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O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal de 1988

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2. CARACTERÍSTICAS DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Quando o Tribunal Penal Internacional foi criado levou-se em conta características básicas que lhe fornecessem aplicabilidade e efetividade às suas decisões, sem ofender aos princípios básicos de Direito e a soberania dos países. Dentre as suas características destacam-se: Complementaridade, não ser Tribunal de exceção, ser Tribunal Permanente e mais especificamente com relação ao Brasil a sua Constitucionalidade formal ou material.

2.1. COMPLEMENTARIDADE

Um dos pontos mais fortes que levaram à massiva ratificação do Estatuto de Roma foi o princípio da complementaridade que permeia a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Com efeito, esse princípio faz a competência do TPI para o julgamento dos crimes, ser subsidiária à jurisdição interna dos países membros, agindo somente em caso de inércia ou falta de capacidade do Estado de efetuar o Julgamento.

Esse princípio encontra respaldo em diversos dispositivos do Estatuto do TPI. Em seu preâmbulo no 11º Parágrafo já há a sua menção [20].

O artigo primeiro do Decreto 4.388/02 [21], também menciona o princípio da complementaridade da jurisdição do TPI em relação às jurisdições penais nacionais. Justamente por estar previsto no primeiro artigo, o qual caracteriza o Tribunal Penal Internacional, o princípio da complementaridade integra o TPI de maneira inseparável. O art. 17 do Estatuto de Roma, estabelecendo os critérios de admissibilidade dos processos no Tribunal Estabelece:

1. Tendo em consideração o décimo parágrafo do preâmbulo e o artigo 1º, o Tribunal decidirá sobre a não admissibilidade de um caso se:

a) O caso for objeto de inquérito ou de procedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou, não tenha capacidade para o fazer;

b) O caso tiver sido objeto de inquérito por um Estado com jurisdição sobre ele e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer;

c) A pessoa em causa já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, e não puder ser julgada pelo Tribunal em virtude do disposto no parágrafo 3º do artigo 20;

d) O caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal. (Destaques não constam do original)

Critérios objetivos e práticos levaram à escolha do princípio da complementaridade como um dos alicerces do TPI. O primeiro deles é o de que o conjunto probatório que integrará o inquérito/processo encontra-se no país de origem dos crimes. O custo de uma investigação e do processo para o julgamento pelo Tribunal seria altíssimo, levando-se em conta que o deslocamento das testemunhas, do réu, a busca de provas, etc., teria alto custo se tivesse que ser desempenhado pelo próprio Tribunal.

Outro ponto que fortalece essa característica do Tribunal é o fato de que a sua estrutura é limitada, sendo impossível julgar todos os casos que seriam de sua competência de maneira ágil e justa.

Um terceiro fato a ser analisado é o da soberania dos Estados, caracterizado pelo poder que o Estado Membro tem de desativar a competência do Tribunal Penal Internacional ao assumir a persecução penal no crime cometido em seu território.

Além do mais, o princípio da complementaridade força o desenvolvimento do Direito Internacional Penal uma vez que os países signatários deverão adequar o seu sistema processualista [22] e penal para o julgamento dos crimes que são de competência do Tribunal Penal Internacional.

2.2. NÃO SER TRIBUNAL DE EXCEÇÃO

Um dos pontos fortes do TPI em relação aos Tribunais Internacionais instituídos anteriormente, e que lhe dá maior aceitação pela doutrina penal mundial, é o fato que os crimes a serem por ele julgados serão somente aqueles praticados após a sua entrada em vigor, ou seja: não é um tribunal de exceção.

Deve-se levar em conta que o Estado Democrático de Direito deve se pautar no princípio do Juiz Natural, segundo o qual determinado ato só pode ser julgado por um Juiz efetivamente investido no cargo e com as devidas prerrogativas. Num tribunal de exceção, esse fato não ocorre, uma vez que os Juízes e a acusação são escolhidos pelos próprios interessados no julgamento.

