As decisões tomadas nos últimos anos pelos Ministros do STF, apresentada por setores da imprensa como o marco final de um período de “exceção”, expressão usada para descrever anos em que — segundo esses analistas — o devido processo legal, o juiz natural, a ampla defesa e até a Constituição teriam sido relegados a segundo plano. Esse discurso, contudo, revela mais do que pretende: acaba por admitir que práticas extraordinárias foram toleradas, até celebradas, desde que direcionadas contra determinados atores políticos.
O ponto de partida desse ciclo remonta ao chamado “inquérito do fim do mundo”, instaurado em março de 2019, já no governo Bolsonaro. O procedimento foi aberto sem provocação do Ministério Público, contrariando, segundo críticos, exigências constitucionais de atuação institucional. Ao longo das investigações, ministros do Supremo Tribunal Federal acumularam funções tradicionalmente separadas: vítima, investigador e julgador — uma junção inédita na história recente.
Esse movimento não surge do nada. Antes disso, no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, o então presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, permitiu uma interpretação que relativizou o parágrafo único do artigo 52 da Constituição, dispositivo que determina a perda de direitos políticos por oito anos após condenação. A decisão foi vista por muitos como uma “emenda ad hoc”, aplicada apenas para aquele contexto específico. Para críticos, ali já se manifestava a lógica de flexibilização constitucional que ganharia força nos anos seguintes.
A imprensa desempenhou papel central nesse processo. Jornais e colunistas frequentemente trataram decisões excepcionais como aceitáveis — ou mesmo necessárias — diante da urgência de “conter o golpismo” ou neutralizar Bolsonaro na arena eleitoral. Somente após o desfecho do julgamento no STF, veículos como O Globo passaram a admitir que o tribunal extrapolou suas atribuições. Colunistas como Malu Gaspar e Pablo Ortellado registraram que houve decisões monocráticas inauditas, prisões preventivas prolongadas sem denúncia formal, bloqueios de contas digitais, modificações regimentais contestadas e manobras processuais que deslocaram julgamentos para turmas com composição mais previsível. Houve, enfim, o reconhecimento explícito de que poderes extraordinários foram usados — “esperamos que de forma excepcional e transitória”, segundo texto publicado.
Essa mudança discursiva revela certo paradoxo. Segundo essas colunas, a excepcionalidade teria sido tolerada por uma “boa causa”: impedir o avanço político de Bolsonaro e coibir mobilizações consideradas antidemocráticas. Somente agora, com o objetivo alcançado, seria chegada a hora de o Supremo “voltar ao seu quadrado” e restaurar a normalidade democrática. Curiosamente, essa restauração é proposta pelos mesmos que antes defenderam ou silenciaram sobre decisões fora das balizas constitucionais.
Dileon Soares
Advogado Contador