A escassez administrativa como critério silencioso do sistema de patentes
Resumo
O artigo analisa criticamente a suspensão do exame prioritário de pedidos de patente no setor de telecomunicações, promovida pela Portaria INPI nº 17/2025, à luz dos princípios da eficiência administrativa, da isonomia procedimental e da segurança jurídica. Partindo de uma abordagem didática e acessível, o texto demonstra que a medida não se limita a um ajuste técnico de gestão do backlog, mas revela uma transformação mais profunda no funcionamento do sistema de patentes, na medida em que a escassez institucional do Estado passa a operar como critério implícito de reorganização procedimental. Sustenta-se que a incorporação da limitação administrativa como dado estrutural tende a produzir seletividade silenciosa, afetando a previsibilidade e a confiança dos agentes econômicos no regime de proteção à inovação. O trabalho não questiona a legalidade formal do ato, mas propõe uma reflexão crítica sobre seus efeitos sistêmicos e sobre os riscos decorrentes da normalização de soluções excepcionais no âmbito da propriedade intelectual.
Palavras-chave: Propriedade intelectual; patentes; exame prioritário; eficiência administrativa; segurança jurídica; telecomunicações.
Abstract
This article critically examines the suspension of priority examination for patent applications in the telecommunications sector introduced by INPI Ordinance No. 17/2025. Adopting a didactic and accessible approach, the analysis goes beyond the formal legality of the measure to explore its systemic implications for administrative efficiency, procedural equality, and legal certainty. The paper argues that the ordinance reflects a deeper structural shift in the patent system, in which administrative scarcity ceases to be treated as a temporary managerial problem and instead becomes an implicit criterion shaping procedural access. By internalizing institutional limitations as a structural variable, the system risks introducing silent selectivity, undermining predictability and weakening confidence in patents as effective instruments for fostering innovation. The article concludes by highlighting the broader risks associated with the normalization of exceptional administrative measures within intellectual property governance.
Keywords: Intellectual property; patents; priority examination; administrative efficiency; legal certainty; telecommunications.
Sumário: 1. Introdução. 2. O exame prioritário e o PPH: finalidade, funcionamento e limites. 3. A Portaria nº 17/2025 e a reorganização do procedimento. 4. Isonomia procedimental e seletividade invisível. 5. Segurança jurídica e previsibilidade temporal. 6. Eficiência administrativa e normalização da exceção. 7. Considerações finais
1. Introdução
O sistema de patentes é frequentemente apresentado como um mecanismo jurídico voltado à proteção da inovação e ao estímulo ao desenvolvimento tecnológico. Em termos simples, trata-se de um modelo pelo qual o Estado reconhece, por tempo determinado, um direito de exclusividade ao inventor, em troca da divulgação pública da solução técnica desenvolvida. Essa equação — incentivo privado e benefício público — depende não apenas da existência de normas substantivas, mas também do funcionamento efetivo dos procedimentos administrativos encarregados de concretizar esse direito.
No Brasil, a análise dos pedidos de patente é realizada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, órgão que historicamente enfrenta um volume elevado de demandas e limitações estruturais de ordem técnica e operacional. Esse cenário levou à consolidação de longas filas de exame, fenômeno conhecido como backlog, que afeta diretamente a previsibilidade e a utilidade econômica da proteção patentária. Afinal, um direito reconhecido tardiamente pode perder grande parte de seu valor estratégico, especialmente em setores marcados por rápida evolução tecnológica.
Para mitigar esse problema, o ordenamento administrativo brasileiro passou a admitir mecanismos de exame prioritário, que permitem a aceleração da análise em hipóteses específicas. Entre esses instrumentos, destaca-se o Patent Prosecution Highway (PPH), programa de cooperação internacional que possibilita ao requerente solicitar exame mais célere no Brasil quando o pedido correspondente já foi analisado favoravelmente por um escritório de patentes estrangeiro. A lógica subjacente é intuitiva: se outra autoridade técnica já examinou a matéria, o esforço administrativo nacional pode ser racionalizado.
