Resolução nº. 1.805/06: situação atual
Após a Resolução ter sido editada pelo Conselho Federal de Medicina, a Procuradoria da Republica do Distrito Federal encaminhou à autarquia uma recomendação, fixando o prazo de quatro dias, a contar do dia 20/11/06, para que a mesma fosse revogada.
Tendo em vista a não obediência da autarquia, em 09/05/2007 foi distribuída Ação Civil Pública (2007.34.00.014809-3), em que o Ministério Público Federal requereu a revogação e a anulação da Resolução 1.805/06, com pedido de tutela antecipada para a suspensão de seus efeitos.
Em apertada síntese das alegações do representante de Ministério Público Federal, afirmou que (a) a ortotanásia seria uma espécie de eutanásia e, neste sentido, faltaria à autarquia competência para a disciplina da matéria; (b) por esta razão, pedia a revogação da Resolução nº. 1.805/06, OU o estabelecimento, pelo Conselho Federal de Medicina, de critérios objetivos e subjetivos para permitir que o médico acate o desejo do paciente de suspender tratamentos extraordinários, desde que, com a prévia consulta ao Ministério Público, antes de qualquer suspensão.
No dia 23/10/2007, o pedido de tutela antecipada para a suspensão dos efeitos da Resolução foi deferido e a mesma encontra-se suspensa até os dias atuais. [19]
A Ação Civil Pública ainda não foi julgada, todavia, demonstra que o entendimento do magistrado que julgou o pedido é no sentido da impossibilidade do médico de acatar a decisão autônoma do paciente ou de seus familiares, ainda que à custa de um processo de morte injustificadamente prolongado. No entendimento do magistrado, ao que parece, não precisa haver um questionamento ético sobre a interferência dos avanços da tecnologia no agir médico e o paciente teria o dever de se submeter a qualquer tratamento médico proposto, ainda que não se coadune com a sua vontade.
Saliente-se que o próprio Ministério Público Federal não concorda com a obrigatoriedade do tratamento extraordinário, uma vez que propõe o estabelecimento de critérios objetivos e subjetivos para que aquele órgão consinta ou não com a suspensão do tratamento.
Do mesmo modo, também não considera que a ortotanásia se assemelhe à eutanásia, ainda que o diga, pois uma inconstitucionalidade advinda de incompetência legislativa (principalmente quando, em tese, violaria direito fundamental) não poderia ser vencida pelo estabelecimento de critérios de análise.
A dúvida existente no caso, provavelmente, vem da comparação entre a Resolução com o anteprojeto da Parte Especial do Código Penal e do Projeto de Lei nº. 116/00, que claramente confundem meio artificial de manutenção da vida com tratamento extraordinário, fazendo parecer, conforme já sobejamente demonstrado, que a eutanásia e a ortotanásia digam respeito a mesma coisa.
Nunca é demais relembrar o magistral ensinamento de Calamandrei, citado por Cappelletti (1989) [20], de que "sob a ponte da Justiça passam todas as dores, todas as misérias, todas as aberrações, todas as opiniões políticas, todos os interesses sociais" e compete ao juiz tomá-los em conjunto para poder adaptar os interesses divergentes, a fim de que seja possível pensar em um mínimo de Justiça.
Comparativo das Legislações (Projeto de Lei do Senado, Lei Covas e Resolução 1.805/06)
O Conselho Federal de Medicina não disciplinou nada além do constante na Lei Estadual do Estado de São Paulo. Se na Lei 10.241/99, o comando é dirigido ao paciente, na Resolução, ele é direcionado para os médicos.
A Resolução não cria uma causa de exclusão de antijuridicidade para o crime de homicídio. Seu objetivo foi a de humildemente compreender que os avanços tecnológicos não devem fazer com que o processo de morte se apresente como verdadeiro suplício ao moribundo, pois o morrer é parte do viver e nem sempre o papel da medicina é o de prolongar a vida. A tecnologia deve auxiliar o ser humano e não representar um progresso técno-ilógico, como bem escreveu Adélia Prado (1991) [21].
Não se trata de eutanásia – ativa ou passiva – mas sim do reconhecimento da incapacidade da ciência de garantir a imortalidade desejada pelo Dr. Frankenstein. A Resolução não teve a pretensão disciplinar assunto jurídico, mas somente de conduzir o agir médico rumo à ética diante dos avanços tecnológicos experimentados nos últimos tempos, no sentido de respeitar os limites da ciência e o direito do paciente de decidir autonomamente sobre a condução do seu tratamento na terminalidade.
