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A estrutura comunitária da União Européia e as bases juridicas do Mercosul

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4. O direito comunitário e o direito da integração

Todo este complexo panorama aqui descrito produziram resultados na realidade do Direito. Houve então a necessidade de se criar, segundo Roth, um Direito Reflexivo e fazer rupturas estruturais com a antiga ordem mundial.[11]

Os novos rumos da ordem internacional levaram a uma crise de legitimidade do Estado, a qual contém tendência à dispersão do nível nacional de regulação social. O Direito Reflexivo seria, portanto, um Direito oriundo da negociação, ao invés de se propor direcionar os rumos da sociedade, função na qual já se comprovou ineficaz. Na visão moderna, o Direito vem melhor servindo à sociedade como guia procedimental das condutas.

A crise do Estado tem uma de suas raízes, na ordem interna, na interpenetração dos campos sociais semi-autonômos, e na complexibilização da sociedade. O Direito deve admitir que sua função não e mais definir as dimensões estruturais e funcionais dos sistemas, mas sua contribuição deve ser no sentido de generalizar as auto-regulações existentes, preenchendo também suas lacunas.[12]

A interpenetração entre o domínio publico e o privado impõe ao Estado novas práticas administrativas, jurídicas e políticas. Assim, aparece como novo instrumento da ação do Estado uma legislação mais flexível como leis iniciativas, mesas redondas, contrato negociado, gentlement agreement, leis de base.

Para enfrentar suas limitações em termos de validade, eficácia e legitimidade, o direito positivo tem lançado sempre mão das ordens sócio-jurídicas existentes. Entretanto, grande parte da doutrina jurídica continua afirmando o primado do direito positivo. Apesar disto, as esferas normativas dos campos sociais, chamadas direitos "auxiliares" ou "secundários", têm se mostrado excepcionalmente úteis quanto aos limites do direito positivo, pois preenchem suas lacunas, além de garantir a discricionaridade em questões decisivas. Assim, estes direitos têm sido tecnicamente "recebidos" e instrumentalmente utilizados.

Como resultado da formação da UE surge o Direito Comunitário, sistema composto por normas e atos advindos das instituições supranacionais européias. Sua função é criar um Direito igual para todo o Bloco. O Direito Comunitário trata de normas supranacionais, ou seja, de regras comuns aos Estados que integram determinado bloco regional, as quais possuem fontes próprias, emanando sobretudo dos chamados tratados-quadro, como o de Maastricht, que funda a União Européia, bem assim das diretrizes, resoluções e decisões baixadas pelos órgãos comunitários, de natureza legislativa, administrativa e judicial. Por constituir disciplina jurídica nova, o Direito Comunitário se vale de instrumentos hermenêuticos e gnoseológicos próprios, sem prescindir daqueles utilizados pelo Direito Interno e Internacional, em face de seu hibridismo, privilegiando a interpretação teleológica ou finalística.

Além de aplicar os postulados comuns às demais especialidades jurídicas, o Direito Comunitário possui princípios específicos, dentre os quais o da autonomia, da aplicabilidade direta e da supremacia de suas regras com relação às normas internas de cada Estado. Tais princípios, que já encontram plena aplicação no seio da União Européia, importam numa flexibilização do conceito de soberania, sobretudo quanto à idéia de supremacia absoluta da ordem jurídica interna, exigindo uma nova postura dos aplicadores do Direito, sendo certo que a sua adoção por outros blocos regionais, em particular no âmbito do Mercosul — se é que se quer ultrapassar o estágio de mera união aduaneira —, constitui apenas uma questão de tempo.