Esse arranjo, contudo, sofreu alteração relevante com a edição da Portaria INPI nº 17/2025, que determinou a suspensão temporária dos requisitos de exame prioritário — inclusive do PPH — para pedidos classificados no setor de telecomunicações (IPC principal H04). A justificativa apresentada repousa na capacidade limitada do órgão para realizar o exame técnico desses pedidos, considerados particularmente complexos. À primeira vista, a medida parece compatível com uma gestão administrativa responsável, orientada pelos princípios da eficiência e da racionalização de recursos públicos.
O presente artigo parte dessa constatação inicial, mas propõe um deslocamento analítico. Em vez de indagar apenas sobre a legalidade formal da medida — questão relevante, porém insuficiente — busca-se compreender os efeitos sistêmicos de uma política pública que passa a reorganizar o acesso a procedimentos administrativos com base na escassez institucional do próprio Estado. Em termos mais diretos, a reflexão aqui desenvolvida questiona o impacto jurídico de um modelo no qual a limitação administrativa deixa de ser tratada como um problema contingente e passa a operar como critério estrutural de funcionamento do sistema de patentes.
Ao adotar uma abordagem didática, mas conceitualmente rigorosa, o texto pretende demonstrar que a suspensão do exame prioritário em telecomunicações não constitui apenas um episódio isolado de gestão do backlog. Trata-se, antes, de um sintoma de transformação mais profunda, capaz de afetar a isonomia procedimental, a previsibilidade do sistema e a própria segurança jurídica dos agentes econômicos. É a partir desse enquadramento que se examinam, nos tópicos seguintes, os limites, as contradições e os riscos decorrentes da incorporação da escassez administrativa como variável normativa implícita na política de propriedade industrial.
2. O exame prioritário e o PPH: finalidade, funcionamento e limites
Para compreender o alcance da Portaria nº 17/2025, é necessário esclarecer, de forma simples, o que é o exame prioritário e qual o papel do PPH dentro do sistema de patentes. Sem essa etapa, o debate corre o risco de parecer excessivamente abstrato para o leitor não familiarizado com a matéria.
Em regra, todo pedido de patente segue uma ordem cronológica de análise. Isso significa que o exame técnico — responsável por verificar requisitos como novidade, atividade inventiva e aplicação industrial — ocorre conforme a posição do pedido na fila administrativa. Em razão do elevado número de depósitos, esse intervalo pode se estender por vários anos, produzindo efeitos econômicos relevantes para o titular da tecnologia.
O exame prioritário surge como uma exceção a essa lógica geral. Ele não altera os critérios técnicos de concessão da patente, mas antecipa o momento da análise, permitindo que certos pedidos “pulem a fila”. A justificativa para essa antecipação varia conforme o caso: pode estar ligada à condição pessoal do requerente, à natureza social da tecnologia ou, como no caso do PPH, à existência de um exame técnico prévio realizado por outro país.
O Patent Prosecution Highway baseia-se em um raciocínio pragmático. Se um escritório de patentes estrangeiro já examinou determinado pedido e reconheceu que ele atende aos requisitos técnicos essenciais, a autoridade nacional pode utilizar esse trabalho como referência, reduzindo tempo e esforço na análise. Não se trata de concessão automática, mas de aproveitamento racional de informação técnica já produzida, em um ambiente de cooperação internacional.
Esse mecanismo atende, simultaneamente, a dois objetivos centrais. De um lado, beneficia o requerente, que obtém uma resposta mais rápida do Estado e pode planejar investimentos com maior previsibilidade. De outro, atende ao interesse público, ao permitir que a Administração concentre recursos em pedidos mais complexos ou inéditos, otimizando sua capacidade decisória.
Importa destacar que o exame prioritário, inclusive o PPH, nunca foi concebido como um direito absoluto. Trata-se de uma faculdade administrativa condicionada ao cumprimento de requisitos objetivos e à disponibilidade operacional do órgão responsável. Ainda assim, sua previsibilidade e continuidade sempre desempenharam papel relevante na confiança dos agentes econômicos no sistema de patentes como um todo.
É exatamente nesse ponto que se insere a relevância da Portaria nº 17/2025. Ao suspender, ainda que temporariamente, o acesso ao exame prioritário para um setor tecnológico específico — telecomunicações — a medida não elimina o instituto, mas redefine seus contornos práticos. O que antes operava como um instrumento geral de racionalização administrativa passa a ser seletivamente restringido em função da complexidade técnica do próprio setor.