Foi uma tentativa de conciliar a tecnologia disponível e a crítica em relação a seu uso. Se, nos últimos 50 anos, a medicina experimentou um avanço extraordinário, o mesmo não pode ser dito em relação aos questionamentos éticos acerca do prolongamento desmedido e inumano no processo de morrer.
São os males da distanásia que a Resolução 1.805/06 buscou impedir, trazendo novamente ao médico a idéia de que é homem e não deus e, portanto, não precisa esperar que a medicina o alivie do tormento da mortalidade. Foi com o objetivo de desmascarar as mil mentiras do real, trazidas pelo pensamento excessivamente crédulo nas possibilidades da ciência, que a Resolução foi editada.
Ela visa garantir ao médico que ele não será punido por aquela Autarquia se agir como um ser humano que trata da doença de outros seres, igualmente humanos, todos mortais. Demonstra, dessa maneira, ao profissional – e a todos – que eles não passam de indivíduos provisórios e perpetuamente ameaçados e que efêmera é a condição do humano.
Tanto a Lei Covas quanto a Resolução tratam o tema como uma conduta atípica, pois, de acordo com o conceito de ortotanásia por elas adotado, ela realmente não é típica, uma vez que se restringe a suspensão ou não administração de terapias consideradas inúteis para o moribundo, que já se encontra com o processo de morte instalado. No confuso e abrangente conceito adotado pelo Projeto de Lei, a ortotanásia seria uma causa de exclusão da antijuridicidade, uma vez que prevê a não manutenção de meio artificial, abrindo, assim, a possibilidade de desligamento de suporte vital para pacientes em estado vegetativo persistente ou comatoso que ingressassem na terminalidade, abreviando, invariavelmente, a vida destes, eis que é o suporte vital que lhes garante a manutenção de suas funções básicas.
O consentimento é necessário nas três disciplinas, entretanto, diferenciam-se no tocante a quem poderia substituí-lo em caso de incapacidade do enfermo. A Lei Covas se dirige somente ao enfermo, a Resolução faz menção ao representante legal e o Projeto de Lei traz como substitutos o cônjuge, o companheiro, o ascendente, o descendente ou o irmão.
O Projeto de Lei não faz menção ao dever de informar prognóstico, diagnóstico, possibilidades terapêuticas, etc., que o médico teria antes de receber o consentimento do paciente ou seu substituto. Na Lei Covas, é dever do médico esclarecer, de modo compreensível, todas as nuances do caso. A Resolução, apesar de falar desta necessidade, não tece maiores considerações sobre como seria tal procedimento.
A anotação no prontuário do paciente sobre a decisão de suspensão do tratamento é necessária tanto para a Resolução quanto para a Lei Covas. Já o Projeto de Lei não traz qualquer disciplina sobre o assunto. No mesmo sentido, há a possibilidade de o paciente de ter uma segunda opinião médica, admitida pela Resolução e pela Lei Covas e o Projeto de Lei sendo omisso.
No Projeto de Lei há a necessidade de que dois médicos atestem a morte como iminente e inevitável, a fim de oferecer mais garantia ao enfermo. A Resolução e a Lei Covas são omissas quanto a esse procedimento, uma vez que não o consideram essencial, tendo em vista que a ortotanásia, conforme o conceito por ambas adotado, é um exercício de autonomia do paciente que opta por não receber tratamento extraordinário, ao que o médico tem o dever de acatar, ainda que não concorde.
Na Resolução e na Lei Covas, é dado ao paciente o direito de escolher o local em que deseja que sua morte aconteça, sendo o Projeto de Lei omisso neste ponto. Tanto para a Resolução quanto para o Projeto de Lei é imperioso que o processo de morte já tenha sido instalado. A Lei Covas não faz menção a este requisito.
A inserção de cuidados paliativos é necessária em todas as três possibilidades. Os tratamentos que podem ser omitidos, de acordo com a Lei Covas, são aqueles considerados dolorosos ou extraordinários. A Resolução permite a suspensão de tratamentos extraordinários. Já o Projeto de Lei, como dito em momento oportuno, acaba por confundir tratamentos extraordinários com tratamentos que mantenham artificialmente a vida, abrindo possibilidade, inclusive, para o desligamento de suporte vital em pacientes em estado vegetativo persistente.
