Litigância Predatória Reversa: Reconstrução Dogmática Necessária ao Processo Civil Constitucional

20/12/2025 às 11:56

Resumo:


  • O artigo propõe a sistematização da categoria de litigância predatória reversa, caracterizada pelo uso abusivo do processo judicial pelo polo dominante para inviabilizar o exercício do direito de ação por sujeitos vulneráveis.

  • Baseado nos fundamentos constitucionais do processo civil, o estudo argumenta que a litigância predatória reversa deve ser reconhecida como categoria autônoma, com critérios positivos e negativos de configuração.

  • A proposta busca recompor a integridade do sistema processual brasileiro, permitindo a repressão simétrica dos abusos processuais, independentemente do polo em que se manifestem.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Litigância Predatória Reversa: Reconstrução Dogmática Necessária ao Processo Civil Constitucional

Resumo

O presente artigo propõe a sistematização da categoria denominada litigância predatória reversa, compreendida como a instrumentalização abusiva do processo judicial pelo polo estruturalmente dominante — em regra, grandes agentes econômicos ou o próprio Estado — com o objetivo de inviabilizar, dissuadir ou tornar economicamente proibitivo o exercício do direito fundamental de ação por sujeitos vulneráveis. Embora a doutrina e a jurisprudência brasileiras tenham reconhecido fenômenos correlatos, como o assédio processual, o abuso do direito de recorrer, as SLAPP suits e o sham litigation, ainda não se consolidou, no plano dogmático, uma teoria unificada capaz de enfrentar o abuso estrutural do direito de defesa à luz do processo civil constitucional. A partir da constitucionalização do processo, do devido processo legal substancial, da razoável duração do processo e do acesso efetivo à Justiça, sustenta-se que a litigância predatória reversa deve ser reconhecida como categoria autônoma, dotada de critérios positivos e negativos de configuração, especialmente diante da recente evolução jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais estaduais. A proposta busca recompor a integridade do sistema processual brasileiro, permitindo a repressão simétrica dos abusos processuais, independentemente do polo em que se manifestem.

Palavras-chave: processo civil constitucional; abuso do direito de defesa; acesso à justiça; razoável duração do processo; litigância predatória reversa; litigância abusiva; SLAPP; sham litigation.

Abstract

This article develops and systematizes the category known as reverse predatory litigation, understood as the abusive instrumentalization of judicial procedure by structurally dominant parties — typically large economic actors or the State — aimed at deterring, suppressing, or rendering prohibitively costly the exercise of the fundamental right of action by vulnerable litigants. Although Brazilian doctrine and case law have long acknowledged related phenomena, such as procedural harassment, abusive defensive strategies, SLAPP suits, and sham litigation, no unified constitutional theory has yet emerged to address structural defense-side abuse within the framework of constitutional civil procedure. Grounded in substantive due process, effective access to justice, reasonable duration of proceedings, and procedural good faith, this article argues that reverse predatory litigation constitutes an autonomous and necessary dogmatic category. The analysis is reinforced by recent jurisprudential developments from the Superior Court of Justice and state courts, which delineate both the positive and negative criteria for its application. The proposal seeks to restore the integrity of the Brazilian procedural system by enabling symmetrical repression of procedural abuses, regardless of the procedural position in which they arise.

Keywords: constitutional civil procedure; abuse of defense rights; access to justice; reasonable duration of proceedings; reverse predatory litigation; procedural abuse.