O processo de integração de Estados soberanos formando os chamados blocos regionais se funda em quatro bases que se inter-relacionam: a base econômica, a base política, a base social e a base jurídica. Assim, pode-se afirmar que o processo de integração busca a maximização regional de todos os fatores econômicos. Esse objetivo só pode ser conquistado através da convergência de uma firme vontade política entre os governos regionais. Para tanto, os governos necessitam do respaldo interno, ou seja, do apoio majoritário dos seus nacionais, sob pena do processo de integração se tornar ilegítimo e, via de regra, mal sucedido. Uma vez estabelecidos os objetivos sócio-econômicos a serem alcançados com a mecânica da integração, cujo processo seja movido por uma forte determinação política dos Estados, amparada internamente pelos seus nacionais, torna-se indispensável a elaboração de um arcabouço jurídico-institucional que seja capaz de materializar e de efetivar o processo de integração, tornando-o auto-sustentável. Essa ordem jurídica de alcance supranacional regionalizado, e que dá instrumentalidade ao processo de integração, constitui um Direito novo que apresenta características originais.


5. A gênese da união européia

Os principais esforços no sentido da Integração Européia começaram com o Tratado de Dunquerque, de 1947, assinado entre a França e o Reino Unido, de aliança e assistência recíproca contra qualquer possível nova agressão alemã, mas que incluía, igualmente, promessa de cooperação no interesse geral da prosperidade e da segurança econômica dos dois países. Seguiram-se, o Congresso de Haia, realizado entre 7 a 10 de maio de 1947, convocado pelo Comitê Internacional de Coordenação dos Movimentos para a Unidade Européia para discutir sobre organizações e movimentos de unificação surgidos na Europa do pós-guerra, o primeiro anúncio do Plano Marshall, em junho de 1947, a formação, em julho do mesmo ano, do Comitê de Cooperação Econômica Européia, e a assinatura da Convenção sobre Cooperação Econômica Européia, em abril de 1948. Em maio de 1949, foi firmado o estatuto do Conselho da Europa, prevendo a formação de uma assembléia consultiva, o chamado Parlamento Europeu. Em 1950 foi criada a União Européia de Pagamentos - UEP, que visava facilitar o comércio e as transações financeiras multilaterais na área do comércio europeu.

Pelo Tratado de Paris foi instituída, em 18 de abril de 1951, a Comunidade Européia do Carvão e do Aço - CECA, entre Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. Um projeto de Tratado, visando a criação de uma Comunidade Européia, inicialmente denominada Comunidade Política Européia, elaborado em 1953, não chegou a ser ratificado. Todavia, em março de 1957, os Ministros das Relações Exteriores dos Estados membros da CECA, firmaram o Tratado de Roma, para a criação de uma Comunidade Econômica Européia, e o estabelecimento gradual de um Mercado Único Europeu, com o eventual livre trânsito de mercadorias, pessoas e serviços entre si. No decorrer dos anos, nove novos países se integraram à União, que passou a contrapor-se ao Bloco norte-americano e soviético, posteriormente substituído pelo asiático. Já na década de 70, a União Européia, que havia instalado-se como um mercado comum, começou a considerar um aprofundamento da Integração, a nível político-econômico. O complexo processo de Unificação veio desenrolando-se, ao longo dos anos e, acelerando-se com a implantação do Tratado de Maastricht e, mais recentemente, com o Tratado de Amsterdam, de 2 de outubro de 1997, que alterou substancialmente o Tratado de Maastricht.


6. Estrutura comunitária

A União Européia caracteriza-se por um sistema institucional único no seu gênero, o qual a distingue das organizações internacionais clássicas. Ao subscreverem os Tratados de Paris e Roma, os Estados-membros passaram a autorizar diversos atos de delegação de soberania em benefício de órgãos de natureza supranacional, os quais representam, simultaneamente, os interesses nacionais e comunitários, estando interligados por relações de complementaridade de que decorre o processo de decisão.

Estes órgãos formam a estrutura institucional da União Européia, tendo, entre outras funções, a de criar o Direito Comunitário, agir soberanamente nos limites estabelecidos pelos tratados modificando, muitas vezes, realidades da vida cotidiana européia com plena autonomia.

