O Cristo Apátrida e a Ética da Exclusão
Da estetização do sagrado à precarização jurídica do humano
Resumo
O presente artigo propõe uma releitura crítica da figura de Jesus Cristo a partir da desconstrução do imaginário do “Jesus de Presépio”, entendido como símbolo estetizado, pacificado e politicamente neutralizado, em oposição ao “Cristo Apátrida”, compreendido como sujeito historicamente situado na condição de refugiado e portador de direitos negados. A partir de uma abordagem interdisciplinar, que articula sociologia crítica, teoria política, filosofia do direito, ética da alteridade e biopolítica, analisa-se a indiferença funcional característica das sociedades contemporâneas, a solidariedade sazonal associada ao Natal e o paradoxo estrutural dos direitos humanos frente à exclusão do estrangeiro. Sustenta-se que a estetização do sagrado opera como mecanismo simbólico de ocultação da precariedade do outro, ao passo que a recuperação da figura do Cristo apátrida impõe uma ética do desconforto como fundamento de uma responsabilidade política, jurídica e moral efetiva.
Palavras-chave: Natal; Refugiados; Direitos Humanos; Biopolítica; Ética da Alteridade.
Abstract
This article proposes a critical reinterpretation of the figure of Jesus Christ through the deconstruction of the symbolic imagery of the “Nativity Jesus,” understood as an aestheticized, pacified, and politically neutralized figure, in contrast to the concept of the “Stateless Christ,” conceived as a historically situated subject in the condition of a refugee and bearer of denied rights. Drawing on an interdisciplinary framework that articulates critical sociology, political theory, philosophy of law, biopolitics, and the ethics of alterity, the study examines the phenomenon of functional indifference in contemporary societies, the seasonal solidarity associated with Christmas rituals, and the structural paradox of human rights in the context of the exclusion of the foreigner. It argues that the aestheticization of the sacred operates as a symbolic mechanism that obscures human precariousness, while the recovery of the Stateless Christ reintroduces an ethics of discomfort as the foundation for political, legal, and moral responsibility. The article concludes that the depoliticization of the Christ figure contributes to the normalization of exclusion and that a critical re-engagement with its historical and ethical dimensions is essential for confronting the limits of human rights in modern legal orders.
Keywords: Statelessness; Refugees; Human Rights; Biopolitics; Ethics of Alterity.
1 Introdução
A figura de Jesus Cristo, no imaginário ocidental contemporâneo, passou por um processo contínuo de neutralização simbólica. Progressivamente dissociado de sua materialidade histórica e de sua potência política, Cristo tornou-se um elemento ornamental, funcional à lógica do consumo e da conciliação social. O chamado “Jesus de Presépio” representa o ápice desse processo: imóvel, silencioso, descontextualizado e inofensivo.
Esse deslocamento não é apenas teológico, mas profundamente sociopolítico. A estetização do sagrado converte a ética da responsabilidade em ritual episódico, reduzindo a fraternidade a um gesto performativo circunscrito a datas específicas do calendário. O Natal, nesse contexto, deixa de ser um evento de ruptura e passa a operar como um mecanismo de compensação simbólica, capaz de aliviar momentaneamente a culpa coletiva sem produzir transformações estruturais.
Em oposição a essa figura pacificada, este artigo propõe a recuperação do Cristo Apátrida: o recém-nascido perseguido pelo poder soberano, forçado ao exílio, privado de território e de pertencimento jurídico. Trata-se de uma leitura que reinscreve o nascimento de Jesus na gramática contemporânea da exclusão, aproximando-o da condição moderna do refugiado, do indocumentado e do sujeito precarizado.
O objetivo central do trabalho é demonstrar que a negação dessa dimensão política do Cristo contribui para a naturalização da indiferença funcional e para a legitimação de uma ética sazonal, incapaz de enfrentar a precariedade estrutural do outro.
2 Indiferença funcional e humanidade descartável
As sociedades capitalistas tardias operam sob uma racionalidade marcada pela eficiência, pela produtividade e pela utilidade econômica. Nesse contexto, a dignidade humana, embora formalmente reconhecida nos discursos normativos, torna-se condicional à funcionalidade sistêmica. Robert Castel (1998) descreve esse fenômeno como a produção de zonas de vulnerabilidade, nas quais determinados sujeitos passam a existir em estado de permanente instabilidade social.
A exclusão contemporânea não se dá prioritariamente pela violência explícita, mas pela invisibilização. Pierre Bourdieu (1997) já advertia que a dominação simbólica opera com maior eficácia quando se torna imperceptível. O sujeito descartável não é eliminado; é tornado irrelevante. Esse processo pode ser definido como indiferença funcional: uma forma de exclusão que suspende o reconhecimento político e jurídico sem negar formalmente a humanidade do outro.
O refugiado, o pobre urbano, o migrante irregular e o trabalhador informal ocupam esse espaço liminar. São corpos presentes, mas politicamente silenciosos. Não mobilizam políticas públicas estruturais porque não se encaixam nas métricas de produtividade, consumo e estabilidade.