Sumário: I — Introdução. II — Processo Civil Constitucional e Desigualdade Estrutural
III — A Litigância Predatória na Jurisprudência e seus Limites. IV — Litigância Predatória Reversa: Definição, Estrutura e Elementos. V — Fundamentos Constitucionais da Repressão à Litigância Predatória Reversa. VI — Doutrina e Jurisprudência como Sinais Preexistentes do Fenômeno. VII — A Delimitação Jurisprudencial da Categoria: Critérios Positivos e Negativos. VIII — A Necessidade Sistêmica da Categoria e sua Função Transformadora. IX — Conclusão

I — Introdução

A constitucionalização do processo civil brasileiro, inaugurada de modo explícito pela Constituição da República de 1988, representa um dos mais relevantes deslocamentos paradigmáticos da experiência jurídica nacional. O processo deixou de ser concebido como simples técnica de atuação da lei material para assumir a condição de garantia fundamental, diretamente vinculada à efetividade dos direitos e à própria legitimidade do exercício da jurisdição no Estado Democrático de Direito. Nesse novo modelo, o processo não se justifica apenas pela observância de formas, mas pela sua capacidade concreta de assegurar tutela jurisdicional útil, tempestiva e substancialmente justa.

A superação da concepção puramente instrumental do processo implicou o reconhecimento de que o procedimento jurisdicional não é neutro. Ao contrário, ele opera em contextos sociais marcados por profundas assimetrias econômicas, informacionais e organizacionais, as quais influenciam decisivamente a capacidade das partes de acessar, sustentar e concluir um litígio. O acesso à Justiça, nessa perspectiva, não se exaure no direito formal de ingressar em juízo, mas compreende o direito de permanecer no processo em condições minimamente equitativas, sem que o tempo, os custos ou a complexidade procedimental sejam manipulados como instrumentos de exclusão.

Apesar desse avanço teórico, o desenvolvimento dogmático do processo civil constitucional revelou-se seletivo. A doutrina e a jurisprudência concentraram seus esforços na identificação e repressão de abusos praticados pelo polo ativo, sobretudo no contexto da litigância de massa, das demandas repetitivas e da chamada advocacia predatória. Esse movimento, embora relevante, produziu um efeito colateral indesejado: a invisibilização sistemática das condutas abusivas praticadas pelo polo estruturalmente dominante no exercício do direito de defesa.

Criou-se, assim, uma assimetria dogmática. Enquanto se sofisticaram instrumentos de contenção do abuso do direito de ação, permaneceu subteorizada a utilização estratégica e reiterada do aparato processual por grandes litigantes — públicos ou privados — com a finalidade de esvaziar, retardar ou tornar economicamente inviável o exercício do direito fundamental de ação por sujeitos vulneráveis. O processo, nessas hipóteses, deixa de funcionar como meio de realização de direitos e passa a operar como mecanismo de gestão de passivos, de contenção de demandas e de desestímulo racional à litigiosidade meritória.

É nesse ponto que se impõe a reconstrução dogmática da categoria da litigância predatória reversa. Longe de representar criação artificial ou expediente retórico, a categoria emerge como resposta necessária a um déficit teórico do processo civil constitucional. Ela busca nomear, estruturar e submeter a critérios jurídicos um fenômeno empiricamente verificável: o uso funcionalmente desviado do direito de defesa como técnica de opressão processual, especialmente em contextos de desigualdade estrutural.

A proposta não pretende restringir a ampla defesa nem reduzir o espaço legítimo de atuação das partes. Ao contrário, parte da premissa de que a defesa técnica é garantia constitucional indisponível. O que se questiona é a sua instrumentalização reiterada e estratégica para fins incompatíveis com a finalidade constitucional do processo. A litigância predatória reversa, assim, não se confunde com o exercício legítimo do contraditório, mas com a sua deformação estrutural.

II — Processo Civil Constitucional e Desigualdade Estrutural

O processo civil constitucional funda-se na premissa de que a igualdade formal entre as partes é insuficiente para assegurar justiça em sociedades marcadas por desigualdades materiais profundas. A Constituição de 1988 incorporou, de maneira explícita, o compromisso com a igualdade substancial, exigindo que o Estado-juiz atue não apenas como árbitro imparcial, mas como garantidor de condições mínimas de equilíbrio no desenvolvimento da relação processual.