Na União Européia, o processo de decisão associa mais especificamente a Comissão das Comunidades Européias, que elabora propostas e executa as ações adotadas; o Parlamento Europeu, que se pronuncia sobre essas propostas; e, o Conselho, que adota a decisão final. O Tribunal de Justiça e o Tribunal de Primeira Instância garantem o respeito ao Direito Comunitário. O Tribunal de Contas controla a gestão financeira da União. O Comitê Econômico e Social e o Comitê Consultivo CECA dispõem de uma competência consultiva. Atuam, ainda, o Banco Europeu de Investimentos, como instituição financeira, o Comitê das Regiões, como órgão de implementação das políticas comunitárias junto às autoridades regionais e locais, e o Provedor de Justiça (ombudsman), como órgão de defesa do cidadão europeu frente aos atos de má administração por parte dos organismos ou instituições comunitárias e o Instituto Monetário Europeu, como condutor do processo de unificação monetária.


7. O tribunal de justiça das comunidades européias – TJCE

O Tribunal de Justiça é o órgão jurisdicional da União Européia. Autoridade independente que zela pela aplicação uniforme do Direito Comunitário, é constituído por quinze juizes, assistidos por nove advogados-gerais, nomeados de comum acordo pelos governos dos Estados-membros, dentre personalidades que ofereçam todas as garantias de independência e reunam as condições exigidas, nos respectivo países, para o exercício das mais altas funções jurisdicionais, ou que sejam jurisconsultos de reconhecida competência, sendo a duração de seu mandato fixada em seis anos, renováveis.

De três em três anos, procede-se a uma substituição parcial, que incide sobre seis ou sete juizes e três advogados-gerais. O Tribunal conta, atualmente, com um juiz por Estado-membro, sendo 4 advogados-gerais nacionais da Alemanha, França, Itália e Reino Unido.

A independência dos juizes é garantida pelo seu Estatuto: os juizes são inamovíveis e as suas deliberações são secretas. Designam, entre si, um presidente, para um mandato de três anos. Tanto os juizes quanto os advogados-gerais têm remuneração equivalente a de um membro da Comissão, fazendo jus, ainda, a uma pensão correspondente a metade de sua remuneração, durante o período de três anos após o encerramento do exercício de suas funções.

Os advogados–gerais são nomeados segundo a livre decisão dos governos, sendo incumbidos de apresentar publicamente, com toda a imparcialidade e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas submetidas ao Tribunal, para assistir este último no desempenho das suas atribuições. Objetivou-se, com a sua criação, juntar ao processo informações detalhadas e fundamentadas de um jurisconsulto liberto tanto da pressão dos interesses das partes como das responsabilidades do julgador. Suas conclusões encerram o processo, sendo publicadas em anexo às decisões do TJCE.

O Tribunal de Justiça tem por missão garantir o respeito ao direito, na interpretação e aplicação dos Tratados. Pode anular, a pedido de uma Instituição Comunitária, de um Estado ou de um particular diretamente afetado, os atos da Comissão e do Conselho, caso estes sejam incompatíveis com o Tratado. Pode decidir que uma legislação ou uma ação de um Estado-membro não é conforme as disposições dos Tratados e obrigar, o Estado em causa, a modificá-la ou retirá-la. Pronuncia-se, a pedido de um Tribunal nacional, sobre a interpretação ou a validade das disposições do Direito Comunitário. Pode, ainda, ser convidado a emitir pareceres sobre os acordos que a União Européia se disponha a celebrar com países terceiros, tendo, tais pareceres, caráter vinculativo.

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O Tribunal reúne-se em sessão plenária, com presença mínima de sete juizes, sempre que tiver de decidir sobre questões que lhe sejam submetidas por um Estado-membro ou por uma Instituição Comunitária, bem como em questões particularmente importantes relativas à interpretação do Direito Comunitário. A maioria das ações e recursos é confiada a seções, criadas no seu seio. Atualmente é constituído por quatro seções com cinco juizes. O Regulamento de Processo e o Regulamento Adicional são as principais fontes de seu regime jurídico-processual.