O Natal, nesse cenário, emerge como um ritual de suspensão temporária dessa indiferença. A solidariedade sazonal funciona como uma válvula simbólica de escape, permitindo que a ordem social se mantenha intacta ao longo do restante do ano. Nancy Fraser (2009) observa que tais gestos de reconhecimento simbólico, quando desvinculados de redistribuição material, operam mais como legitimação do status quo do que como transformação social.
3 Biopolítica, soberania e produção da vida nua
A narrativa bíblica da fuga da Sagrada Família para o Egito revela uma dimensão estrutural da política moderna: o poder soberano de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Michel Foucault (2008) descreveu esse deslocamento como a passagem de um poder centrado no direito de matar para uma biopolítica orientada à gestão da vida.
Herodes, ao ordenar o massacre das crianças, exerce um poder soberano clássico, instaurando um estado de exceção que suspende as garantias ordinárias. Nesse contexto, Jesus torna-se o paradigma da vida nua, conforme formulado por Giorgio Agamben (2002): uma existência reduzida à sua dimensão biológica, desprovida de proteção jurídica efetiva.
A vida nua não é simplesmente vulnerável; ela é juridicamente abandonada. Está incluída no ordenamento apenas na medida em que pode ser excluída. Esse mecanismo permanece central na gestão contemporânea dos fluxos migratórios, nos campos de refugiados e nas políticas de contenção fronteiriça.
Achille Mbembe (2018), ao desenvolver o conceito de necropolítica, amplia essa análise ao demonstrar como certos corpos são sistematicamente expostos à morte lenta, à precariedade extrema e à suspensão de direitos. O refugiado moderno, assim como o Cristo apátrida, vive sob a constante ameaça da eliminação simbólica ou física.
4 O paradoxo dos direitos humanos e o vazio jurídico
Hannah Arendt (1989) identificou, de forma pioneira, o paradoxo fundamental dos direitos humanos: embora proclamados como universais, eles dependem, na prática, do pertencimento a uma comunidade política organizada. O “direito a ter direitos” pressupõe a existência de um Estado que reconheça o indivíduo como cidadão.
Juridicamente, Herodes tentou "devolver" a ameaça através do extermínio, e o Egito funcionou como o Estado que garantiu o refúgio, cumprindo um princípio que hoje é violado sistematicamente em botes no Mediterrâneo ou em muros nas Américas. Isso demonstra que o "vazio jurídico" do Cristo é o mesmo que mata milhares hoje por falta de um "porto seguro".
O refugiado contemporâneo encarna esse paradoxo de maneira radical. Privado de cidadania, ele habita um vazio jurídico no qual sua condição humana não se traduz em garantias efetivas. Judith Butler (2015) observa que certas vidas são consideradas menos “choráveis”, isto é, menos dignas de luto, cuidado e proteção.
A celebração do nascimento de Jesus dissociada dessa condição política originária contribui para a naturalização desse vazio. O Cristo apátrida é substituído por um Cristo ornamental, incapaz de denunciar a falência estrutural do direito diante da exclusão.
5 O rosto do outro e a ética do desconforto
Diante da insuficiência do direito positivo, a questão desloca-se para o campo da ética. Emmanuel Levinas (1982) propõe uma ética fundada no encontro com o rosto do outro, entendido como presença que interpela e exige responsabilidade antes de qualquer mediação normativa.
Essa ética é radicalmente assimétrica e desconfortável. O rosto do outro rompe a autonomia do sujeito e impõe uma obrigação que não pode ser delegada ao Estado ou às instituições. Trata-se de uma responsabilidade que antecede a lei.
A cultura natalina dominante opera, paradoxalmente, no sentido oposto. Ao estetizar o sofrimento e ritualizar a fraternidade, ela neutraliza o apelo ético do rosto. O outro é transformado em símbolo, não em interpelação. O Cristo é adorado à distância para não ser reconhecido no refugiado, no pobre ou no estrangeiro.
6 Conclusão: O Natal subterrâneo como ética de resistência
O chamado “Natal subterrâneo” configura-se como uma prática de resistência ética e política. Ele não se realiza no espetáculo, mas na recusa da fraternidade performativa. Não busca consenso, mas fidelidade ao real.
Reconhecer o Cristo apátrida significa afirmar que a dignidade humana não pode ser condicionada à utilidade econômica, à cidadania formal ou à sazonalidade moral. Trata-se de um gesto político de denúncia e de memória incômoda.
Quando o direito falha em proteger o estrangeiro por considerá-lo inconveniente, cabe à filosofia, à literatura e ao pensamento crítico preservar essa memória. Não como consolo, mas como advertência: a humanidade não pode ser reduzida a um ritual de fim de ano.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FRASER, Nancy. Redistribuição ou reconhecimento? São Paulo: Boitempo, 2009.
LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 1982.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.