Essa compreensão foi amplamente desenvolvida pela doutrina do acesso à Justiça, que demonstrou como fatores econômicos, organizacionais e informacionais influenciam decisivamente a capacidade dos litigantes de participar efetivamente do processo. Não se trata apenas da possibilidade de ingressar em juízo, mas da aptidão real para sustentar o litígio ao longo do tempo, suportar seus custos diretos e indiretos, compreender suas complexidades técnicas e resistir às estratégias processuais do adversário.

Nesse cenário, a figura do litigante habitual assume papel central. Grandes agentes econômicos e entes públicos litigam de forma sistemática, profissionalizada e estruturalmente organizada. Dispõem de departamentos jurídicos especializados, bancos de precedentes, modelos defensivos padronizados, automação de peticionamento e estratégias de gestão de contencioso orientadas por cálculos econômicos racionais. O litígio, para esses sujeitos, integra a lógica ordinária de funcionamento da atividade, sendo frequentemente tratado como variável de custo.

Em contraposição, o litigante vulnerável — consumidor, trabalhador, pequeno empresário ou cidadão comum — é, em regra, litigante eventual. Sua relação com o processo é episódica, onerosa e marcada por assimetrias informacionais. Para esse sujeito, o tempo do processo, a multiplicação de incidentes e a complexidade procedimental não são meros inconvenientes técnicos, mas fatores que podem inviabilizar, na prática, a tutela jurisdicional.

É nesse contexto que a desigualdade estrutural se projeta sobre o exercício do direito de defesa. O polo estruturalmente dominante pode utilizar o processo como instrumento de resistência estratégica, valendo-se da interposição reiterada de recursos, da fragmentação deliberada do debate, da desconsideração sistemática de precedentes vinculantes e da obstrução probatória para prolongar artificialmente o litígio. O tempo processual, nesse modelo, deixa de ser garantia fundamental e passa a operar como mecanismo de pressão econômica.

A Constituição de 1988 não autoriza essa deformação. O devido processo legal substancial, a razoável duração do processo e a boa-fé objetiva processual impõem limites claros ao exercício das faculdades processuais. O direito de defesa, embora amplo, não é absoluto; ele deve ser exercido em conformidade com sua função constitucional, que é permitir o debate efetivo do mérito, e não impedir o acesso à tutela jurisdicional.

A litigância predatória reversa emerge, portanto, como categoria diretamente conectada à noção de desigualdade estrutural. Ela revela que a vulnerabilidade processual não se limita ao polo ativo e que o abuso do processo pode assumir forma sofisticada, institucionalizada e economicamente racional no polo passivo. Reconhecer essa realidade é condição indispensável para que o processo civil constitucional cumpra sua promessa de justiça substancial, neutralizando não apenas os abusos visíveis, mas também aqueles que se escondem sob a aparência de regularidade formal.

III — A Litigância Predatória na Jurisprudência e seus Limites

A incorporação do debate sobre litigância predatória no discurso jurisprudencial brasileiro representa avanço relevante na compreensão contemporânea do abuso do processo. Em especial, a partir do enfrentamento da litigância de massa e da chamada advocacia predatória, os tribunais superiores passaram a reconhecer que determinadas práticas, embora formalmente lícitas, podem comprometer a funcionalidade do sistema de Justiça quando exercidas de modo reiterado, estratégico e dissociado de pretensões juridicamente legítimas.

Esse movimento ganhou relevo sobretudo no contexto das demandas repetitivas, em que se identificou a utilização do direito de ação como instrumento de pressão econômica e de obtenção de ganhos sistemáticos, sem lastro em controvérsias jurídicas autênticas. Ao reconhecer a litigância predatória nessa perspectiva, a jurisprudência rompeu com a ideia de que o abuso do processo se confunde apenas com a má-fé subjetiva isolada, passando a considerar padrões de conduta, racionalidade econômica e impactos sistêmicos sobre a jurisdição.