Essa alteração desloca o debate do plano meramente procedimental para uma dimensão mais ampla. Se o exame prioritário existe para lidar com limitações administrativas, a suspensão justamente nos casos em que essas limitações são mais evidentes introduz uma tensão conceitual relevante. Em termos didáticos, o sistema passa a dizer que quanto mais complexo o objeto da inovação, menor a chance de acesso a mecanismos de aceleração, não por razões jurídicas ou técnicas inerentes ao pedido, mas por dificuldades estruturais do Estado.
É a partir dessa constatação que o artigo avança para a análise crítica da Portaria propriamente dita, examinando como a escassez administrativa deixa de ser um dado circunstancial e passa a operar como critério implícito de reorganização do sistema de patentes.
3. A Portaria nº 17/2025: quando a gestão do backlog redefine o acesso ao procedimento
A Portaria nº 17/2025 apresenta-se, formalmente, como uma resposta administrativa a um problema conhecido: a limitação da capacidade técnica para examinar pedidos de patente em determinados setores tecnológicos. No caso específico das telecomunicações, classificadas sob o código IPC principal H04, a Administração reconhece que o volume e a complexidade dos pedidos superam, ao menos temporariamente, sua estrutura operacional disponível. A solução adotada foi a suspensão do acesso a mecanismos de exame prioritário, inclusive o PPH, mantendo-se apenas exceções ligadas a condições pessoais do requerente, como idade avançada, deficiência, doenças graves ou enquadramento como startup.
Sob uma leitura imediata, a medida parece coerente com uma lógica de gestão responsável. Se os recursos são escassos, seria razoável concentrá-los onde o retorno administrativo é mais eficiente, evitando promessas procedimentais que não podem ser cumpridas. Esse raciocínio dialoga diretamente com o princípio da eficiência, amplamente incorporado ao discurso contemporâneo da Administração Pública.
Entretanto, uma análise mais detida revela que a Portaria opera um deslocamento relevante no funcionamento do sistema. O que está em jogo não é apenas a suspensão de um benefício procedimental, mas a introdução de um novo critério prático de diferenciação entre pedidos de patente. Pela primeira vez de forma tão explícita, o acesso a vias aceleradas de exame deixa de depender exclusivamente de características do requerente ou do histórico do pedido e passa a ser condicionado à área tecnológica à qual a invenção pertence.
Esse ponto merece ser explicado com cuidado. Tradicionalmente, quando o Estado limita o acesso a determinado procedimento, faz isso com base em fatores externos ao mérito do setor regulado: urgência social, vulnerabilidade do requerente ou racionalização de fluxos administrativos. A Portaria nº 17/2025 adota lógica diversa. Ela parte da premissa de que certos campos tecnológicos são mais difíceis de examinar e, justamente por isso, devem ser temporariamente afastados dos mecanismos de aceleração.
Em termos didáticos, o sistema passa a funcionar da seguinte forma: quanto maior a complexidade técnica da inovação, maior a probabilidade de ela permanecer na fila ordinária de exame. A dificuldade do Estado em lidar com determinados pedidos deixa de ser um problema interno de gestão e passa a repercutir diretamente sobre a forma como os direitos são processados. Não se trata de negar o direito à patente, mas de redefinir o tempo e o caminho de acesso à tutela administrativa, com base em limitações institucionais.
Esse movimento produz um efeito silencioso, porém relevante. A escassez administrativa — isto é, a insuficiência de recursos técnicos e humanos — deixa de ser tratada como uma circunstância transitória a ser superada e passa a ser incorporada como dado estruturante do sistema. A Portaria não apenas reconhece a limitação; ela a transforma em critério organizador do procedimento.
A consequência jurídica dessa escolha não é imediatamente perceptível, sobretudo para o leitor leigo. Afinal, não há supressão expressa de direitos nem alteração legislativa. Contudo, ao condicionar o acesso ao exame prioritário à facilidade de análise do setor tecnológico, a Administração introduz uma forma indireta de seletividade procedimental. Pedidos igualmente válidos sob o ponto de vista jurídico passam a ser tratados de maneira distinta em razão de fatores que não decorrem do comportamento do requerente, mas da capacidade estatal de resposta.
