Controle Algorítmico das Contratações Públicas no Brasil

15/12/2025 às 15:33

Resumo:


  • O artigo analisa a integração de sistemas de inteligência artificial no controle das contratações públicas no Brasil, destacando a ferramenta ALICE desenvolvida pela CGU.

  • Essa integração representa uma mudança do paradigma repressivo para um modelo baseado em gestão de riscos, sem diminuir a importância da decisão humana e da responsabilidade do gestor público.

  • O uso da inteligência artificial no controle preventivo das compras públicas visa antecipar riscos, prevenir irregularidades e fortalecer a governança, mas deve respeitar princípios como legalidade, motivação dos atos administrativos e transparência.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Controle Algorítmico das Contratações Públicas no Brasil

Resumo

O presente artigo analisa a incorporação de sistemas de inteligência artificial ao controle das contratações públicas brasileiras, a partir da integração do sistema ALICE, desenvolvido pela Controladoria-Geral da União, ao ambiente Comprasgov. A pesquisa propõe uma abordagem jurídica e interdisciplinar, examinando os impactos dessa tecnologia sobre o modelo clássico de controle administrativo, o regime jurídico da decisão administrativa, os limites impostos pelo princípio da legalidade, pela motivação dos atos administrativos e pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Sustenta-se que a utilização de inteligência artificial no controle preventivo das compras públicas representa uma inflexão relevante do paradigma repressivo para um modelo baseado em gestão de riscos, sem, contudo, afastar a centralidade da decisão humana e da responsabilidade do gestor público.

Palavras-chave: contratações públicas; inteligência artificial; controle preventivo; integridade pública; decisão administrativa.

Abstract

This article examines the incorporation of artificial intelligence systems into the control of public procurement in Brazil, focusing on the integration of the ALICE system, developed by the Office of the Comptroller General of the Union, into the Comprasgov platform. The study adopts a legal and interdisciplinary approach, analyzing the impacts of this technology on the traditional model of administrative control, the legal framework governing administrative decision-making, and the limits imposed by the principle of legality, the duty to state reasons, and the Brazilian Introductory Law to Legal Norms. It argues that the use of artificial intelligence in preventive control represents a significant shift from a repressive paradigm to a risk-based governance model, without displacing the central role of human decision-making and public officials’ accountability.

Keywords: public procurement; artificial intelligence; preventive control; public integrity; administrative decision-making.

Sumário: 1. Introdução. 2. A evolução do controle das contratações públicas e a centralidade do controle preventivo. 3. O sistema ALICE e sua integração ao Comprasgov. 4. Inteligência artificial, legalidade e decisão administrativa. 5. A LINDB e a racionalidade decisória em ambiente algorítmico. 6. Impactos no regime de responsabilização do gestor público. 7. Benefícios, riscos e paradoxos do controle algorítmico. 8. Conclusão. Referências

  1. Introdução

A complexificação das contratações públicas no Brasil, marcada por elevado volume financeiro, multiplicidade normativa e crescente sofisticação dos riscos de fraude e ineficiência, tem imposto desafios significativos aos modelos tradicionais de controle administrativo.

Nesse contexto, a Administração Pública passa a incorporar instrumentos tecnológicos avançados, notadamente sistemas de inteligência artificial, com o objetivo de antecipar riscos, prevenir irregularidades e fortalecer a governança das compras públicas.

A integração do sistema ALICE (Analisador de Licitações, Contratos e Editais), desenvolvido pela Controladoria-Geral da União, ao portal Comprasgov, representa marco relevante dessa transformação.

A ferramenta passa a atuar de forma preventiva e concomitante ao procedimento licitatório, sinalizando indícios de inconsistências e fragilidades antes da consolidação do ato administrativo.

O presente artigo investiga os contornos jurídicos dessa inovação institucional, examinando em que medida o controle algorítmico se compatibiliza com os princípios estruturantes do Direito Administrativo brasileiro, em especial a legalidade, a motivação dos atos administrativos, o devido processo administrativo e a responsabilidade do gestor público.

  1. A evolução do controle das contratações públicas e a centralidade do controle preventivo

Historicamente, o controle das contratações públicas no Brasil estruturou-se sob uma lógica predominantemente repressiva, orientada à apuração de irregularidades após a consumação do ato administrativo.

Esse modelo, embora essencial à responsabilização, revelou-se insuficiente para evitar danos significativos ao erário e para promover maior racionalidade decisória.

A Lei nº 14.133/2021 inaugura, de forma mais explícita, uma mudança de paradigma ao incorporar a gestão de riscos, o planejamento das contratações e o fortalecimento do controle interno como eixos estruturantes do regime jurídico das licitações e contratos administrativos.

O controle passa a ser concebido não apenas como instrumento de repressão, mas como mecanismo de indução de boas práticas administrativas e de prevenção de falhas sistêmicas.

Nesse ambiente normativo, a utilização de ferramentas tecnológicas de análise massiva de dados apresenta-se como meio apto a ampliar a capacidade estatal de identificação precoce de riscos, sem afastar as garantias jurídicas que regem a atuação administrativa.