Todavia, a evolução jurisprudencial revelou-se incompleta. Ao concentrar-se quase exclusivamente na repressão do abuso praticado pelo polo ativo, o sistema acabou por reproduzir uma leitura parcial do fenômeno do abuso processual. A jurisprudência passou a identificar, com crescente sofisticação, estratégias ofensivas abusivas, mas permaneceu reticente em reconhecer que o direito de defesa também pode ser instrumentalizado de modo funcionalmente desviado, sobretudo quando exercido por litigantes estruturalmente dominantes.

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Essa limitação torna-se ainda mais evidente quando se observa que o processo civil constitucional não distingue, em termos axiológicos, entre abusos praticados pelo autor ou pelo réu. O que a Constituição veda é a utilização do processo para fins incompatíveis com sua finalidade institucional, independentemente do polo em que tal conduta se manifeste. O foco, portanto, não deve recair sobre a posição formal da parte, mas sobre o impacto funcional de suas condutas sobre o acesso à Justiça, a duração razoável do processo e a integridade da jurisdição.

A jurisprudência recente começa a sinalizar essa inflexão. Ao enfrentar situações em que grandes litigantes resistem sistematicamente ao cumprimento de precedentes vinculantes, desconsideram decisões reiteradas dos tribunais superiores e utilizam recursos manifestamente inadequados como técnica de postergação, alguns tribunais passaram a empregar expressamente a noção de litigância predatória ou abusiva reversa. Esse movimento demonstra que o fenômeno não é meramente teórico, mas empiricamente identificável e juridicamente relevante.

Ao mesmo tempo, a própria jurisprudência tem imposto limites claros à categoria, afastando sua aplicação automática ou punitivista. Decisões que reconhecem a inexistência de litigância predatória reversa quando os recursos se fundam em matéria de ordem pública ou em teses juridicamente plausíveis revelam preocupação legítima com a preservação da ampla defesa. Esses precedentes demonstram que a categoria não pode ser utilizada como instrumento de intimidação do direito de recorrer, sob pena de se converter em mecanismo inverso de restrição ao acesso à Justiça.

A leitura conjugada desses julgados evidencia que a litigância predatória reversa não se confunde com o simples exercício reiterado do direito de defesa, nem com a resistência legítima à pretensão deduzida em juízo. Ela pressupõe algo mais: a utilização estratégica do processo como técnica de bloqueio do julgamento de mérito, orientada por racionalidade econômica e dissociada de qualquer utilidade defensiva real. É justamente essa distinção que confere densidade constitucional à categoria e impede sua banalização.

IV — Litigância Predatória Reversa: Definição, Estrutura e Elementos

A litigância predatória reversa pode ser compreendida como fenômeno estrutural de abuso do processo, caracterizado pelo uso reiterado, estratégico e funcionalmente desviado do direito de defesa pelo polo estruturalmente dominante, com o objetivo de inviabilizar, retardar ou tornar economicamente desvantajoso o exercício do direito de ação pelo adversário. Trata-se de prática que não se esgota em atos isolados, mas se manifesta como política institucional de litigância, frequentemente incorporada à gestão ordinária de riscos e passivos.

O elemento central da categoria reside na dissociação entre o comportamento processual adotado e a finalidade constitucional do direito de defesa. Enquanto a defesa legítima se orienta à obtenção de pronunciamento jurisdicional sobre o mérito, a litigância predatória reversa utiliza o processo como meio em si mesmo, explorando o tempo, a complexidade procedimental e os custos do litígio como instrumentos de pressão. O objetivo não é vencer a causa pelo convencimento do julgador, mas tornar o litígio suficientemente oneroso para desestimular sua continuidade.

Essa prática manifesta-se de diversas formas, muitas vezes combinadas. Pode envolver a interposição reiterada de recursos manifestamente inadequados ou já superados por precedentes vinculantes, a fragmentação artificial do debate por meio de incidentes desnecessários, a resistência injustificada à produção de provas essenciais, a apresentação de defesas padronizadas dissociadas do caso concreto e a desconsideração sistemática de decisões judiciais consolidadas. O denominador comum dessas condutas é a criação deliberada de obstáculos processuais que não se justificam pela controvérsia jurídica efetivamente existente.

