Atuação Reguladora da Anvisa, Compliance Sanitário e Proteção do Consumidor: Uma Análise Jurídico-Regulatória do Caso Needs/Bwell (Raia Drogasil)
Resumo
Este artigo analisa o recente caso em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária determinou a proibição da comercialização e da publicidade de medicamentos das marcas Needs e Bwell, ofertados pela Raia Drogasil S.A., bem como a restrição relativa a saneantes irregulares, por ausência de autorização e conformidade sanitária. A partir de fontes oficiais, examinam-se o enquadramento jurídico da medida, seus fundamentos normativos, sua natureza cautelar e seus reflexos na esfera do compliance regulatório, da proteção do consumidor e da tutela da saúde pública. A análise dialoga com a jurisprudência consolidada do STF e do STJ, evidenciando a legitimidade do poder de polícia sanitária, a centralidade do princípio da precaução e a prevalência do interesse público sanitário sobre interesses meramente econômicos.
Palavras-chave: Direito Sanitário; Anvisa; Compliance; Saúde Pública; Consumidor; Precaução.
Abstract
This article examines the recent decision of the Brazilian Health Regulatory Agency (Anvisa) to prohibit the commercialization and advertising of medicines marketed under the brands “Needs” and “Bwell,” offered by Raia Drogasil S.A., as well as irregular cleaning products. Based on official sources, the study analyzes the legal framework of the measure, its preventive and precautionary nature, and its regulatory relevance regarding sanitary compliance, consumer protection, and public health. The discussion is aligned with consolidated Brazilian Supreme Court (STF) and Superior Court of Justice (STJ) case law, which reinforces the legitimacy of sanitary police power, the centrality of the precautionary principle, and the precedence of public health over merely economic interests.
Keywords: Health Law; Anvisa; Regulatory Compliance; Public Health; Consumer Protection; Precautionary Principle.
Sumário: 1. Introdução — 2. Marco Normativo — 3. Reconstrução Fática e Jurídica — 4. Compliance e Responsabilidade Empresarial — 5. Consumidor e Saúde Pública — 6. Precaução e Proporcionalidade — 7. Conclusões — Referências
1. Introdução
A proteção sanitária no Brasil constitui dimensão essencial do Estado Democrático de Direito e integra o núcleo dos direitos fundamentais de segunda dimensão, cuja efetividade demanda atuação técnica, contínua e estruturada do poder público. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), enquanto autarquia sob regime especial, desempenha papel institucional estratégico na concretização do direito fundamental à saúde, previsto no art. 196 da Constituição Federal, operando como pilar do modelo regulatório sanitário brasileiro, com competências normativas, fiscalizatórias e decisórias voltadas à defesa da saúde coletiva.
Em dezembro de 2025, um episódio de significativa relevância jurídico-regulatória evidenciou esse protagonismo institucional: a Anvisa determinou a proibição do comércio e da propaganda de todos os medicamentos das marcas Needs e Bwell, ofertados pela empresa Raia Drogasil S.A. em plataformas digitais, além da restrição à distribuição e uso de produtos saneantes igualmente irregulares. A decisão baseou-se na ausência de autorização adequada, na inexistência de regularização sanitária exigida e na constatação de risco relevante à saúde pública, afetando, inclusive, terceiros que viessem a comercializar ou divulgar tais produtos
A medida não se limitou à notificação administrativa ou mera recomendação institucional, mas assumiu a forma de ato com natureza expressamente cautelar e preventiva, publicada no Diário Oficial da União, com detalhamento técnico e normativo, nos termos da Resolução-RE aplicável, reforçando a legitimidade, a fundamentação jurídica e a necessidade imediata de restrição.
Esse contexto revela a complexidade do caso: não se trata apenas de uma infração administrativa pontual, mas de situação que coloca em evidência a arquitetura do sistema de vigilância sanitária, os limites e alcances do poder de polícia sanitária estatal, o papel do princípio da precaução e os deveres reforçados de responsabilidade empresarial no setor farmacêutico.
