A recente decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes reacendeu um dos debates mais sensíveis da democracia brasileira: quem tem, afinal, a iniciativa para deflagrar o processo de impeachment de autoridades como ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o Procurador-Geral da República (PGR)?
Segundo a Constituição Federal, especialmente no art. 52, compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente da República, o Vice-Presidente, os Ministros do STF e o Procurador-Geral da República, nos crimes de responsabilidade. Trata-se de uma escolha clara do constituinte, inserida no sistema de freios e contrapesos, justamente para evitar a concentração de poder e assegurar o controle recíproco entre os Poderes.
Ocorre que a liminar concedida por Gilmar Mendes praticamente esvazia essa competência constitucional do Senado ao afirmar que a iniciativa para esses processos não pode partir do Parlamento, mas apenas do Procurador-Geral da República. Surge, então, uma pergunta inevitável e lógica: e quando o próprio Procurador-Geral da República for o acusado, quem poderá iniciar o processo? A decisão cria um vácuo institucional e um evidente conflito lógico-jurídico, não previsto pela Constituição.
O argumento central utilizado para justificar a liminar foi o suposto “excesso” de pedidos de impeachment — segundo notícias amplamente divulgadas, cerca de 99, sendo que ministros como Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Flávio Dino e Dias Toffoli figurariam entre os mais citados. Para o ministro, haveria perseguição política. Contudo, se existe reação política, ela decorre, inevitavelmente, de ações percebidas como políticas por parte do próprio Supremo. A reação é consequência, não causa.
Não por acaso, o próprio presidente do STF, Luís Roberto Barroso, já afirmou publicamente que a Corte deixou de ser apenas um tribunal constitucional para assumir um papel político. Essa confissão, longe de pacificar o debate, reforça a percepção de que se instalou no país um ciclo de exceção — algo que, inclusive, vem sendo reconhecido por setores da grande imprensa nas páginas de opinião.
Nesse contexto, a paralisia do Senado torna-se ainda mais grave. O presidente da Casa, ontem Rodrigo Pacheco, hoje Davi Alcolumbre, permanece “sentado” sobre os requerimentos, impedindo qualquer análise política e institucional do mérito das acusações. Bastaria permitir o prosseguimento de alguns poucos pedidos — quatro, por exemplo — para restaurar minimamente a confiança no equilíbrio entre os Poderes e demonstrar respeito às chamadas “quatro linhas da Constituição”, tantas vezes invocadas.
Outro ponto central é a forma da decisão: uma liminar. No direito, a liminar se justifica pela urgência, pelo chamado periculum in mora, quando a demora pode causar dano irreparável a um direito. Mas qual seria a urgência nesse caso? A Lei nº 1.079/1950, que regula os crimes de responsabilidade, foi recepcionada por todas as Constituições posteriores — de 1946, 1967 e 1988 — e serviu de base para os impeachments de Fernando Collor e Dilma Rousseff. Não há novidade, nem risco iminente que justificasse uma decisão dessa magnitude por ato individual e provisório.
Mais grave ainda: ao invés de simplesmente declarar a lei inconstitucional — o que já seria controverso — a decisão praticamente a reescreve. Introduz novos requisitos, altera quóruns, restringe sanções e cria um texto normativo que não passou pelo crivo do Poder Legislativo. Isso extrapola a função jurisdicional e invade diretamente a competência do Congresso Nacional.
Em síntese, não se trata apenas de discutir impeachment ou proteger ministros. Trata-se de preservar a Constituição, o equilíbrio institucional e a própria democracia. Quando um Poder passa a reescrever a lei e a limitar preventivamente o controle político que a Constituição expressamente prevê, o problema deixa de ser jurídico e passa a ser estrutural. E estruturas, quando se deformam, comprometem todo o edifício democrático.
José Dileon Soares
Advogado e Contador