A caracterização da litigância predatória reversa não decorre da mera contagem quantitativa de atos processuais, mas da análise qualitativa de padrões de comportamento. A repetição, nesse contexto, não é relevante em si mesma, mas enquanto indicativo de uma racionalidade estratégica orientada à postergação. O exame deve considerar o conjunto das condutas, sua inserção em uma política institucional de litigância e seus efeitos concretos sobre a duração do processo e sobre a capacidade do adversário de sustentar o litígio.

Importa destacar que a categoria não pressupõe a demonstração de dolo subjetivo clássico. O abuso estrutural do processo pode ser identificado a partir de critérios objetivos, relacionados ao desvio de finalidade e ao impacto sistêmico das condutas adotadas. A litigância predatória reversa, assim, aproxima-se mais da noção de abuso de direito do que da concepção tradicional de má-fé processual centrada na intenção psicológica do agente.

Ao mesmo tempo, a definição da categoria exige a preservação de limites claros. Não configura litigância predatória reversa o exercício regular do direito de defesa, ainda que insistente, quando fundado em teses juridicamente plausíveis ou em matérias de ordem pública. Tampouco se pode confundir resistência legítima com abuso estrutural. A categoria somente se justifica quando há ruptura evidente entre a forma e a função do processo, isto é, quando as faculdades processuais são utilizadas de modo incompatível com sua finalidade constitucional.

A reconstrução dogmática da litigância predatória reversa permite, assim, compreender o abuso do processo como fenômeno bidirecional e estrutural, superando leituras simplificadoras que associam o desvio processual apenas ao polo ativo. Ao fazê-lo, contribui para a consolidação de um modelo de processo civil constitucional coerente, capaz de reprimir abusos sem comprometer o núcleo essencial das garantias processuais.

V — Fundamentos Constitucionais da Repressão à Litigância Predatória Reversa

A repressão à litigância predatória reversa encontra fundamento direto e imediato na Constituição da República de 1988, não se tratando de construção interpretativa extravagante ou de inovação incompatível com o sistema. Ao contrário, decorre logicamente da conformação constitucional do processo civil como garantia fundamental e da imposição de limites materiais ao exercício das faculdades processuais.

O direito de ação, consagrado no art. 5º, XXXV, da Constituição, não pode ser reduzido à possibilidade formal de provocar o Judiciário. A jurisprudência constitucional brasileira há muito reconhece que esse direito possui conteúdo substancial, exigindo que o acesso à Justiça seja real, efetivo e apto à produção de tutela jurisdicional útil. Quando o processo é instrumentalizado pelo polo estruturalmente dominante como mecanismo de postergação indefinida, fragmentação deliberada do debate ou resistência sistemática a precedentes vinculantes, o direito de ação é esvaziado em seu núcleo essencial, convertendo-se em garantia meramente simbólica.

O devido processo legal, em sua dimensão substancial, reforça esse entendimento. Não basta que os atos processuais observem as formas legalmente previstas; é necessário que se mantenham fiéis à finalidade constitucional do procedimento jurisdicional. A utilização reiterada do processo como técnica de bloqueio do julgamento de mérito, ainda que sob a aparência de regularidade formal, configura violação ao devido processo legal substancial, pois subverte a função do contraditório e da ampla defesa, transformando-os em instrumentos de opressão processual.

VII — A Delimitação Jurisprudencial da Categoria: Critérios Positivos e Negativos

A consolidação dogmática da litigância predatória reversa exige, como condição de legitimidade, a definição clara de seus limites. Nenhuma categoria destinada a reprimir abusos processuais pode prescindir de critérios de contenção, sob pena de se converter em instrumento de insegurança jurídica ou de indevida restrição ao exercício da ampla defesa. Nesse ponto, a evolução jurisprudencial recente revela-se particularmente relevante, pois demonstra esforço consistente de delimitação da categoria, tanto em seus critérios positivos quanto negativos.