No caso do Tribunal Internacional de Nuremberg e no Tribunal Militar de Tóquio, os Juízes e Promotores foram escolhidos pelos vencedores, dando ao tribunal, desde a sua criação, alta carga tendenciosa. Não se pretende dizer aqui que se fossem outros julgadores e outros acusadores o resultado seria diferente, entretanto não se pode deixar de analisar que esses tribunais são uma justiça aplicada pelos vencedores aos vencidos.

A criação de Tribunais de Exceção para julgamento de crimes anteriores não dá segurança jurídica ao réu e nem à comunidade internacional, de modo que as decisões desses tribunais são eivadas de parcialidade.

Nesse aspecto pode-se dizer que houve um avanço grande do Estatuto de Roma em relação aos Tribunais que o precederam, fato que por si só lhe confere maior credibilidade para julgar os crimes de sua competência.

2.3. SER UM TRIBUNAL PERMANENTE

Nessa linha de caracterização do Tribunal Penal Internacional, tem-se o aspecto de ser um Tribunal permanente, com a responsabilidade internacional de manter a justiça. Essa característica, assim como a complementaridade, encontra-se no artigo 1º do TPI ao estabelecer:

É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional ("o Tribunal"). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto. (Destaques não constam do original).

Esse ponto dá maior credibilidade às decisões do tribunal, vez que os seus julgadores e os acusadores serão os mesmos e também pela imparcialidade das suas decisões, pois é independente do Conselho de Segurança da ONU, diferentemente dos Tribunais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e para Ruanda.

Quando foram criados os Tribunais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e para Ruanda, eles sofreram fortes críticas acerca da sua independência e da soberania das suas decisões, pois eram subordinados ao Conselho de Segurança da ONU, órgão que os criou. Não sem motivo essa crítica. Ao criar esses Tribunais, o Conselho de Segurança estaria atuando além das suas funções. Esse é o entendimento da Renata Mantovani de Lima e Marina Martins da Costa Brina [23]:

O Conselho de Segurança tem, sim, como função a manutenção da paz, mas isso não implica a legitimidade para ser criador de tribunais internacionais. Nesse sentido, ao avocar tal competência, o Conselho de Segurança estaria incorrendo em um clássico caso de decisão ultra vires, ou seja, estaria imputando-se de um poder que não lhe foi atribuído pela Carta.

Nesse aspecto o TPI merece grandes aplausos, pois, ao ser um Tribunal permanente, evitou eventuais críticas quanto à sua legitimidade, tornando mais difícil a ocorrência de politicagem e a influência da conveniência do Conselho de Segurança da ONU.

2.4. POSIÇÃO NORMATIVA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL FRENTE À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

Este é um dos pontos fundamentais do presente trabalho levando-se em conta que, para a completa compreensão das influências do TPI do ordenamento jurídico brasileiro, faz-se necessário o estudo da inserção dos tratados de direitos humanos que não seguirem a regra disposta no §3º do Art. 5º da Carta Magna [24], passando pelo entendimento majoritário e minoritário do STF.

Hoje se deve analisar criticamente a influência das decisões do Supremo Tribunal Federal no ordenamento jurídico interno pois cada vez mais as suas decisões têm maior força. O Brasil encontra-se num momento de reformulação do seu sistema judiciário: estamos saindo do civil Law eentrando cada vez mais no common Law.

Como exemplo da modificação da fonte do direito, tem-se a Lei Maria da Penha, cujo precedente vêm da condenação do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA [25] cujo um dos pontos foi "o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera".

Logo se vê claramente a influência das decisões dos tribunais no ordenamento jurídico interno, não só nas decisões dos Juízes e Tribunais, mas também nos três poderes. Então, hoje há uma valorização do ser humano em caso de conflito de interesses, de forma que a sua dignidade precede a outros valores consagrados e muitas vezes tidos como absolutos por alguns Estados, como, por exemplo, a soberania.

