Trabalho e Exaustão: A Liberdade que Escraviza
Modernidade líquida, desempenho e resistência no mundo do trabalho contemporâneo
Resumo
O artigo analisa as transformações contemporâneas nas relações de trabalho à luz da modernidade líquida, discutindo como discursos de liberdade, autonomia e flexibilidade operam como dispositivos de controle simbólico e subjetivo. Dialogando com Zygmunt Bauman, Byung-Chul Han, Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire, Richard Sennett e David Graeber, argumenta-se que o mundo do trabalho tornou-se um espaço privilegiado de precarização existencial, epistemicídio e exaustão moral. Sustenta-se que o pensamento crítico, a recuperação do tempo não utilitário e a valorização dos saberes da experiência constituem formas contemporâneas de resistência ética.
Palavras-chave: trabalho contemporâneo; modernidade líquida; exaustão; controle simbólico; resistência.
1. Introdução
O mundo do trabalho tornou-se o espaço onde a modernidade líquida se manifesta com maior clareza — e maior violência simbólica. Aquilo que Zygmunt Bauman descreveu como dissolução de vínculos, instabilidade permanente e fluidez institucional deixa de ser uma abstração sociológica e passa a configurar a experiência cotidiana de milhões de trabalhadores. O emprego, que outrora organizava identidades, tempos e projetos de vida, transforma-se em algo provisório, incerto e descartável. Já não se constrói uma trajetória; administra-se uma sucessão contínua de urgências.
Nesse cenário, a promessa de liberdade aparece como valor central. Flexibilidade, autonomia, empreendedorismo e autogestão tornam-se palavras de ordem. Contudo, este artigo sustenta que tal liberdade é, em grande medida, operacional e funcional ao sistema produtivo contemporâneo. Trata-se de uma liberdade que transfere riscos ao indivíduo, fragmenta vínculos coletivos e neutraliza a crítica estrutural, convertendo exaustão em responsabilidade pessoal.
2. Liquidez, instabilidade e governança pela insegurança
Na lógica da modernidade líquida, nada é feito para durar: nem contratos, nem equipes, nem expectativas. O trabalhador não é formado; é constantemente reprogramado. Espera-se dele flexibilidade permanente, disponibilidade total e capacidade de adaptação contínua. A exigência não é compromisso, mas prontidão. O valor não reside na profundidade da experiência acumulada, mas na velocidade da resposta imediata.
Essa instabilidade não constitui um efeito colateral do capitalismo contemporâneo; ela é seu princípio organizador. Um trabalhador inseguro tende a concentrar suas energias na preservação de sua posição frágil, não na transformação das condições de trabalho. A ansiedade substitui a consciência coletiva, enquanto a competição ocupa o lugar da solidariedade. Como observou Bauman, vínculos frágeis produzem sujeitos isolados — e sujeitos isolados são mais fáceis de governar.
3. O ápice da liquidez: gestão algorítmica e uberização
Essa lógica atinge seu ponto máximo com a chamada uberização do trabalho. Se na modernidade sólida o poder tinha um rosto identificável, na economia de plataformas o “chefe” dissolve-se em linhas de código. O algoritmo emerge como gestor invisível, onipresente e imune ao diálogo. Avaliações automáticas, metas dinâmicas e rankings de desempenho substituem relações humanas por métricas abstratas.
A gestão algorítmica apresenta-se como neutra e objetiva, mas opera como sofisticado dispositivo de controle. A jornada torna-se potencialmente infinita, enquanto a promessa de autonomia mascara uma intensificação do trabalho. O tempo “livre” converte-se em tempo de espera produtiva, permanentemente disponível para novas demandas. A humanidade do trabalhador passa a ser tratada como ruído estatístico.
4. Liberdade operacional e sociedade do desempenho
O discurso da autonomia reaparece no mundo do trabalho sob a forma do empreendedor de si mesmo. O trabalhador é chamado de “parceiro”, “colaborador” ou “prestador independente”. Em tese, controla seu tempo e seus resultados. Na prática, escolhe apenas como executar tarefas previamente definidas. O que fazer, por que fazer e para quem fazer permanecem fora de seu alcance decisório.
Byung-Chul Han contribui decisivamente para compreender esse deslocamento ao descrever a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. Já não é necessário um poder repressivo externo: a coerção é interiorizada. O sujeito explora a si mesmo em nome da eficiência, da superação e da autorrealização. A exploração deixa de ser percebida como imposição e passa a ser vivida como escolha.
Nesse contexto, o cansaço não é acidente, mas sintoma estrutural. A exaustão generalizada decorre de um sistema que exige disponibilidade permanente, atualização contínua e positividade ininterrupta. Reclamar torna-se sinal de fraqueza; questionar, indício de inadequação. O silêncio, muitas vezes, converte-se em estratégia de sobrevivência.