Os tribunais têm afirmado, de maneira cada vez mais explícita, que a mera interposição reiterada de recursos não é suficiente, por si só, para caracterizar litigância predatória reversa. A reiteração defensiva, quando fundada em matérias de ordem pública, em teses juridicamente plausíveis ou em controvérsias ainda não pacificadas, insere-se no núcleo legítimo do direito de defesa. A insistência argumentativa, nesses casos, não representa abuso, mas exercício regular das garantias processuais constitucionalmente asseguradas.

Essa compreensão é essencial para afastar leituras simplificadoras que identifiquem o abuso apenas a partir de critérios quantitativos. O processo civil constitucional não autoriza a transformação do número de recursos em indício automático de desvio de finalidade. A litigância predatória reversa não se confunde com defesa técnica intensa, nem com resistência legítima à pretensão deduzida em juízo. Seu reconhecimento exige algo mais do que insistência: exige ruptura funcional entre o comportamento processual e a finalidade constitucional da defesa.

Por outro lado, a jurisprudência tem reconhecido a configuração da litigância predatória reversa quando se verifica padrão reiterado de resistência injustificada ao cumprimento de precedentes vinculantes, desconsideração sistemática de teses firmadas em recursos repetitivos, utilização de vias processuais manifestamente inadequadas para rediscutir matéria já decidida e obstrução deliberada da instrução probatória. Nessas hipóteses, o processo deixa de ser meio para solução do conflito e passa a operar como técnica institucional de postergação.

O elemento distintivo reside na análise qualitativa do comportamento processual, considerada em seu conjunto e em seu contexto. A litigância predatória reversa manifesta-se como política de litigância, e não como episódio isolado. Ela se revela quando o conjunto das condutas adotadas demonstra racionalidade estratégica orientada à exploração do tempo processual, à elevação artificial dos custos do litígio e à exaustão do adversário, especialmente quando este se encontra em situação de vulnerabilidade estrutural.

A definição desses critérios positivos e negativos confere maturidade à categoria e impede sua banalização. Ao mesmo tempo, assegura que a repressão ao abuso do processo não se converta em instrumento de cerceamento defensivo. A litigância predatória reversa, assim delimitada, preserva o núcleo essencial da ampla defesa e reforça a legitimidade constitucional da atuação jurisdicional.

VIII — A Necessidade Sistêmica da Categoria e sua Função Transformadora

O reconhecimento da litigância predatória reversa responde a uma necessidade sistêmica do processo civil constitucional. A repressão assimétrica dos abusos processuais compromete a coerência interna do sistema jurídico, pois transmite a mensagem implícita de que apenas determinadas formas de desvio merecem reprovação, enquanto outras, igualmente nocivas, permanecem invisíveis sob o manto da regularidade formal.

A Constituição de 1988 não admite essa seletividade. O processo civil constitucional exige tratamento simétrico dos abusos, independentemente do polo em que se manifestem. A integridade da jurisdição pressupõe que o sistema seja capaz de identificar e reprimir tanto o abuso do direito de ação quanto o abuso do direito de defesa, sob pena de se converter em instrumento de perpetuação de desigualdades estruturais.

A função transformadora da categoria reside precisamente nessa capacidade de recompor a integridade do sistema processual. Ao reconhecer a litigância predatória reversa, o Judiciário passa a dispor de arcabouço conceitual adequado para enfrentar práticas defensivas abusivas que, embora formalmente amparadas por faculdades processuais legítimas, produzem efeitos materialmente incompatíveis com a Constituição. O processo deixa de ser espaço de vantagem estrutural para os economicamente fortes e reafirma sua vocação de instrumento de tutela de direitos fundamentais.

Além disso, a categoria possui relevante função preventiva. Ao tornar visível e juridicamente qualificável o abuso defensivo estrutural, o sistema processual desestimula políticas institucionais de litigância baseadas na aposta racional na mora judicial. A previsibilidade da repressão contribui para a reorientação das estratégias processuais dos grandes litigantes, favorecendo soluções mais cooperativas, eficientes e alinhadas à finalidade constitucional da jurisdição.