Assim o Neo-Constitucionalismo tem em seu bojo mecanismos de valoração dos tratados de direitos humanos. Em sua obra "Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos", o Juiz da Corte Internacional de Justiça Cançado Trindade expõe com maestria os novos caminhos do Direito Constitucional [26]:

A tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central.

Passemos a análise das teses de legalidade dos tratados de direitos humanos, sendo que o presente trabalho abordará apenas as duas principais correntes da atualidade, que são a da supralegalidade e a humanista.

A tese da supralegalidade dos Tratados de Direitos Humanos tem seu nascedouro no voto do Min. Gilmar Mendes no RE 466.343/SP cujo relator foi o Min. Cezar Peluso [27].

Em seu voto o Min. Gilmar Mendes propõe o entendimento de que os Tratados de Direitos Humanos que não forem recepcionados na forma prevista no §3º do Art. 5º da CF/88 não possuem condão de norma Constitucional, no entanto estão acima da legislação ordinária, criando uma nova divisão da pirâmide de Kelsen: as normas Supralegais.

Abaixo está a definição de supralegalidade dos tratados de Direitos Humanos exposta no voto do Min. Gilmar Mendes:

Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.

Dessa forma, um tratado que verse a respeito de Direitos Humanos e que não seja aprovada com o quórum exigido pelo § 3º, tem o poder de revogar qualquer norma infraconstitucional conflitante com o seu texto que esteja em vigor na data da sua ratificação e também o poder de tornar inócua a lei posterior que o contrarie, sendo este o entendimento majoritário atual do STF.

No entanto, há também a tese de Flávia Piovesan, cujo entendimento foi brilhantemente defendido pelo Min. Celso de Mello no próprio RE 466.343/SP, que é o de que as normas dos tratados de Direitos Humanos já possuem por si só um caráter materialmente constitucional.

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Aproveitando a menção feita acima, está abaixo trecho do voto do eminente Min. Celso de Mello [28]:

Reconheço, no entanto, Senhora Presidente, que há expressivas lições doutrinárias – como aquelas ministradas por ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE ("Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos", vol. I/513, item n. 13, 2ª ed., 2003, Fabris), FLÁVIA PIOVESAN ("Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional", p. 51/77, 7ª ed., 2006, Saraiva), CELSO LAFER ("A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais", p. 16/18, 2005, Manole) e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI ("Curso de Direito Internacional Público", p. 682/702, item n. 8, 2ª ed., 2007, RT), dentre outros eminentes autores – que sustentam, com sólida fundamentação teórica, que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando, ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da EC nº 45/2004, como ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, revestem-se de caráter materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade. (...) Após muita reflexão sobre esse tema, e não obstante anteriores julgamentos desta Corte de que participei como Relator (RTJ 174/463-465 RTJ 179/493-496), inclino-me a acolher essa orientação, que atribui natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos (...).

Esse entendimento encontra supedâneo no §2º do Art. 5º da CF [29] pois, por se tratar de norma constitucional elaborada pelo poder constituinte originário, o qual quis dar, claramente, valor constitucional aos direitos provenientes dos tratados, e com amparo no artigo 60, §4º, IV da Carta Magna, os tratados que versam sobre Direitos Humanos possuem caráter Constitucional e ainda mais, são cláusulas pétreas pois tratam indubitavelmente de direitos fundamentais.

Um ponto forte nessa teoria é o fato de que o rol de direitos previstos no art. 5º é meramente exemplificativo, conforme o § 2º, de maneira que a exigência do § 3º torna o rol do art. 5º taxativo, limitando os direitos fundamentais e assim, passa a ter um caráter inconstitucional, visto que limita direitos previstos pelo próprio poder constituinte originário.

Nesse sentido, o professor Francisco Rezek em sua obra Direito Internacional Público – Curso Elementar diz que [30]:

No desfecho do extenso rol de direito e garantias do art. 5º da Constituição um segundo parágrafo estabelece, desde 1988, que aquela lista não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios consagrados na carta, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte.