Ao mesmo tempo, o episódio lança luz sobre o papel das grandes redes varejistas e marketplaces farmacêuticos na cadeia de suprimentos de produtos de saúde, especialmente no ambiente digital. O comércio eletrônico ampliou o alcance e a velocidade de circulação de medicamentos e produtos de saúde, o que, embora traga avanços sob a perspectiva de acesso e competitividade, também eleva o potencial de disseminação de riscos sanitários, exigindo mecanismos de governança mais sofisticados e atuação regulatória mais atenta.
Sob esse prisma, o caso Needs/Bwell transcende um evento isolado e se converte em oportunidade analítica para compreender a maturidade institucional do sistema brasileiro de vigilância sanitária, os contornos do compliance regulatório no setor de saúde e a centralidade da tutela do consumidor e da saúde pública como valores constitucionais prioritários.
2. Marco Normativo
O fundamento jurídico da atuação da Anvisa repousa inicialmente no texto constitucional. O art. 196 da Constituição Federal estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, devendo ser garantida mediante políticas sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e outros agravos. A própria menção expressa à redução de riscos evidencia, desde o plano constitucional, que a política sanitária brasileira tem natureza preventiva e precaucional, legitimando a adoção de medidas antecipatórias pelo Estado sempre que houver ameaça potencial à coletividade.
Em sede infraconstitucional, a Lei nº 9.782/1999 institui o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e define as competências da Anvisa, conferindo-lhe atribuição para regulamentar, controlar e fiscalizar produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária. Essa competência não é meramente declaratória, mas operativa, permitindo à Agência editar atos normativos, instaurar procedimentos fiscalizatórios, determinar medidas preventivas e, quando necessário, impor restrições, suspensões e proibições, nos termos do art. 7º, especialmente em seu inciso XV, que expressamente autoriza a adoção de medidas cautelares destinadas à proteção da saúde da população.
A Lei nº 6.360/1976 complementa esse arcabouço jurídico ao estabelecer a obrigatoriedade de registro sanitário, de autorização de funcionamento e de observância de requisitos técnicos rigorosos para a fabricação, distribuição e comercialização de medicamentos, correlatos e saneantes. O registro na Anvisa não constitui mera formalidade administrativa, mas condição material de validade e segurança sanitária, representando certificação pública de que determinado produto atende a padrões mínimos de qualidade, eficácia e segurança.
Além disso, o Regimento Interno da Anvisa, aprovado pela RDC nº 585/2021, organiza a estrutura decisória da Agência e confere competências específicas à Gerência-Geral de Inspeção e Fiscalização Sanitária para adoção de medidas preventivas e cautelares, como suspensão de comercialização, interdição de uso, recolhimento e proibição de divulgação. Foi no exercício direto dessas atribuições que se expediu a Resolução publicada no Diário Oficial da União, enquadrando o caso Needs/Bwell como ação de fiscalização sanitária, com motivação técnica expressamente fundamentada.
Esse arcabouço normativo é reforçado pela jurisprudência constitucional consolidada. O Supremo Tribunal Federal reconhece que a Anvisa exerce poder de polícia sanitária, dotado de natureza técnica qualificada, e que sua atuação está integrada ao dever constitucional de proteção da saúde pública. Da mesma forma, a jurisprudência do STJ reafirma a legitimidade e a presunção de legitimidade dos atos da Agência quando direcionados à proteção coletiva, especialmente em contextos de risco sanitário.
Assim, à luz do marco normativo vigente, a medida adotada pela Anvisa no caso Needs/Bwell não apenas encontra respaldo jurídico sólido, mas representa a materialização concreta de um modelo normativo que privilegia a proteção preventiva da saúde pública, a segurança do consumidor e a integridade do mercado de produtos de saúde.
3. Reconstrução Fática e Jurídica
A Anvisa, em 23 de dezembro de 2025, tornou pública a decisão de proibir a comercialização e a publicidade de todos os medicamentos das marcas Needs e Bwell ofertados pela Raia Drogasil S.A., nos portais drogasil.com e drogaraia.com, asseverando de modo expresso que a empresa não possuía autorização para produzir medicamentos e que tais produtos não estavam regularizados no sistema sanitário nacional.