Quanto ao direcionamento de cada uma das disciplinas, enquanto a Lei Covas tem como alvo os pacientes, a Resolução tem os médicos e o Projeto de Lei, sendo uma causa de exclusão da ilicitude, é direcionado a todos os cidadãos.
Conclusão
Tudo considerado, a Resolução se dirige aos médicos, no sentido de respeitar a autonomia do moribundo; não cria, modifica ou extingue qualquer direito vigente. Não exclui a antijuridicidade do homicídio eutanásico. Não afirma que o médico pode abreviar a vida do moribundo, mas somente obriga que ele respeite o desejo do sujeito de não se submeter a tratamento inócuo, que não fará mais que prolongar um processo de morte já iniciado.
A decisão pela ortotanásia não é do médico, mas sim do enfermo ou de seus familiares. A única função do profissional aqui é a de esclarecer o diagnóstico e o prognóstico, bem como indicar ou não determinada intervenção, sempre respeitando o desejo do paciente ou de seus familiares [22]. Ele não age ou deixa de agir para apressar a morte, tão-somente informa que, daquele ponto em diante, a medicina não oferece possibilidades terapêuticas curativas para o moribundo. Ainda que o médico não concorde com a suspensão do tratamento, ele pode, no máximo, anotar sua discordância no prontuário do paciente, mas não pode obrigá-lo a recebê-lo (SEBASTIÃO, 2003) [23].
Decidindo o enfermo, ou seus familiares, pela suspensão do tratamento médico curativo, a Resolução também impõe que sejam ministrados os cuidados paliativos ao moribundo, a fim de que seu processo de morte aconteça da forma menos dolorosa possível.
Notas
- Neste sentido BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de Personalidade e Autonomia Privada. São Paulo: Saraiva, 2007; SEBASTIÃO, SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade Médica: Civil, Criminal e Ética. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
- GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2003.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo:RT, 2003.
- ZAFFARONI, Eugenio Raul. Tratado de Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1991.
- CARNEVALLI, Eduardo Castillo. Diez Años de Eutanásia em Holanda: uma valoración moral. Thesis ad Doctoratum in Sacra Theologia Totaliter Edita. Pontificia Universitas Sanct AE Crucis. Facultas Theologiae. Roma, 2003.
- MÖLLER, Letícia Ludwing. Direito à morte com dignidade e autonomia: o direito dos pacientes terminais e os princípios da dignidade e autonomia da vontade. Curitiba: Juruá, 2007.
- Art. 1º Acrescentam-se os §§ 6º e 7º ao art. 121 do Código Penal (Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940), com a seguinte redação: "Exclusão da ilicitude. § 6º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja o consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão" (Diário do Senado Federal, 26 de abril de 2000).
- BRASIL. Lei nº. 9.434/97.
- SENADO FEDERAL DA REPÚBLICA. Disponível em <http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=43807>.
- Enviado por e-mail pelo Senado Federal em resposta a mensagem eletrônica encaminhada solicitando os dados. Diário do Senado Federal, 26 de abril de 2000.
- Conteúdo disponível em <http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=jornal&id=711>, sobre os resultados do fórum Desafios Éticos na Terminalidade da Vida.
- Conteúdo disponível em <http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=jornal&id=711>, sobre os resultados do fórum Desafios Éticos na Terminalidade da Vida.
- CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resposta à mensagem eletrônica enviada ao Conselho Federal de Medicina pela pesquisadora, sob o protocolo nº. 08585/2007 e assinada pela Secretária Geral Lívia Barros Garção. Carta nº. 5602/2007, de 26/10/2007.
- Apud ATHENIENSE, Aristóteles. Enfoque jurídico da ortotanásia. In:___Del Rey Jurídica. Revista semestral. Belo Horizonte: Del Rey, jan./jul. 2007.
- ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CUIDADOS PALIATIVOS. Distanásia. Revista Factos da Vida. Lisboa, 1994.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002.
- CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Parecer-Consulta nº.44.503/01.
- CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Resultados do fórum Desafios na Terminalidade da Vida, ocorrido em 27 e 28 de julho de 2006.
- Fevereiro, 2008.
- CAPPELETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis? Tradução de Carlos Alberto de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989.
- PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1991.
- Sobre a autoridade epistêmica do médico ver, CALERA, Nicolas López. La vida Y La Muerte Ante La Ética Y El Derecho, Paternalismo Médico Y Desarrollo Científico. Revista Doxa 15-16, 1994. Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com.br>.
- SEBASTIÃO, 2003, op. cit.