabelecimento eventual do serviço, mas por indicadores objetivos de desempenho, como tempo médio de atendimento a ocorrências emergenciais, frequência e duração das interrupções e capacidade de resposta a situações críticas. Esses parâmetros não são meras recomendações técnicas, mas obrigações juridicamente exigíveis, cuja inobservância reiterada caracteriza inadimplemento regulatório, ainda que o serviço não seja interrompido de forma absoluta.
Os dados divulgados pela agência reguladora evidenciam um cenário de deterioração progressiva desses indicadores ao longo dos últimos anos, com aumento relevante do tempo médio de atendimento e episódios de interrupções prolongadas que extrapolam os limites usualmente tolerados pelo regime jurídico da concessão. Tal quadro sugere que as falhas não se restringem a eventos isolados, mas revelam uma fragilidade estrutural na prestação do serviço, especialmente em contextos de maior estresse da rede.
É nesse ponto que se impõe distinguir, com precisão dogmática, a falha operacional episódica do inadimplemento regulatório continuado. A primeira pode decorrer de circunstâncias excepcionais, imprevisíveis ou inevitáveis, e não afasta, por si só, a legitimidade da concessão. Já o segundo traduz uma incapacidade persistente de atender aos padrões mínimos exigidos, comprometendo a confiança institucional que fundamenta a delegação do serviço público ao particular.
A responsabilidade do concessionário, nesse contexto, não se limita à recomposição material dos danos causados aos usuários, mas assume também uma dimensão institucional. O descumprimento reiterado das metas regulatórias afeta a própria racionalidade do modelo de concessão, pois fragiliza a premissa de que a gestão privada, sob fiscalização estatal, é capaz de assegurar maior eficiência na prestação do serviço. Quando essa premissa é colocada em xeque, o debate jurídico se desloca do plano indenizatório para o plano estrutural.
Não se trata, contudo, de ignorar a ocorrência de eventos climáticos extremos ou de desconsiderar sua relevância jurídica. Fenômenos dessa natureza desafiam, de fato, a capacidade de resposta de qualquer infraestrutura urbana. O ponto central reside em verificar se tais eventos funcionam como causas excludentes de responsabilidade ou se, ao contrário, integram o conjunto de riscos que devem ser progressivamente internalizados pelo concessionário, especialmente quando se tornam recorrentes e previsíveis em determinado território.
Sob essa perspectiva, a insistência em atribuir as falhas exclusivamente a fatores externos pode obscurecer a análise jurídica mais relevante: a de saber se houve adequado planejamento, investimento e manutenção compatíveis com o risco assumido. A concessão de um serviço público essencial não pressupõe imunidade a eventos adversos, mas sim a existência de estratégias técnicas e operacionais capazes de mitigar seus efeitos e reduzir o impacto sobre a coletividade.
Dessa forma, a responsabilidade do concessionário deve ser examinada não apenas à luz do evento específico que desencadeou a interrupção do serviço, mas sobretudo a partir de sua conduta ao longo do tempo. A persistência de falhas, o descumprimento de metas regulatórias e a insuficiência de investimentos revelam um quadro que ultrapassa a esfera da contingência e ingressa no campo do inadimplemento estrutural, com relevantes implicações jurídicas. É a partir dessa constatação que se torna possível avaliar, nos próximos tópicos, a eficácia das sanções administrativas e os limites da resposta estatal diante de crises reiteradas na prestação de serviços públicos essenciais.
3. Multas administrativas e judicialização: limites da eficácia sancionatória
As sanções administrativas constituem um dos principais instrumentos de que dispõe o Estado para induzir comportamentos desejáveis por parte dos concessionários de serviços públicos. No modelo regulatório brasileiro, as multas aplicadas pelas agências reguladoras não possuem apenas caráter punitivo, mas também função pedagógica e preventiva, orientada a corrigir condutas e preservar a adequada prestação do serviço ao longo do tempo.
No setor elétrico, esse mecanismo assume relevância particular. A imposição de multas por descumprimento de metas de qualidade, continuidade e eficiência busca reforçar a premissa de que a exploração econômica da concessão está condicionada ao atendimento do interesse público. Em tese, a sanção financeira deve funcionar como um desincentivo suficientemente robusto para tornar antieconômico o comportamento inadequado ou negligente.