É nesse ponto que a Portaria nº 17/2025 ultrapassa o campo da mera gestão administrativa e passa a suscitar questões de ordem sistêmica. A eficiência, que deveria funcionar como princípio orientador da melhoria do serviço público, começa a operar como filtro de acesso diferenciado ao próprio procedimento. A fila deixa de ser apenas cronológica e passa a ser, ainda que implicitamente, tecnológica.
A partir dessa constatação, torna-se possível avançar para a análise do impacto dessa seletividade sobre princípios como isonomia procedimental, previsibilidade e segurança jurídica — temas que serão desenvolvidos no item seguinte, a partir de uma perspectiva acessível, mas conceitualmente rigorosa.
4. Isonomia procedimental e a seletividade invisível do sistema
A ideia de isonomia costuma ser associada, de forma intuitiva, ao tratamento igual entre pessoas que se encontram em situações semelhantes. No campo do direito administrativo, contudo, a isonomia assume contornos mais amplos. Ela não se limita à igualdade entre sujeitos, mas alcança também a forma como o Estado organiza e aplica seus procedimentos, especialmente quando esses procedimentos condicionam o exercício de direitos.
No sistema de patentes, a isonomia procedimental significa que pedidos que preencham os mesmos requisitos jurídicos devem, em princípio, ter acesso às mesmas vias administrativas, salvo quando exista justificativa objetiva, previamente definida e racionalmente relacionada à finalidade do procedimento. Essa igualdade não impede diferenciações, mas exige que elas sejam transparentes, previsíveis e fundadas em critérios que não distorçam o próprio funcionamento do sistema.
A Portaria nº 17/2025 introduz uma diferenciação que, embora formalmente neutra, produz efeitos assimétricos relevantes. Ao suspender o exame prioritário para pedidos vinculados a determinado setor tecnológico, o ato administrativo cria uma distinção baseada não no comportamento do requerente, nem na natureza jurídica do pedido, mas na dificuldade do Estado em processar aquele tipo específico de demanda. Trata-se de uma seletividade que não se anuncia como tal, mas que opera de maneira silenciosa.
Do ponto de vista didático, pode-se dizer que o sistema passa a tratar de forma diferente pedidos igualmente válidos apenas porque alguns são mais trabalhosos para a Administração. O resultado é uma inversão lógica: em vez de o procedimento se adaptar ao direito, é o direito que passa a se adaptar às limitações procedimentais. Essa inversão não elimina a igualdade formal, mas afeta a igualdade material no acesso à resposta estatal em tempo razoável.
Esse efeito seletivo torna-se ainda mais sensível quando se considera que o exame prioritário não altera o conteúdo da decisão, mas apenas o seu tempo. Ocorre que, em setores de inovação rápida, o tempo é elemento central do valor jurídico e econômico da patente. Um atraso prolongado pode comprometer estratégias de mercado, reduzir a atratividade de investimentos e esvaziar, na prática, a utilidade da proteção buscada. Assim, diferenciar procedimentos com base na área tecnológica significa, indiretamente, diferenciar a efetividade do próprio direito.
Outro aspecto relevante diz respeito à previsibilidade. A confiança no sistema administrativo não decorre apenas da existência de normas claras, mas da estabilidade dos caminhos pelos quais os direitos são processados. Quando mecanismos de aceleração são suspensos sem horizonte temporal definido, o requerente deixa de conseguir antecipar o tempo necessário para a obtenção de uma decisão. O procedimento torna-se formalmente correto, porém materialmente incerto.
Essa incerteza não afeta todos os setores de maneira uniforme. Ao incidir sobre áreas tecnológicas mais complexas e dinâmicas, a suspensão do exame prioritário reforça um paradoxo: justamente nos campos em que a rapidez decisória é mais relevante, o sistema passa a operar de forma mais lenta. A isonomia procedimental, nesse contexto, não é violada de maneira explícita, mas erodida pela forma como a escassez administrativa é distribuída.
O ponto central, portanto, não é afirmar que toda diferenciação procedimental seja ilegítima, mas evidenciar que, quando essa diferenciação se baseia exclusivamente na conveniência administrativa, ela tende a produzir um desequilíbrio estrutural. A seletividade deixa de ser exceção justificada e passa a integrar o funcionamento ordinário do sistema, sem debate público amplo e sem critérios normativos mais densos.
