Quando usam seu poder assimétrico para impor sanções contra juízes no exterior (por exemplo, contra Alexandre de Moraes no Brasil ou Nicolas Guillou na Europa), impedindo-os de acessar suas contas bancárias, os EUA efetivamente paralisam e tornam ineficaz o Direito Privado em outros países soberanos. Nesse caso, estamos lidando com um tipo diferente de império. Um cujo poder depende fundamentalmente do controle da internet e dos recursos computacionais e de comunicação online utilizados pelo sistema bancário global.
Quando a UE faz o mesmo de forma abusiva com europeus em território da Europa, o fenômeno é um pouco diferente. Trata-se de um novo tipo de Estado dual.
No Estado dual nazista original, as pessoas consideradas inferiores ou inimigas do regime perdiam sua nacionalidade e seus direitos de personalidade. Em seguida, perdiam seus empregos, profissões e bens. Em algum momento, elas eram presas, transportadas e mantidas em campos de concentração até serem exterminadas.
No novo Estado dual tecnológico, as “personalidades digitais” das pessoas são desligadas ou bloqueadas com alguns cliques, sem direito à defesa ou ao devido processo legal. A existência material delas é imediatamente afetada porque, hoje em dia, a “personalidade digital” tornou-se extremamente importante: sem acesso a serviços bancários e comerciais totalmente informatizados, uma pessoa não consegue fazer nada em lugar nenhum, nem mesmo comprar uma passagem aérea para fugir da opressão.
As vítimas do antigo Estado dual nazista tinham mais chances de escapar e, eventualmente, despertavam a empatia de alguns de seus algozes. Agora que tudo é informatizado e automatizado, não há contato pessoal nem qualquer possibilidade de empatia entre os algozes e as vítimas que decapitam à distância com eficiência infernal.
Os direitos humanos, que são atribuídos a todos seres humanos sem qualquer distinção pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, derivam da condição humana e são exigíveis em qualquer lugar contra qualquer autoridade nacional. Eles devem ser respeitados e aplicados pelos juízes dos países que fazem parte da ONU. Caso esses juízes se recusem a respeitar os direitos humanos de um cidadão ou de um grupo de cidadãos, o prejudicado ou grupo de prejudicados podem recorrer ao Comitê de Direitos Humanos da ONU. Onde existem outras organizações multilaterais com acordos de direitos humanos os prejudicados também podem recorrer a outros Tribunais Internacionais (Comissão de Direitos Humanos da OEA, Corte de Direitos Humanos da Europa).
Mas o Direito constitucional em geral e os Direitos Humanos em especial como nós o conhecemos é um fenômeno anterior à informatização total bancária e comercial do planeta, que possibilitou o surgimento das distorções que nós estamos vendo. Há apenas 35 anos, quando eu me tornei advogado, seria impossível cogitar o surgimento de um império americano de novo tipo baseado na assimetria tecnológica ou do novo estado dual tecnológico europeu. Contra as decisões administrativas tomadas sem qualquer supervisão judicial e colocadas em práticas com alguns cliques de teclado não existe possibilidade do ser humano afetado resistir ao abuso que ele sofre quando dua "personalidade virtual" é desligada para fins bancários e comerciais.
Mesmo que um juiz nacional local profira uma decisão em favor do cidadão afetado por uma decisão dos EUA ou da UE dificilmente essa decisão surtirá efeitos tecnológicos para desfazer ou amenizar os efeitos do abuso cometido à distância no ambiente virtual que imediatamente se transformaram em danos pessoais no mundo real. Decisões proferidas por Cortes internacionais, além demorarem muito para serem tomadas e não estarem ao alcance de todos, exigem sujeição voluntária dos Estados que fazem parte da ONU, OEA e União Europeia. Na prática, na maioria das vezes elas não surtem efeitos.
Será preciso um novo Direito para um novo mundo. É preciso cancelar tecnologicamente o poder conferido aos EUA e à UE pela assimetria tecnológica. Novos poderes devem ser conferídos aos juízes, mas a eficácia deles terão que fazer parte da arquitetura da internet. Mais importante, após o redesenho do sistema internacional de fluxo de dados bancários e comerciais a nova arquitetura colocada em funcionamento não poderá ser desligada pelos Estados nacionais ou por empresas privadas de tecnologia.
A "personalidade virtual" de cada ser humano deve ser considerada como um atributo de sua personalidade humana, com efeitos jurídicos imediatos tanto na esfera nacional quanto na internacional. E ela não poderá ser desligada com alguns cliques sem o devido processo legal em que sejam garantidos direito de defesa, produção de provas e examinação cruzada de provas produzidas, bem como assistência por advogado.
Tudo isso é juridicamente possível e tecnologicamente realizável. Mas existe um porém. Líderes políticos americanos e europeus irão simplesmente abrir mão do novo e imenso poder tecnológico assimétrico que conquistaram? A resposta é não. Autoridades públicas gostam de expandir seus poderes administrativos nunca de renunciar a eles. Além disso, a infraestrutura tecnológica que criou esse poder depende em grande medida de empresas privadas imensas e poderosas que historicamente tem resistido de maneira permanente a qualquer tipo de regulação ou intromissão do Direito Público.
Mergulhados nas distrações da sociedade do espetáculo digitalizado algoritmizado e oprimidos pela pobreza que se espalha como uma doença por causa do neoliberalismo dificilmente americanos e europeus se organizarão para fazer algo em defesa de suas "personalidades virtuais". Além disso, eles aprenderam a desconfiam das autoridades judiciárias que quase sempre se colocam ao lado do poder contra o cara comum regular.
O Direito constitucional e os Direitos Humanos então chegaram a um limite tecnologicamente imposto. Eles não tem meios de se expandir para o desenho da arquitetura da internet e podem agora ser desligados com grande facilidade como nós estamos vendo. E para piorar não existe esperança consistente de obter dos juízes nacionais e internacionais decisões eficazes que reabilitem "personalidades virtuais" inutilizadas à distância com alguns cliques que destroem vidas reais onde quer que as pessoas prejudicadas estejam. Isso é realmente preocupante.
Algumas pessoas dizem que a democracia termina com uma salva de palmas. Isso acontecia no passado. Agora o fim da democracia ocorre com alguns cliques sem resistência ou necessidade de apoio da plateia. Não existe paradigma para o que está ocorrendo, nem solução política ou tecnológica para o impasse. Nem mesmo uma guerra seria capaz de restaurar o mundo ao estado anterior.