. A medida não se restringiu à empresa varejista, alcançando qualquer pessoa física ou jurídica, ou veículo de comunicação que comercializasse ou divulgasse tais produtos, evidenciando a gravidade do risco sanitário e a necessidade de contenção ampla da circulação mercadológica.
No mesmo ato comunicacional, a Agência igualmente proibiu a distribuição e uso dos produtos saneantes da marca “Solubrillho Soluções de Limpeza”, destacando a inexistência de CNPJ da fabricante, bem como ausência de autorização de funcionamento — cenário que, além de violar os arts. 2º, 12, 50 e 59 da Lei nº 6.360/1976, afronta a lógica mais elementar de rastreabilidade e segurança sanitária.
A Resolução-RE publicada no Diário Oficial da União explicitou a natureza cautelar da medida, qualificando-a como “ações de fiscalização em vigilância sanitária” e fundamentando-a normativamente na Lei nº 9.782/1999 e na Lei nº 6.360/1976, com expressa referência ao art. 7º, XV, da Lei de criação da Anvisa, que autoriza a adoção de providências imediatas e protetivas em defesa da saúde coletiva.
Esse enquadramento jurídico encontra sólida ressonância na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. No Tema 500 da Repercussão Geral, o STF deixou assentado, de maneira inequívoca, o papel estruturante do registro sanitário e a centralidade da Anvisa como instância técnica legitimada à proteção da saúde pública. Na ementa vinculante do RE 657.718/MG (Rel. Min. Marco Aurélio), o Tribunal consignou literalmente:
“O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) por decisão judicial (…) A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.”
Esse trecho, ao vincular o Judiciário, reafirma que o registro sanitário é condição mínima de segurança sanitária. Se o Poder Judiciário não pode impor fornecimento de medicamento não registrado, com muito mais razão se legitima — e exige — a atuação administrativa restritiva quando tais produtos ingressam no mercado privado à margem do sistema regulatório.
Da mesma forma, em decisões no âmbito de controle de constitucionalidade e de interpretação da Lei nº 9.782/1999, o STF reconheceu que a Anvisa exerce poder de polícia sanitária qualificado, com competência normativa e fiscalizatória integrada ao dever constitucional de proteção da saúde pública. Essa compreensão reforça que atos administrativos como o expedido no presente caso não constituem excesso punitivo, mas expressão legítima e necessária do dever estatal de precaução.
Portanto, a reconstrução fática e jurídica do caso evidencia: (i) a existência de irregularidade sanitária relevante; (ii) a presença de risco potencial à saúde coletiva; (iii) a necessidade de atuação imediata e preventiva; e (iv) a aderência da medida da Anvisa ao arcabouço normativo e à jurisprudência constitucional consolidada.
4. Compliance e Responsabilidade Empresarial
O setor farmacêutico, pela própria natureza do objeto com que lida, está submetido a um regime jurídico de deveres reforçados de conformidade regulatória, governança técnica e responsabilidade ampliada. Grandes redes varejistas e marketplaces farmacêuticos não podem operar à margem do sistema de vigilância sanitária, sob pena de violarem não apenas normas administrativas, mas o próprio regime constitucional de proteção da saúde e do consumidor.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal confere densidade jurídica a esse dever. No já citado Tema 500, o STF deixa claro que o interesse sanitário não tolera flexibilizações indevidas, especialmente quando se trata de medicamentos sem registro. Ao afirmar que:
“A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial”,
o Supremo comunica, em termos inequívocos, que não há juridicidade possível na circulação de medicamentos à margem do crivo técnico-sanitário estatal — seja por via judicial, seja por via privada de mercado.
Esse entendimento se harmoniza com a lógica do princípio da precaução, cada vez mais assumido na jurisprudência constitucional e infraconstitucional brasileira como fundamento de medidas estatais preventivas em matéria sanitária. A Anvisa não está obrigada a aguardar a materialização do dano para agir: sua função institucional é justamente atuar antes, evitando que potenciais riscos se convertam em danos concretos.