5. Epistemicídio laboral e apagamento do saber da experiência
O controle exercido pelo mundo do trabalho contemporâneo não se limita aos corpos e aos tempos; ele se estende aos saberes. É aqui que a contribuição de Boaventura de Sousa Santos se torna central. O autor argumenta que o poder moderno opera também pela definição do que conta como conhecimento legítimo. No contexto laboral, isso se traduz na desvalorização sistemática do saber da experiência.
O trabalhador conhece os problemas concretos do processo produtivo, mas raramente participa das decisões estratégicas. Seu conhecimento prático é tratado como opinião subjetiva, enquanto relatórios, indicadores e dashboards assumem estatuto de verdade. Produz-se, assim, um epistemicídio laboral: a eliminação de saberes não alinhados à racionalidade técnico-gerencial dominante.
Essa monocultura do conhecimento organizacional reforça a alienação e fragiliza a capacidade crítica coletiva. O que emerge da prática cotidiana é neutralizado antes mesmo de se tornar discurso.
6. Educação para adaptação e desarme político
Esse apagamento do saber do trabalhador articula-se com uma pedagogia específica, analisada de forma pioneira por Paulo Freire. O mundo do trabalho opera por uma educação da adaptação. Treinamentos substituem formação; capacitações técnicas substituem reflexão crítica. Aprende-se a cumprir protocolos, não a compreender processos.
A pergunta “por que fazemos assim?” é desencorajada. O que importa é saber “como fazer” — e fazê-lo rapidamente. Freire advertia que uma educação que não estimula a problematização forma sujeitos dóceis, ajustados, incapazes de perceber as causas estruturais de sua condição. No trabalho contemporâneo, forma-se um trabalhador tecnicamente competente, porém politicamente desarmado.
7. Corrosão do caráter e trabalhos sem sentido
Richard Sennett acrescenta uma dimensão existencial a essa análise ao mostrar como a flexibilização extrema do trabalho corrói o caráter. Quando não há continuidade, quando o esforço não se traduz em reconhecimento duradouro, torna-se difícil construir uma narrativa coerente de si. O trabalho deixa de ser fonte de sentido e passa a ser apenas meio de sobrevivência.
Nesse contexto, proliferam os chamados bullshit jobs, conceito desenvolvido por David Graeber para designar trabalhos socialmente inúteis, mas psicologicamente exaustivos. São funções que consomem tempo, energia e inteligência sem produzir valor social proporcional. O trabalhador sabe disso — e esse saber produz sofrimento moral. Trabalhar em algo percebido como vazio corrói a dignidade e intensifica a alienação.
8. Pensar como resistência: ócio, opacidade e lucidez
É nesse ponto que pensar se torna subversão. No mundo do trabalho contemporâneo, refletir sobre metas, ritmos e narrativas de sucesso ameaça a engrenagem. A lucidez revela que a flexibilidade frequentemente encobre precariedade e que a autonomia pode funcionar como mecanismo de autoexploração.
Byung-Chul Han sugere que um dos gestos mais subversivos hoje é a recuperação da vita contemplativa. Resistir implica reivindicar o direito ao ócio, ao silêncio e à interrupção do fluxo produtivo. Reivindicar a opacidade — o direito de não ser permanentemente mensurável — torna-se forma legítima de defesa.
Resistir não significa apenas protestar, mas recuperar a capacidade de nomear a própria experiência. É reconhecer que o cansaço não é falha individual, mas resposta racional a um sistema irracional. É reconstruir vínculos coletivos em um ambiente que promove isolamento.
9. Considerações finais
Paulo Freire diria que esse processo marca o início da conscientização: quando o trabalhador deixa de perceber sua condição como destino e passa a reconhecê-la como construção histórica. Bauman lembraria que essa lucidez tem custo — pensar desacelera, isola e gera desconforto. Boaventura insistiria na necessidade de pluralizar saberes e formas de organizar a vida. Sennett enfatizaria a importância de recuperar o valor da continuidade e do vínculo. Graeber provocaria a pergunta decisiva: por que trabalhamos tanto — e para quê?
O mundo do trabalho contemporâneo revela, em sua forma mais nítida, a lógica mais ampla do sistema: fluidez, controle simbólico e neutralização da crítica. Pensar, nesse contexto, torna-se um ato ético. Porque um sistema de trabalho que não tolera reflexão não busca apenas produtividade — busca submissão. E um trabalhador que pensa é, inevitavelmente, menos governável.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Trabalho, consumismo e a nova pobreza. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GRAEBER, David. Bullshit jobs: uma teoria. São Paulo: Todavia, 2019.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.