  1. O sistema ALICE e sua integração ao Comprasgov

O sistema ALICE consiste em plataforma de análise automatizada de dados aplicada aos processos de compras públicas, com uso de técnicas de inteligência artificial voltadas à leitura de textos normativos e à identificação de padrões atípicos em editais, dispensas e inexigibilidades.

Com a integração ao Comprasgov, os alertas gerados pelo sistema passam a ser disponibilizados diretamente aos gestores responsáveis pelas contratações, no mesmo ambiente em que se realizam os procedimentos licitatórios.

Essa alteração desloca o controle para um momento anterior à formalização do contrato, permitindo ajustes tempestivos e redução de retrabalhos, cancelamentos e potenciais nulidades.

Importa destacar que os alertas emitidos pelo ALICE possuem natureza orientativa, não vinculante, cabendo ao gestor público analisá-los criticamente e adotar as providências que entender juridicamente adequadas.

O sistema não substitui o juízo técnico ou jurídico da Administração, mas o subsidia com informações estruturadas.

  1. Inteligência artificial, legalidade e decisão administrativa

A incorporação de inteligência artificial ao processo decisório administrativo impõe reflexão rigorosa acerca de seus limites jurídicos.

O princípio da legalidade administrativa exige que toda decisão estatal seja fundada em norma jurídica válida e adequadamente motivada.

Nesse sentido, a utilização de sistemas algorítmicos não pode implicar delegação integral da decisão administrativa à máquina.

A decisão permanece ato humano, imputável ao agente público competente, que deve avaliar criticamente as informações fornecidas pelo sistema e justificar, de forma explícita, sua adesão ou afastamento em relação aos alertas recebidos.

A exigência de motivação reforça a necessidade de transparência e explicabilidade dos sistemas utilizados pela Administração, sob pena de esvaziamento do controle jurídico e da própria racionalidade do ato administrativo.

  1. A LINDB e a racionalidade decisória em ambiente algorítmico

Os arts. 20, 21 e 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro fornecem arcabouço normativo relevante para a análise da decisão administrativa em contextos de elevada complexidade técnica.

A norma exige consideração das consequências práticas da decisão, das dificuldades reais do gestor e das circunstâncias concretas que condicionam sua atuação.

Nesse quadro, a inteligência artificial pode ser compreendida como instrumento legítimo de apoio à decisão administrativa, apto a reduzir assimetrias informacionais e a ampliar a racionalidade do processo decisório.

Contudo, sua utilização não afasta o dever de ponderação, nem exonera o gestor da responsabilidade pela decisão final.

  1. Impactos no regime de responsabilização do gestor público

A introdução de sistemas de alerta baseados em inteligência artificial suscita questionamentos relevantes acerca do regime de responsabilização administrativa.

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A existência de alertas ignorados pode ser elemento relevante na aferição de culpa ou dolo, desde que demonstrada a razoabilidade da expectativa de atuação diversa.

Por outro lado, a adoção automática e acrítica dos alertas também não exime o gestor de responsabilidade, especialmente quando a decisão resultar em ilegalidade ou dano decorrente de falha sistêmica ou inadequada contextualização do caso concreto.

O desafio reside em evitar a formação de uma governança defensiva algorítmica, na qual o gestor atua exclusivamente para se proteger de responsabilizações futuras, em detrimento da eficiência e do interesse público.

  1. Benefícios, riscos e paradoxos do controle algorítmico

O controle preventivo baseado em inteligência artificial apresenta benefícios evidentes, como aumento da eficiência administrativa, redução de desperdícios, fortalecimento da integridade pública e maior padronização decisória.

Todavia, não se pode ignorar riscos associados, tais como vieses algorítmicos, falsos positivos, opacidade decisória e potencial engessamento da atuação administrativa.

Esses riscos reforçam a necessidade de governança jurídica da tecnologia, com definição clara de responsabilidades, transparência metodológica e permanente supervisão humana.

  1. Conclusão

A integração do sistema ALICE ao Comprasgov representa avanço significativo no modelo brasileiro de controle das contratações públicas, sinalizando a transição para um paradigma preventivo, orientado por dados e gestão de riscos.

Essa inovação, contudo, não autoriza a substituição da decisão administrativa por sistemas automatizados, nem afasta os princípios estruturantes do Direito Administrativo.

A inteligência artificial deve ser compreendida como instrumento de apoio à racionalidade decisória, subordinado à legalidade, à motivação e à responsabilidade do gestor público.

O desafio contemporâneo consiste em harmonizar eficiência tecnológica e garantias jurídicas, assegurando que o controle algorítmico fortaleça — e não fragilize — o Estado de Direito.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 9 set. 1942.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 1º abr. 2021.

CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU). Governo amplia sistema de alertas baseado em inteligência artificial para fortalecer controle das contratações públicas. Brasília, DF: CGU, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2025/12/governo-amplia-sistema-de-alertas-baseado-em-inteligencia-artificial-para-fortalecer-controle-das-contratacoes-publicas. Acesso em: 15 dez. 2025.

CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO (CGU). Plano de Integridade e Combate à Corrupção 2025–2027. Brasília, DF: CGU, 2025.

Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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