O Superior Tribunal de Justiça também contribui para essa construção dogmática ao reconhecer, de maneira consistente, que empresas que atuam em segmentos sensíveis como saúde e medicamentos possuem deveres especiais de cautela e conformidade. A Corte tem reiteradamente afirmado que a proteção da saúde e da segurança do consumidor integra o núcleo da responsabilidade civil objetiva em matéria de consumo e que a atuação estatal preventiva compõe o desenho constitucional do direito à saúde.
Assim, no contexto do caso Needs/Bwell (Raia Drogasil), a exigência de compliance sanitário não constitui formalidade burocrática, mas obrigação jurídica estruturante. A ausência de conformidade regulatória, especialmente em medicamentos — bens jurídicos intrinsecamente ligados à vida e à integridade física —, compromete a confiança legítima do consumidor, viola o dever de segurança e coloca em risco valores constitucionais prioritários.
Por isso, a medida da Anvisa, além de juridicamente válida, revela-se tecnicamente necessária e constitucionalmente esperada, funcionando como instrumento de correção regulatória e reafirmação da responsabilidade empresarial em mercados de alta sensibilidade social.
5. Consumidor e Saúde Pública
A proteção do consumidor, especialmente em matéria relacionada à saúde, assume caráter estrutural no direito brasileiro, integrando o núcleo essencial do Estado Social constitucionalmente instituído. A comercialização de medicamentos sem registro ou sem autorização sanitária não representa mera irregularidade administrativa: trata-se de conduta que viola o dever constitucional de proteção da vida e da integridade física e afronta diretamente os princípios da confiança, da boa-fé objetiva e do dever de segurança.
O Supremo Tribunal Federal reconhece reiteradamente que a tutela sanitária é expressão direta do art. 196 da Constituição Federal e que não pode ser flexibilizada quando estiver em jogo risco ao bem jurídico saúde. No Tema 500 da Repercussão Geral, o STF afirmou, com literalidade absolutamente clara, que:
“O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) por decisão judicial (…) A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.”
Esse entendimento possui consequências imediatas para a esfera privada de mercado. Se sequer o Estado pode ser compelido a disponibilizar medicamento que não possua registro sanitário, isso significa que o ordenamento jurídico não admite a circulação de medicamentos sem a chancela da autoridade sanitária competente, reafirmando que o registro na Anvisa constitui verdadeiro filtro constitucional de proteção da vida, da saúde e do consumidor.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, consolidou orientação de que, nas relações de consumo envolvendo produtos de saúde, vigora um regime de responsabilidade reforçada, dada a hipervulnerabilidade do consumidor diante da assimetria técnica e informacional existente nesse setor. O STJ destaca que a tutela do consumidor, nesse contexto, não é apenas reparatória, mas também preventiva, alinhando-se à lógica do sistema constitucional de proteção à saúde.
A conjugação dessas premissas conduz a uma conclusão inequívoca: a medida da Anvisa não apenas protege a saúde pública, mas também concretiza a proteção constitucional do consumidor, impedindo que produtos sem respaldo regulatório sejam ofertados no mercado e evitando que a boa-fé e a confiança legítima sejam violadas pela presença de produtos potencialmente nocivos ou duvidosos em redes de grande capilaridade econômica.
6. Precaução e Proporcionalidade
A atuação da Anvisa no caso Needs/Bwell encontra suporte corroborado não apenas no princípio da precaução — que orienta a atuação preventiva diante de riscos sanitários potenciais e é partilhado pelo ordenamento jurídico brasileiro —, mas também na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que reconhece a importância de normas regulatórias da Anvisa como limitadoras de condutas empresariais quando a saúde e a segurança da coletividade estão em jogo.