É a partir dessa erosão silenciosa da isonomia e da previsibilidade que se impõe a reflexão desenvolvida no item seguinte: os efeitos dessa lógica sobre a segurança jurídica e sobre a confiança dos agentes no sistema de patentes como instrumento estável de proteção à inovação.
5. Segurança jurídica, previsibilidade temporal e confiança no sistema
A segurança jurídica é frequentemente associada à estabilidade das normas e à clareza das regras aplicáveis. No entanto, em sistemas administrativos complexos — como o de patentes — ela se projeta também sobre a previsibilidade do procedimento, especialmente no que se refere ao tempo de resposta do Estado. Em outras palavras, não basta saber qual regra será aplicada; é igualmente relevante saber quando a decisão será proferida.
No campo da propriedade intelectual, o tempo não é um elemento acessório. A utilidade econômica de uma patente está diretamente ligada à rapidez com que o direito é reconhecido e pode ser exercido de forma plena. Setores caracterizados por ciclos tecnológicos curtos, inovação incremental constante e alta competição dependem de decisões administrativas tempestivas para que a proteção jurídica cumpra sua função de estímulo à inovação.
Nesse contexto, os mecanismos de exame prioritário desempenham papel fundamental. Ainda que não garantam o resultado do pedido, eles oferecem ao requerente um horizonte temporal mais definido, permitindo planejamento estratégico, atração de investimentos e tomada de decisões informadas. Quando esses mecanismos são suspensos sem previsão clara de retomada, o sistema perde um de seus principais fatores de estabilização.
A Portaria nº 17/2025 introduz justamente esse elemento de incerteza. Ao afastar, por tempo indeterminado, o acesso ao exame prioritário em um setor específico, o Estado sinaliza que a duração do procedimento passa a depender de variáveis institucionais não controláveis pelo requerente. A previsibilidade, que antes se apoiava em critérios objetivos, passa a ser condicionada à capacidade administrativa do momento.
Essa instabilidade procedimental não equivale a uma violação direta da legalidade, mas produz efeitos relevantes sobre a confiança no sistema. Quando os caminhos administrativos se tornam voláteis, os agentes econômicos passam a incorporar o risco institucional como variável decisiva. O resultado é um ambiente em que o direito permanece formalmente íntegro, mas materialmente enfraquecido em sua capacidade de orientar comportamentos e expectativas legítimas.
6. Eficiência administrativa como critério estrutural: riscos de normalização da exceção
O princípio da eficiência ocupa posição central no discurso contemporâneo da Administração Pública. Ele orienta a busca por melhores resultados com os recursos disponíveis, estimulando racionalização, priorização e gestão estratégica. O problema não está na eficiência em si, mas na forma como ela é operacionalizada quando os recursos se mostram estruturalmente insuficientes.
A Portaria nº 17/2025 revela um movimento sutil, porém significativo: a eficiência deixa de funcionar apenas como diretriz para aprimorar a atuação administrativa e passa a operar como critério estrutural de reorganização do próprio sistema. Em vez de conduzir à superação das limitações institucionais, a escassez passa a ser internalizada como dado permanente, justificando a suspensão seletiva de procedimentos.
Esse deslocamento produz um risco relevante: a normalização da exceção. Medidas concebidas como temporárias tendem a se estabilizar quando não acompanhadas de estratégias claras de superação do problema subjacente. O que se apresenta como resposta contingente à limitação técnica pode se converter em modelo recorrente de gestão, no qual determinados setores convivem de forma contínua com procedimentos mais lentos e menos previsíveis.
Em termos didáticos, o sistema passa a funcionar sob a lógica de que algumas áreas tecnológicas devem aceitar um grau maior de incerteza procedimental como custo inevitável de sua complexidade. Essa lógica, embora pragmática, desloca o ônus da ineficiência institucional para os próprios titulares de direitos, sem que haja debate normativo mais amplo sobre seus impactos de longo prazo.
O risco sistêmico não está na adoção pontual de medidas de contenção, mas na ausência de mecanismos que impeçam sua cristalização. Quando a exceção se torna rotina, a eficiência deixa de ser instrumento de melhoria e passa a ser fator de diferenciação estrutural, redefinindo silenciosamente o acesso à tutela administrativa.