A questão não subsiste a partir de agora, resolvida que foi pelo aditamento do terceiro parágrafo ao mesmo artigo constitucional: os tratados sobre direitos humanos que o Congresso aprove ‘com o rito da emenda à carta’ – em cada casa dois turnos de sufrágio e o voto de três quintos do total de seus membros – integrarão em seguida a ordem jurídica no nível das normas da própria constituição. Essa nova regra, que se poderia chamar de cláusula holandesa por analogia com certo modelo prevalente nos Países Baixos e ali pertinente à generalidade dos tratados (v. referência no § 49), autoriza algumas conclusões prospectivas. Não é de crer que o Congresso vá doravante bifurcar a metodologia de aprovação dos tratados sobre direitos humanos. Pode haver dúvida preliminar sobre a questão de saber se determinado tratado configura realmente essa hipótese temática, mas se tal for o caso o Congresso seguramente adotará o rito previsto no terceiro parágrafo, de modo que, se aprovado, o tratado se qualifique para ter estatura constitucional desde sua promulgação – que pressupõe, como em qualquer outro caso, a ratificação brasileira e a entrada em vigor no plano internacional. Não haverá quanto a semelhante tratado a possibilidade de denúncia pela só vontade do executivo, nem a de que o Congresso force a denúncia mediante lei ordinária (v. adiante o § 53), e provavelmente nem mesmo a de que se volte atrás por meio de uma repetição, às avessas, do rito da emenda à carta, visto que ela mesma se declara imutável no que concerne a direitos dessa natureza.

Uma última dúvida diz respeito ao ‘passado’, a algum eventual direito que um dia se tenha descrito em tratado de que o Brasil seja parte – e que já não se encontre no rol do art. 5º. Qual o seu nível? Isso há de gerar controvérsia entre os constitucionalistas, mas é sensato crer que, ao promulgar esse parágrafo na Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva abjuratória dos tratados sobre direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o Congresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de nível constitucional. Essa é uma equação jurídica da mesma natureza daquela que explica que nosso Código Tributário, promulgado a seu tempo como lei ordinária, tenha-se promovido a lei complementar à Constituição desde o momento em que a carta disse que as normas gerais de direito tributário deveriam estar expressas em diploma dessa estatura.

Entendimento semelhante tem também o professor Celso Lafer [31] arguindo que a edição do § 3º do art. 5º feita pela emenda nº 45/2004 extirpou qualquer dúvida com relação à hierarquia dos tratados de direitos humanos, subsistindo, no entanto, uma dúvida quanto ao iter temporâneo entre a promulgação da Constituição de 1988 e a edição da EC nº 45/2004. Para solucionar essa problemática, Celso Lafer entende que essas normas integram o bloco de constitucionalidade como normas materialmente Constitucionais.

Com maestria a professora Flávia Piovesan [32] expõe esse seu entendimento de maneira competente, convincente e com fortes argumentos conforme a citação abaixo:

Em face de todos argumentos já expostos, sustenta-se que hierarquia constitucional já se extrai de interpretação conferida ao próprio art. 5º, § 2º, da Constituição de 1988. Vale dizer, seria mais adequado que a redação do aludido § 3º do art. 5º endossasse a hierarquia formalmente constitucional de todos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados, afirmando – tal como o fez o texto argentino – que os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional.

No entanto, estabelece o § 3º do art. 5º que os tratados internacionais de direitos humanos aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição.

Desde logo, há que afastar o entendimento segundo o qual, em face do § 3º do art. 5º, todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal, pois não teriam obtido o ‘quorum’ qualificado de três quintos, demandado pelo aludido parágrafo (…).

Reitere-se que, por força do art. 5º, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do ‘quorum’ de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O ‘quorum’ qualificado está tão-somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a ‘constitucionalização formal’ dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Como já defendido por este trabalho, na hermenêutica emancipatória dos direitos há que imperar uma lógica material e não formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de normas, e não o oposto. Vale dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não ser condicionado por ela.