A litigância predatória reversa também desempenha papel relevante na proteção da confiança dos jurisdicionados. Quando o processo se revela incapaz de conter estratégias defensivas abusivas praticadas por agentes poderosos, instala-se a percepção de que a Justiça é acessível apenas a quem pode suportar seus custos. O reconhecimento da categoria contribui para restaurar a credibilidade do sistema, reforçando a ideia de que o processo não é instrumento de poder, mas de justiça.

IX — Conclusão

A litigância predatória reversa constitui fenômeno estrutural do processo civil contemporâneo, cuja relevância jurídica não pode mais ser ignorada. Sua presença recorrente na prática forense, aliada ao reconhecimento progressivo pela doutrina e pela jurisprudência, evidencia a necessidade de enfrentamento dogmático sistemático, compatível com os fundamentos do processo civil constitucional.

A reconstrução proposta ao longo deste estudo não cria nova forma de ilícito processual nem amplia arbitrariamente o poder sancionatório do juiz. Ao contrário, organiza e sistematiza deveres já existentes à luz da Constituição de 1988, reafirmando que o exercício das faculdades processuais — seja no polo ativo, seja no polo passivo — encontra limites materiais na boa-fé, na lealdade processual, na razoável duração do processo e na vedação ao abuso de direito.

O reconhecimento da litigância predatória reversa permite superar leituras parciais do abuso do processo, que tradicionalmente concentraram sua atenção no polo ativo e negligenciaram práticas defensivas estruturalmente desviadas. Ao fazê-lo, contribui para a construção de modelo processual mais coerente, simétrico e fiel à promessa constitucional de igualdade substancial e acesso efetivo à Justiça.

Em última análise, a litigância predatória reversa revela que o maior risco ao processo civil contemporâneo não reside apenas no excesso de demandas, mas também na manipulação estratégica do procedimento como técnica de contenção de direitos. Nomear o fenômeno é condição para torná-lo visível; torná-lo visível é condição para enfrentá-lo; enfrentá-lo é condição para preservar a legitimidade democrática da jurisdição.

Somente um processo capaz de identificar e reprimir todas as formas de abuso — independentemente da posição ocupada pelas partes — pode cumprir sua função constitucional de instrumento de justiça, e não de poder. A litigância predatória reversa, assim compreendida, insere-se como categoria indispensável para a efetividade e a integridade do processo civil no século XXI.

A garantia da razoável duração do processo, prevista no art. 5º, LXXVIII, da Constituição, ocupa papel central na compreensão da litigância predatória reversa. O tempo processual não é elemento neutro ou acidental, mas componente essencial da própria ideia de justiça. A demora excessiva, quando produzida artificialmente por estratégias defensivas abusivas, deixa de ser contingência do sistema para se tornar técnica deliberada de desgaste econômico e psicológico do litigante vulnerável. Nesses casos, o tempo converte-se em mecanismo de negação indireta da tutela jurisdicional.

A ampla defesa, por sua vez, não se confunde com o direito irrestrito de utilizar o processo de maneira desfuncional. Embora seja garantia constitucional indisponível, ela deve ser exercida em conformidade com a boa-fé objetiva e com os deveres de lealdade, cooperação e respeito à integridade do processo. A Constituição não protege o abuso do direito de defesa, assim como não protege o abuso do direito de ação. Ambos se submetem aos mesmos limites materiais impostos pelo Estado Democrático de Direito.

Esse arcabouço constitucional é reforçado pela cláusula geral de vedação ao abuso de direito, positivada no art. 187 do Código Civil e plenamente aplicável ao processo civil. O direito de defesa, quando exercido de forma reiterada e estratégica para fins incompatíveis com sua função social e constitucional, perde sua legitimidade jurídica e passa a configurar ilícito processual. A litigância predatória reversa, nesse sentido, representa manifestação qualificada do abuso de direito no plano procedimental.