É a partir desse cenário que se impõe, nas considerações finais, uma reflexão mais ampla: não sobre a validade isolada da Portaria, mas sobre os limites de um modelo de propriedade intelectual que começa a operar com base na gestão da escassez, e não na promessa de efetividade do direito como elemento central do estímulo à inovação.
7. Considerações finais
A suspensão do exame prioritário para pedidos de patente no setor de telecomunicações, promovida pela Portaria nº 17/2025, revela um fenômeno que ultrapassa a esfera de uma decisão administrativa pontual. Embora formalmente amparada em argumentos de eficiência e capacidade técnica, a medida expõe uma transformação mais profunda no modo como o sistema de patentes passa a lidar com suas próprias limitações institucionais.
Ao longo do texto, buscou-se demonstrar que o ponto central da discussão não reside na legalidade isolada da Portaria, nem na legitimidade do esforço administrativo de gestão do backlog. O aspecto mais relevante está no fato de que a escassez de recursos — tradicionalmente compreendida como problema a ser enfrentado pela Administração — passa a operar, ainda que de forma implícita, como critério estruturante do acesso aos procedimentos. Essa mudança desloca o eixo do sistema, fazendo com que o tempo de resposta do Estado deixe de ser apenas uma variável operacional e passe a influenciar, de maneira diferenciada, a efetividade dos direitos conforme o setor tecnológico envolvido.
A incorporação da escassez administrativa como dado normativo produz efeitos silenciosos, mas relevantes. A isonomia procedimental é tensionada não por discriminações explícitas, mas pela redistribuição desigual da demora administrativa. A previsibilidade, elemento essencial da segurança jurídica, torna-se mais frágil quando vias procedimentais são suspensas sem horizonte temporal definido. E a confiança no sistema de patentes, enquanto instrumento de estímulo à inovação, passa a depender de fatores institucionais que escapam ao controle dos titulares dos direitos.
Esse cenário não conduz, necessariamente, à conclusão de que toda diferenciação procedimental seja ilegítima ou de que a Administração deva ignorar suas limitações práticas. O que se pretende evidenciar é a necessidade de cautela quando soluções excepcionais tendem a se estabilizar e quando medidas de contenção passam a substituir, de forma duradoura, políticas estruturais de fortalecimento institucional. A eficiência administrativa, quando elevada à condição de critério estrutural permanente, corre o risco de deixar de servir à efetividade do direito para, inadvertidamente, redefini-la.
Em última análise, o debate suscitado pela Portaria nº 17/2025 convida a uma reflexão mais ampla sobre o modelo de propriedade intelectual adotado no país. Um sistema que reconhece a centralidade da inovação para o desenvolvimento econômico e tecnológico precisa assegurar não apenas normas substantivas adequadas, mas também procedimentos estáveis, previsíveis e capazes de responder, em tempo razoável, às demandas que ele próprio estimula. Quando a exceção se normaliza, o risco não está apenas na morosidade administrativa, mas na gradual erosão da promessa de proteção efetiva que sustenta o próprio sistema de patentes.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 dez. 2025.
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 maio 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm. Acesso em: 22 dez. 2025.
BRASIL. Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Portaria nº 17, de 16 de dezembro de 2025. Suspende temporariamente os requisitos de exame prioritário, incluindo o Patent Prosecution Highway (PPH), para pedidos com classificação IPC principal H04. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 16 dez. 2025.
INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI). Patent Prosecution Highway (PPH): diretrizes gerais. Rio de Janeiro: INPI, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/patentes/exame-prioritario/pph. Acesso em: 22 dez. 2025.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL (OMPI). Patent Prosecution Highway (PPH): overview and objectives. Geneva: WIPO, 2024. Disponível em: https://www.wipo.int/patents/en/topics/pph.html. Acesso em: 22 dez. 2025.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 36. ed. São Paulo: Atlas, 2023.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024.
OCDE. Intellectual property and innovation: policy challenges and responses. Paris: OECD Publishing, 2019. Disponível em: https://www.oecd.org/sti/intellectual-property-and-innovation.htm. Acesso em: 22 dez. 2025.