Deve-se aqui explicitar o fato de que para a Doutora Flávia Piovesan, independentemente da tese da Supralegalidade, todos os Tratados de Direitos Humanos têm o status de norma materialmente constitucional.

Em defesa de sua tese, a professora continua explicando o porquê de os tratados de direitos humanos serem recepcionados como norma constitucional e não como norma infraconstitucional, tese anteriormente defendida pelo STF em razão da inexistência da tese da supralegalidade.

Não seria razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia constitucional exclusivamente em virtude de seu ‘quorum’ de aprovação. A título de exemplo, destaque-se que o Brasil é parte da Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes desde 1989, estando em vias de ratificar seu Protocolo Facultativo. Não haveria qualquer razoabilidade se a este último – um tratado complementar e subsidiário ao principal – fosse conferida hierarquia constitucional, e ao instrumento principal fosse conferida hierarquia meramente legal. Tal situação importaria em agudo anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, a teoria geral da recepção acolhida no direito brasileiro. (…)

Vale dizer, com o advento do § 3º do art. 5º surgem duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos: a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frise-se: todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do § 2º do art. 5º. Para além de serem materialmente constitucionais, poderão, a partir do § 3º do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal.

O Professor Luiz Flávio Gomes teceu alguns comentários sobre essa tese [33]:

Um forte setor da doutrina (Flávia Piovesan, Antonio Cançado Trindade etc.) sustenta a tese de que os tratados de direitos humanos (Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos civis e políticos etc.) contariam com status constitucional, por força do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal ("Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"). Nesse mesmo sentido: Sylvia Steiner, A convenção americana, São Paulo: RT, 2000. Em consonância com essa linha de pensamento há, inclusive, algumas decisões do STF (HC 72.131 e 82.424, rel. Min. Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi (antes de 2006) majoritária na nossa Suprema Corte de Justiça.

Hoje, tem-se como exemplo da valorização dos Direitos Humanos a revolução na Líbia, cujo conselho de segurança da ONU autorizou a interferência estrangeira para proteger os civis das tropas de Kadaffi, demonstrando o interesse da comunidade internacional na valorização dos direitos humanos.

Essa é uma pequena demonstração de que esses direitos tem ganhado cada vez maior espaço do cenário mundial, pois a dependência dos Estados, e consequentemente dos povos, tem se tornado cada vez mais latente, de forma que a defesa dos interesses humanitários tem cada vez mais primazia frente aos interesses econômicos das potências mundiais.

Essa análise sociológica aponta na direção de que as normas provenientes de Tratados de Direitos Humanos devem ter lugar cativo na Constituição dos países democráticos preocupados num desenvolvimento humanitário sério, adentrando em seu ordenamento com status de norma constitucional, dando ao tema a devida importância e sacrificando, eventualmente, até a própria soberania em favor de bens maiores que são os Direitos Humanos.

Trazendo para o tema do presente trabalho, encontra-se o fato de que o Estatuto de Roma não foi aprovado com o quórum qualificado que exige o § 3º do Art. 5º da Constituição Federal, assim, segundo a tese majoritária do STF, o Decreto 4.388/02 teria um status supralegal, sendo que o Ordenamento Jurídico Infraconstitucional deve acatar e respeitar o seu texto, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.

Diferentemente dessa, a tese da constitucionalidade material dos tratados de direitos humanos defende que o TPI é norma materialmente constitucional, pois o Decreto 4.388/02 foi aprovado e ratificado antes da EC nº 45/04, formando o bloco de constitucionalidade do direito brasileiro.

Outro ponto a ser analisado é o do § 4º do art. 5º da CF/88 que diz "O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão". Numa hermenêutica autêntica, sistemática e teleológica pode-se extrair, da presente norma, que o Estatuto de Roma possui caráter constitucional.

Ora, a norma em análise foi inserida na Constituição juntamente com o § 3º do art. 5º, nesse sentido o poder constituinte reformador ao dar o destaque ao TPI no § 4º, deu ao decreto 4.388/02 caráter de norma formalmente constitucional.