Assim, a repressão à litigância predatória reversa não apenas é compatível com a Constituição de 1988, como constitui exigência de sua plena eficácia. Permitir que o processo seja manipulado como instrumento de contenção de direitos fundamentais compromete a legitimidade da jurisdição e enfraquece a própria promessa constitucional de justiça.

VI — Doutrina e Jurisprudência como Sinais Preexistentes do Fenômeno

Embora a expressão “litigância predatória reversa” seja relativamente recente no vocabulário jurídico brasileiro, o fenômeno que ela descreve não é novo. Ao contrário, encontra-se há décadas presente na prática forense, sob múltiplas manifestações e nomenclaturas, tanto na doutrina nacional quanto no direito comparado. A ausência histórica de uma categoria unificadora não impediu o reconhecimento pontual de práticas abusivas, mas dificultou sua apreensão sistemática e seu enfrentamento coerente.

No plano doutrinário, a literatura processual há muito identifica condutas que hoje se revelam como expressões típicas da litigância predatória reversa. O assédio processual, reconhecido pela jurisprudência como modalidade de abuso apta a gerar responsabilidade civil, descreve justamente a prática reiterada de atos processuais destinados a desgastar o adversário ou prolongar artificialmente o litígio. Da mesma forma, o abuso do direito de recorrer, amplamente enfrentado pelos tribunais superiores, evidencia a utilização de recursos como técnica de postergação dissociada de qualquer controvérsia jurídica real.

A doutrina da boa-fé objetiva processual, desenvolvida de maneira consistente no processo civil contemporâneo, oferece base conceitual sólida para a compreensão do fenômeno. Ao impor deveres anexos de cooperação, lealdade e transparência, a boa-fé processual veda a criação artificial de obstáculos, a fragmentação deliberada do debate e a utilização estratégica do processo para fins incompatíveis com a tutela jurisdicional. Ainda que muitos autores não utilizem expressamente a expressão “litigância predatória reversa”, suas formulações dogmáticas abarcam integralmente o núcleo do fenômeno.

No direito comparado, a instrumentalização do processo por agentes economicamente dominantes é amplamente reconhecida. As SLAPP suits, no contexto norte-americano, constituem exemplo paradigmático de utilização do aparato judicial para intimidar, silenciar ou desestimular o exercício de direitos fundamentais por indivíduos ou grupos vulneráveis. No âmbito do direito concorrencial, o sham litigation é identificado como prática anticompetitiva, caracterizada pelo uso estratégico do processo para excluir concorrentes ou bloquear o funcionamento regular do mercado.

A jurisprudência brasileira recente passou a dar passos mais explícitos nesse sentido. Tribunais têm reconhecido, em decisões cada vez mais fundamentadas, que a resistência injustificada ao cumprimento de precedentes vinculantes, a interposição reiterada de recursos manifestamente inadequados e a obstrução deliberada da produção probatória configuram abuso do processo, especialmente quando praticados por litigantes habituais. Em alguns casos, a expressão “litigância predatória” ou “litigância abusiva reversa” passou a ser empregada de modo expresso, acompanhada da aplicação de sanções processuais relevantes.

Esses sinais doutrinários e jurisprudenciais demonstram que a litigância predatória reversa não constitui criação conceitual dissociada da realidade forense. Trata-se, antes, de fenômeno empiricamente reconhecido, cujos elementos já se encontram dispersos no ordenamento jurídico. A reconstrução dogmática proposta não cria novos deveres nem amplia arbitrariamente o poder sancionatório do juiz, mas organiza, sistematiza e confere coerência constitucional a práticas já identificadas e reprimidas de forma fragmentária.

Ao reunir esses elementos sob uma categoria unificadora, o processo civil constitucional ganha em clareza, previsibilidade e integridade. A litigância predatória reversa passa a ser compreendida não como exceção retórica, mas como manifestação estrutural de abuso do processo, exigindo resposta jurisdicional igualmente estruturada e constitucionalmente orientada.

Referências

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Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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