Em um caso paradigmático julgado pelo STJ, relacionado a uma farmacêutica que suspendeu abruptamente o fornecimento de um medicamento implantável sem observar normas específicas da Anvisa, o Tribunal manteve a condenação da empresa por violação dos direitos sociais decorrentes da quebra injustificada de expectativas legítimas do público consumidor — decisão que endossa a lógica de proteção à confiança e à segurança incorporada nas regulações sanitárias:
“O registro do medicamento cria no público uma expectativa legítima sobre a segurança e a eficácia de seu uso, e o rompimento dessa expectativa gera intranquilidade social, tanto para quem está em tratamento quanto para potenciais consumidores.”
(REsp 2.040.311 – Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/01/2025, Quarta Turma do STJ; a corte manteve condenação de farmacêutica por suspender a produção e distribuição de implante hormonal sem observar prazo de norma da Anvisa).
Esse precedente é especialmente relevante sob o prisma do compliance regulatório corporativo porque o STJ expressamente reconhece que a observância de prazos e procedimentos normativos sanitários — tal como definidos pela Anvisa — integra a própria proteção jurídica da confiança legítima dos usuários de produtos de saúde. O Tribunal, ao manter a condenação, sinaliza que:
a normatividade sanitária da Anvisa não é secundária ao direito civil/consumerista, mas se integra ao núcleo da segurança jurídica e confiança do público;
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a violação injustificada de requisitos técnicos e não observância de normas sanitárias produz efeitos jurídicos lesivos que geram obrigações de indenizar;
a empresa assim violadora não apenas descumpre normas regulatórias, mas cria um dano social subjetivo e objetivo que merece resposta jurídica.
Essa orientação converge com a noção de que a proporcionalidade da medida sanitária estatal — ao suspender a comercialização e publicidade de produtos irregulares — decorre não apenas de um padrão técnico-administrativo, mas de um padrão jurídico que protege valores constitucionais e consumeristas agregados à própria saúde pública.
De forma integrada, podemos sintetizar a base jurisprudencial assim:
STF (Tema 500 / RE 657.718/MG) — reconhece que a ausência de registro sanitário impede a circulação regular de medicamentos, traduzindo uma proteção constitucional da saúde pública que vincula também o Judiciário.
STJ (REsp 2.040.311) — confirma que a observância de normas da Anvisa não é apenas técnica, mas produz expectativas legítimas de segurança e eficácia nos consumidores; sua violação incorre em responsabilidade civil e proteção ao consumidor.
Assim, a medida da Anvisa no caso Needs/Bwell se apresenta não apenas proporcional e precaucional, mas também consonante com a orientação consolidada das Cortes Superiores, que reconhecem que:
o mercado de produtos de saúde foi dotado de padrões técnicos-jurídicos que não podem ser relativizados sob pena de ofensa à proteção da vida, da saúde e da confiança legítima dos consumidores;
a atuação preventiva do Estado, articulada com o poder de polícia sanitária, assegura a segurança jurídica e o equilíbrio entre interesses públicos maiores e interesses privados menores;
a responsabilização empresarial pode advir não apenas de condutas que causem dano concreto, mas também da violação de normas de proteção sanitária, quando estas geram uma ruptura da expectativa legítima de segurança dos usuários.
Portanto, a atuação estatal no caso em análise — consistente com a normatividade e com a jurisprudência — não é excessiva, mas sim a tradução jurídica da primazia do interesse público sanitário sobre interesses puramente mercantis, reforçando que o compliance regulatório é dever jurídico vinculante, não mera recomendação de boa prática.
7. Conclusões
O caso Needs/Bwell — envolvendo a atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária em face de produtos comercializados pela Raia Drogasil S.A. sem a devida conformidade regulatória — configura episódio paradigmático na consolidação do modelo brasileiro de proteção sanitária, revelando, ao mesmo tempo, a maturidade institucional do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e os contornos jurídicos do compliance sanitário empresarial em mercados de alta sensibilidade social.
