Dezembro e a Ética do Desconforto

23/12/2025 às 16:51
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Dezembro e a Ética do Desconforto

Há épocas do ano que não pedem celebração, mas silêncio. Dezembro, paradoxalmente, é uma delas. Enquanto as luzes se multiplicam nas fachadas e as palavras “amor”, “perdão” e “fraternidade” são repetidas como mantras publicitários, algo se rompe para quem observa com atenção. Não se trata de melancolia gratuita, nem de um desânimo passageiro. Trata-se de um vazio específico: o vazio produzido quando a estética da bondade suplanta a ética da existência.

Durante a maior parte do ano, a sociedade se move sob o signo da indiferença funcional. Naturalizam-se desigualdades, violências sutis, exclusões estruturais. Vive-se sob a lógica do desempenho, do acúmulo, do hedonismo eficiente — aquele que não pergunta pelo outro, desde que o próprio prazer esteja garantido. Então chega dezembro, e com ele uma exigência tácita: agora é preciso ser humano. Amar. Perdoar. Celebrar. Como se a humanidade pudesse ser comprimida em duas semanas e suspensa no restante do calendário.

Esse ritual revela mais do que esconde. A fraternidade com data marcada denuncia sua própria fragilidade. O afeto que precisa ser encenado perde densidade ética e se transforma em mercadoria simbólica. Compra-se o gesto, embala-se o sentimento, posta-se a virtude. Quando o amor vira protocolo e o perdão se converte em performance social, o sentido se esvai. O vazio que emerge, nesse contexto, não é ausência de valores — é recusa ao simulacro.

Há também o que se poderia chamar de hedonismo compensatório. Após meses de competição, cansaço e endurecimento afetivo, o sistema autoriza um breve excesso: comer demais, beber demais, gastar demais, abraçar demais. Não por transformação interior, mas por alívio momentâneo. É uma catarse controlada, que permite seguir igual em janeiro. A pausa para a humanidade não questiona o modo de vida; apenas o anestesia.

Para quem mantém um olhar crítico, esse contraste é insuportável. A lucidez isola. Ver a hipocrisia não traz conforto; traz estrangeiridade. Enquanto muitos se entregam à celebração sem fissuras, quem percebe as estruturas que permanecem intactas sente-se deslocado, quase inconveniente. O vazio, então, assume outro estatuto: deixa de ser falta e passa a ser clareza. Uma clareza que dói porque não encontra coro.

Talvez por isso dezembro seja tão difícil. Não porque falte sentido, mas porque sobra um sentido que não encontra espaço na festa. Um sentido que se recusa a compactuar com a suspensão temporária da ética. Um sentido que sabe que a dor do mundo não entra em recesso e que a injustiça não respeita feriados.

Diante disso, insistir em “entrar no clima” pode ser uma forma de violência contra si. Habitar o desconforto, ao contrário, pode ser um gesto de integridade. Aceitar a solidão da consciência não como falha, mas como consequência de não aceitar respostas fáceis. Recusar o teatro não por amargura, mas por fidelidade ao real.

Se existe algum Natal possível nesse cenário, talvez ele seja subterrâneo. Um Natal sem palco, sem anúncio, sem plateia. Um Natal que acontece no silêncio, na escrita, na atenção discreta ao outro, em gestos que não pedem reconhecimento porque sabem que o bem, quando é ético, dispensa iluminação excessiva.

Ser estrangeiro nessa época pode ser o preço da lucidez. E talvez também seja sua dignidade.

Sobre o autor
Mauro Vasni Paroski

Juiz titular de Vara do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Mestre em Direito Negocial (área de concentração em Direito Processual Civil), pela Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).︎ Doutorando em Direitos Sociais na Universidad de Castilla-La Mancha - ESPANHA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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