Entretanto, quando se observa a dinâmica concreta da aplicação dessas sanções, emerge um problema estrutural: a dissociação entre a multa formalmente aplicada e a sanção efetivamente suportada pelo concessionário. O elevado volume de penalidades acumuladas, contrastado com o baixo percentual efetivamente recolhido, revela um cenário em que a sanção administrativa perde parte significativa de sua eficácia prática.
Essa disfunção está intimamente ligada ao fenômeno da judicialização da regulação. O acesso ao Poder Judiciário, legítimo em um Estado de Direito, passa a ser utilizado de forma recorrente como estratégia de postergação ou neutralização das sanções impostas pela agência reguladora. Recursos administrativos sucessivos, seguidos de ações judiciais e medidas liminares, produzem um efeito suspensivo prolongado que, na prática, dilui o impacto da penalidade ao longo do tempo.
Do ponto de vista jurídico-institucional, essa realidade suscita uma questão sensível: até que ponto o modelo sancionatório vigente consegue cumprir sua função regulatória em ambientes altamente judicializados? Quando a multa deixa de representar um custo imediato e previsível, ela tende a ser incorporada ao cálculo econômico do concessionário como um risco gerenciável, e não como um fator efetivo de correção de conduta.
Não se trata de defender a supressão de garantias processuais ou a mitigação do controle judicial sobre os atos administrativos. O problema reside em outra dimensão: a assimetria entre o tempo da regulação e o tempo do processo judicial. Enquanto a prestação do serviço público e seus impactos sobre a coletividade são imediatos, a solução definitiva das controvérsias judiciais pode levar anos. Nesse intervalo, a sanção perde seu potencial de indução comportamental e a agência reguladora vê enfraquecida sua capacidade de atuação.
Esse cenário também repercute sobre a credibilidade do próprio sistema regulatório. A reiterada aplicação de multas que não se convertem em consequências práticas tangíveis tende a produzir um efeito paradoxal: quanto maior o número de sanções, menor a percepção de sua efetividade. O resultado é uma erosão gradual da autoridade regulatória, com reflexos diretos sobre a confiança dos usuários e sobre a legitimidade institucional do modelo de concessão.
Assim, a análise das multas administrativas no contexto da concessão de energia elétrica revela um limite importante da resposta estatal às falhas reiteradas na prestação do serviço. Mais do que um problema de valor ou quantidade de penalidades, trata-se de uma questão estrutural relacionada à capacidade do sistema jurídico de assegurar a efetividade das decisões regulatórias. Essa constatação conduz, de modo quase natural, ao debate seguinte: quando os instrumentos sancionatórios ordinários se mostram insuficientes, quais são os pressupostos, os limites e os riscos das medidas mais gravosas, como a intervenção estatal ou a própria caducidade da concessão?
4. Caducidade da concessão e intervenção estatal: pressupostos e riscos jurídicos
A caducidade da concessão figura, no Direito Administrativo brasileiro, como a mais grave das sanções aplicáveis ao concessionário de serviço público. Trata-se de medida extrema, prevista para hipóteses de inadimplemento relevante e persistente, em que se reconhece a ruptura do vínculo de confiança que legitima a delegação da atividade estatal ao particular. Por essa razão, seu manejo exige não apenas fundamento legal expresso, mas também cautela institucional e densidade probatória elevada.
No regime jurídico das concessões, a caducidade não se confunde com mera punição. Ela opera como instrumento de proteção do interesse público, destinado a restabelecer a adequada prestação do serviço quando os mecanismos ordinários de correção — fiscalização, recomendações técnicas e sanções administrativas — se revelam insuficientes. Ainda assim, sua decretação pressupõe a observância de procedimento rigoroso, com ampla defesa, contraditório e demonstração inequívoca de que a continuidade da concessão se tornou incompatível com os objetivos públicos que a justificam.
É justamente nesse ponto que o debate contemporâneo ganha complexidade. A recorrência de falhas relevantes na prestação do serviço, associada ao histórico de descumprimento de metas regulatórias e à ineficácia prática das sanções financeiras, tende a alimentar pressões políticas e sociais pela adoção de soluções drásticas. No entanto, o Direito Administrativo não se orienta por impulsos conjunturais, mas por critérios de racionalidade institucional e segurança jurídica.