Do ponto de vista normativo, a medida adotada pela Anvisa encontra sólido fundamento na Constituição Federal, especialmente no art. 196, que consagra a saúde como direito fundamental e impõe ao Estado o dever de reduzir riscos e prevenir danos, bem como na Lei nº 9.782/1999 e na Lei nº 6.360/1976, que estruturam o regime de controle, registro e fiscalização sanitária. A Resolução-RE publicada no Diário Oficial da União, ao explicitar a natureza cautelar da intervenção, demonstra o correto emprego de instrumentos administrativos de caráter preventivo, em estrita consonância com o modelo legal vigente.
No plano fático, a decisão administrativa baseou-se em elementos objetivos: ausência de autorização de funcionamento adequada, inexistência de regularização sanitária e, em determinados produtos, inexistência até mesmo de fabricante identificado com CNPJ válido, como no caso dos saneantes, cenário este que compromete a rastreabilidade, a segurança e a confiabilidade do sistema de vigilância sanitária.
Não se tratou, pois, de atuação arbitrária ou desprovida de fundamento técnico, mas de providência necessária diante de risco sanitário concreto e relevante.
Sob a perspectiva jurisprudencial, verifica-se plena coerência entre a medida adotada e as diretrizes estabelecidas pelas Cortes Superiores. O Supremo Tribunal Federal, no Tema 500 (RE 657.718/MG), afirmou de maneira inequívoca que “a ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial”, consagrando a centralidade do registro sanitário como requisito de segurança e legitimidade. Esse entendimento, que traduz um raciocínio constitucional preventivo e precaucional, legitima ainda mais a utilização de instrumentos administrativos restritivos quando produtos não regularizados ingressam ou permanecem no mercado.
Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer, em precedentes recentes, que normas sanitárias da Anvisa constituem elementos estruturantes da proteção da confiança legítima e da segurança do consumidor em matéria de saúde, reafirma que o descumprimento de tais normas não é mero descuido burocrático, mas violação de dever jurídico relevante, apta a ensejar responsabilização. A jurisprudência, assim, harmoniza-se com a ideia de que a proteção sanitária é indissociável da proteção consumerista.
O caso também evidencia a exigência de padrões elevados de compliance regulatório corporativo. Empresas que atuam no setor farmacêutico — especialmente aquelas com grande capilaridade econômica e alcance social ampliado pelo comércio eletrônico — estão submetidas a deveres reforçados de governança, controle, rastreabilidade e conformidade normativa. A experiência revela que o compliance sanitário não pode ser tratado como acessório ou como mero requisito formal, mas como eixo estruturante da atividade empresarial responsável.
No que se refere à proporcionalidade, observa-se que a medida adotada é adequada, necessária e proporcional em sentido estrito. É adequada porque impede a circulação de produtos potencialmente irregulares; necessária porque não havia medida menos gravosa com igual capacidade protetiva; e proporcional porque a restrição pontual imposta sobre interesses econômicos privados se justifica amplamente diante do valor constitucional superior tutelado — a saúde pública.
Por fim, o caso reafirma uma premissa essencial do ordenamento jurídico brasileiro: em matéria de saúde, o Estado não deve aguardar que o dano se concretize para então agir; deve, ao contrário, intervir preventivamente, com fundamento técnico e respaldo jurídico, sempre que houver risco sanitário relevante. É exatamente isso que o episódio Needs/Bwell revela: um sistema regulatório que funciona, uma agência que exerce seu poder de polícia com responsabilidade técnica e fundamento normativo, um Judiciário que reconhece e prestigia esse papel, e um modelo de proteção sanitária e consumerista que reafirma a primazia da vida, da saúde e da confiança social sobre interesses meramente econômicos.
Assim, longe de representar exagero regulatório, a atuação da Anvisa no presente caso constitui expressão legítima, necessária e constitucionalmente esperada da política pública sanitária brasileira, reafirmando a importância do registro sanitário, da conformidade regulatória, da prevenção de riscos e da proteção do consumidor como pilares de um Estado comprometido com a dignidade humana e com a tutela efetiva da saúde coletiva.
Referências:
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AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 585, de 10 de dezembro de 2021. Aprova o Regimento Interno da Anvisa. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 dez. 2021.
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