Ressalte-se que não haveria a necessidade da menção da norma prevista no § 4º se o poder constituinte reformador não quisesse dar alcance formalmente constitucional a ele.

Aproveita-se o presente momento para colar a ementa do despacho do Min. Celso de Mello que, independentemente da posição do TPI em relação à Constituição brasileira, confere legitimação integral ao Decreto 4.388/02 e trata de outros pontos que são de suma importância ao trabalho monográfico aqui exposto:

ESTATUTO DE ROMA. INCORPORAÇÃO DESSA CONVENÇÃO MULTILATERAL AO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNO BRASILEIRO (DECRETO Nº 4.388/2002). INSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. CARÁTER SUPRA-ESTATAL DESSE ORGANISMO JUDICIÁRIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA COMPLEMENTARIDADE (OU DA SUBSIDIARIEDADE) SOBRE O EXERCÍCIO, PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, DE SUA JURISDIÇÃO. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E AUXÍLIO JUDICIÁRIO: OBRIGAÇÃO GERAL QUE SE IMPÕE AOS ESTADOS PARTES DO ESTATUTO DE ROMA (ARTIGO 86). PEDIDO DE DETENÇÃO DE CHEFE DE ESTADO ESTRANGEIRO E DE SUA ULTERIOR ENTREGA AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, PARA SER JULGADO PELA SUPOSTA PRÁTICA DE CRIMES CONTRA A HUMANIDADE E DE GUERRA. SOLICITAÇÃO FORMALMENTE DIRIGIDA, PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, AO GOVERNO BRASILEIRO. DISTINÇÃO ENTRE OS INSTITUTOS DA ENTREGA ("SURRENDER") E DA EXTRADIÇÃO. QUESTÃO PREJUDICIAL PERTINENTE AO RECONHECIMENTO, OU NÃO, DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA EXAMINAR ESTE PEDIDO DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL. CONTROVÉRSIAS JURÍDICAS EM TORNO DA COMPATIBILIDADE DE DETERMINADAS CLÁUSULAS DO ESTATUTO DE ROMA EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O § 4º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO, INTRODUZIDO PELA EC Nº 45/2004: CLÁUSULA CONSTITUCIONAL ABERTA DESTINADA A LEGITIMAR, INTEGRALMENTE, O ESTATUTO DE ROMA? A EXPERIÊNCIA DO DIREITO COMPARADO NA BUSCA DA SUPERAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE O ESTATUTO DE ROMA E AS CONSTITUIÇÕES NACIONAIS. A QUESTÃO DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO CHEFE DE ESTADO EM FACE DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: IRRELEVÂNCIA DA QUALIDADE OFICIAL, SEGUNDO O ESTATUTO DE ROMA (ARTIGO 27). MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. ALTA RELEVÂNCIA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DE DIVERSAS QUESTÕES SUSCITADAS PELA APLICAÇÃO DOMÉSTICA DO ESTATUTO DE ROMA. NECESSIDADE DE PRÉVIA AUDIÊNCIA DA DOUTA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA.

(Pet 4625, Relatora: Min. ELLEN GRACIE, Decisão Proferida pelo Ministro CELSO DE MELLO, julgado em 17/07/2009, publicado em DJe-145 DIVULG 03/08/2009 PUBLIC 04/08/2009).

Como se verifica pelo julgado acima colado, alguns dos aspectos principais que serão tratados no presente trabalho já foram analisados pelo Supremo Tribunal Federal e julgados, ainda que em decisão monocrática, como constitucionais.

No próximo capítulo serão abordados os crimes de competência do TPI, analisando cada um deles de maneira detalhada.

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Sobre o autor
Mateus Gaspar Luz Campos de Souza

Acadêmico de Direito - UCDB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Mateus Gaspar Luz Campos. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2941, 21 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19595. Acesso em: 23 dez. 2024.

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