A intervenção estatal ou a declaração de caducidade, embora juridicamente possíveis, não são soluções neutras. Elas produzem efeitos sistêmicos relevantes, tanto para o setor regulado quanto para a própria Administração Pública. A substituição abrupta do concessionário, especialmente em serviços públicos essenciais e altamente complexos, como a distribuição de energia elétrica em grandes centros urbanos, envolve riscos operacionais significativos e pode, paradoxalmente, agravar a instabilidade que se pretende resolver.
Além disso, a caducidade suscita questões sensíveis relacionadas à responsabilidade estatal, à indenização de investimentos não amortizados e à continuidade do serviço durante o período de transição. O poder concedente, ao reassumir temporariamente a gestão ou ao promover nova licitação, passa a suportar riscos técnicos e financeiros que, até então, estavam alocados ao particular. Trata-se de um deslocamento relevante de responsabilidades, que não pode ser ignorado na análise jurídica da medida.
Outro aspecto que merece atenção diz respeito ao papel das instituições de controle. Recomendações oriundas de órgãos como tribunais de contas e decisões judiciais que suspendem ou condicionam processos de renovação antecipada da concessão refletem um ambiente de crescente escrutínio institucional. Esse movimento, embora legítimo, reforça a necessidade de que qualquer medida extrema seja adotada com base em critérios técnicos claros, sob pena de se converter em resposta simbólica a crises conjunturais.
Nesse contexto, a discussão sobre caducidade e intervenção estatal deve ser conduzida com equilíbrio. Não se trata de afastar, por princípio, a aplicação desses instrumentos, mas de reconhecer que sua eficácia depende de um diagnóstico preciso das causas do problema. Se as falhas decorrem exclusivamente de inadimplemento estrutural do concessionário, a medida extrema pode se justificar. Se, porém, elas revelam limitações do próprio desenho regulatório ou a inadequação das premissas originais da concessão diante de novos riscos sistêmicos, a caducidade pode se mostrar solução juridicamente correta, porém institucionalmente insuficiente.
Dessa forma, a análise da caducidade da concessão evidencia que o desafio jurídico não está apenas em escolher entre manter ou extinguir o vínculo concessório, mas em compreender se o modelo regulatório vigente é capaz de responder, de forma eficiente e sustentável, às transformações do contexto fático. Essa indagação conduz, inevitavelmente, ao exame do impacto dos eventos climáticos extremos sobre as bases tradicionais do Direito Administrativo e da regulação de serviços públicos, tema que será enfrentado no próximo tópico.
5. Eventos climáticos extremos e a revisão das bases tradicionais da regulação
A intensificação de eventos climáticos extremos impõe ao Direito Administrativo e à regulação dos serviços públicos um desafio que já não pode ser tratado como episódico ou excepcional. Fenômenos que, no passado, eram classificados como ocorrências raras passaram a integrar o horizonte ordinário de riscos enfrentados por infraestruturas urbanas complexas, especialmente em grandes centros metropolitanos. Essa mudança de contexto fático exige uma revisão crítica das premissas tradicionais sobre as quais se estruturaram as concessões de longo prazo.
O modelo clássico de concessão administrativa foi concebido com base em uma lógica de relativa estabilidade ambiental e previsibilidade operacional. A alocação de riscos entre poder concedente e concessionário pressupunha que eventos extraordinários seriam, por definição, raros e não recorrentes, o que justificava sua classificação como força maior ou caso fortuito, com efeitos limitados sobre a responsabilidade do prestador do serviço. Essa lógica, entretanto, mostra-se progressivamente inadequada diante da repetição e da intensidade dos eventos climáticos observados nos últimos anos.
No setor elétrico, essa inadequação torna-se particularmente evidente. A distribuição de energia depende de redes físicas extensas, expostas a intempéries, e de um planejamento de longo prazo que envolve investimentos vultosos, submetidos à autorização e ao enquadramento regulatório. Quando tempestades severas, vendavais e ciclones extratropicais deixam de ser exceção e passam a constituir uma variável recorrente, o argumento da imprevisibilidade perde densidade jurídica e passa a exigir reavaliação.
A questão central, do ponto de vista dogmático, não é negar a ocorrência de eventos extraordinários, mas definir em que medida tais eventos permanecem juridicamente externos ao risco da concessão. Se o fenômeno climático se repete com frequência suficiente para integrar o cenário ordinário de operação, sua invocação como excludente de responsabilidade torna-se progressivamente menos convincente. Nesse contexto, o risco climático passa a demandar internalização regulatória, seja por meio de exigências técnicas mais rigorosas, seja pela revisão dos critérios de investimentos considerados prudentes.
Esse movimento impõe desafios relevantes à atuação das agências reguladoras. A regulação tradicional, orientada por parâmetros históricos e projeções lineares, precisa dialogar com um ambiente marcado por incerteza estrutural. A definição do que constitui investimento necessário, eficiente e economicamente justificável passa a depender de avaliações mais complexas, que considerem não apenas a média histórica de eventos, mas cenários de estresse e resiliência da infraestrutura.
Ao mesmo tempo, a incorporação desses novos riscos não pode ocorrer de forma dissociada da lógica tarifária e da proteção dos usuários. Investimentos destinados à adaptação climática possuem custos elevados e efeitos graduais, o que exige decisões regulatórias transparentes, fundamentadas e tecnicamente justificadas. A simples transferência integral desses custos ao consumidor, sem adequada ponderação, comprometeria a legitimidade social da regulação e poderia gerar novas assimetrias.
Dessa forma, os eventos climáticos extremos funcionam como um elemento catalisador de transformação do Direito Administrativo regulatório. Eles expõem os limites de um modelo concebido para um ambiente menos volátil e exigem uma abordagem mais dinâmica, capaz de conciliar continuidade do serviço, segurança jurídica e adaptação institucional. A crise no fornecimento de energia elétrica, nesse sentido, não revela apenas falhas de execução ou fiscalização, mas evidencia a necessidade de atualização das categorias jurídicas que sustentam a própria ideia de concessão.
É a partir dessa constatação que se pode alcançar uma conclusão mais equilibrada: os desafios enfrentados pela prestação de serviços públicos essenciais, em um contexto de mudanças climáticas, não se resolvem exclusivamente pela substituição do concessionário ou pelo endurecimento pontual das sanções. Eles demandam uma releitura estrutural da regulação, orientada à resiliência, à prevenção e à sustentabilidade institucional do modelo concessório.
6. Considerações finais: entre a crítica conjuntural e o aperfeiçoamento institucional
A análise do caso envolvendo a prestação do serviço de distribuição de energia elétrica em São Paulo permite extrair conclusões que ultrapassam o episódio específico que lhe deu origem. Mais do que uma sucessão de falhas operacionais ou de decisões administrativas controvertidas, o quadro examinado revela tensões estruturais do modelo jurídico-regulatório das concessões de serviços públicos essenciais, especialmente quando submetido a um ambiente de crescente instabilidade climática e complexidade urbana.
A responsabilização do concessionário, embora juridicamente necessária diante de inadimplementos relevantes e reiterados, não se mostra suficiente, por si só, para enfrentar os desafios evidenciados. Da mesma forma, a intensificação das sanções administrativas ou a simples invocação de medidas extremas, como a caducidade da concessão, tendem a oferecer respostas mais simbólicas do que efetivamente estruturantes, se não acompanhadas de um diagnóstico institucional mais profundo.
O que se observa é a emergência de um descompasso entre premissas regulatórias concebidas em um contexto de maior previsibilidade e uma realidade marcada por riscos sistêmicos recorrentes. Eventos climáticos extremos, antes tratados como exceções juridicamente toleráveis, passam a integrar o horizonte ordinário de operação das concessões, exigindo adaptações normativas, técnicas e regulatórias. Ignorar essa transformação implica perpetuar um modelo que responde de forma reativa a crises sucessivas, sem capacidade real de prevenção ou resiliência.
Nesse cenário, o papel da regulação assume centralidade renovada. Cabe às agências reguladoras, em diálogo com o poder concedente e os órgãos de controle, promover a atualização dos critérios de planejamento, investimento e fiscalização, de modo a compatibilizar continuidade do serviço, segurança jurídica e proteção do usuário. Essa tarefa não se resume à revisão de contratos ou à aplicação de penalidades, mas envolve a redefinição das bases sobre as quais se estrutura a própria delegação do serviço público.
Assim, a principal contribuição jurídica extraída do caso analisado reside na constatação de que crises reiteradas na prestação de serviços públicos essenciais não devem ser compreendidas apenas como falhas individuais, mas como oportunidades para o aperfeiçoamento institucional do modelo regulatório. A superação desses desafios demanda menos soluções imediatistas e mais compromisso com a construção de um Direito Administrativo capaz de dialogar com a complexidade do presente, sem renunciar à técnica, à racionalidade e à estabilidade que lhe são próprias.
Referências
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