O Tribunal das Comunidades Européias tem tido um papel ímpar na dinamização da integração européia e na elaboração dogmática do direito comunitário.[13]


8. O tribunal de primeira instância

Em 1989, foi associado ao Tribunal de Justiça um Tribunal de Primeira Instância, constituído por quinze membros, nomeados e com mandatos iguais ao dos juizes do Tribunal de Justiça. O Tribunal de Primeira Instância reúne-se em cinco seções, constituídas por três ou cinco juizes, podendo, como o Tribunal de Justiça, reunir-se em sessão plenária. Tanto o Tribunal de Justiça quanto o Tribunal de Primeira Instância têm sede em Luxemburgo.

O Tribunal de Primeira Instância é competente para diversas categorias de ações e recursos referentes, nomeadamente, a particulares e empresas (concorrência, medidas anti-dumping, questões relativas ao carvão e ao aço, ações para indenizações por perdas e danos, recursos dos funcionários da União, dentre outros). As decisões têm força executiva, podendo ser objeto de recurso para o Tribunal de Justiça, quando versarem sobre matéria de direito.


9. O sistema jurídico comunitário

A organização institucional do principal Bloco Regional de Integração - a União Européia - só pode ganhar vida e tornar-se realidade através do Direito Comunitário, sendo esta, inclusive, sua principal inovação, face a tentativas anteriores para unificar a Europa: não usa a submissão ou a força para alcançá-la, e sim, o direito. Este, deve conseguir aquilo que, durante séculos, o sangue e as armas não conseguiram. Só uma unificação baseada no livre arbítrio poderá ter futuro duradouro, uma unificação baseada em valores fundamentais, como a liberdade e a igualdade, e preservada e concretizada pelo direito.

Tendo os Tratados institutivos da CECA/CEE/EURATOM como ponto de partida, as normas de Direito Comunitário objetivam a regulamentação de suas relações jurídico-econômicas, não só no tocante ao regime fiscal e de concorrência, direito do consumidor, e agricultura, apresentando caracteres que ora o enquadram como Direito Internacional Público, ora como direito interno, e ora como Direito Econômico, mas, basicamente, no que diz respeito às quatro liberdades fundamentais: 1. Livre Circulação de Pessoas; 2. Liberdade de Estabelecimento; 3. Liberdade de Prestação de Serviços; 4. Livre Circulação de Capitais.

O sistema normativo comunitário obedece ao princípio segundo o qual, as disposições nacionais devem ser substituídas por um ato comunitário, sempre que uma regulamentação precisa, comum a todos os Estados-membros, seja necessária, caso contrário, deve-se respeitar as ordens jurídicas nacionais.

Foi no contexto do Direito Comunitário Derivado que se desenvolveram os instrumentos que permitem às Instituições Comunitárias agir, em graus diferentes, sobre as ordens jurídicas nacionais, sendo a forma extrema desta ação a substituição das normas nacionais por normas comunitárias. Seguem-se as normas que permitem às Instituições Comunitárias agir, indiretamente, sobre as ordens nacionais. Prevê-se, ainda, a possibilidade de, para a regulamentação de casos concretos, tomar medidas em relação a um destinatário determinado ou determinável. Por último, prevêem-se atos jurídicos que não contêm qualquer disposição vinculativa para os Estados-membros ou para os cidadãos da União. Encontramos todas estas formas fundamentais de atos nos Tratados originais da União Européia. Existem, no entanto, diferenças na apresentação concreta e na designação destes atos no Tratado CECA, por um lado, e nos Tratados CEE/EURATOM, por outro.

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Sobre os autores
Clóvis Guido de Biasi

advogado em Ribeirão Preto (SP), mestrando em Constituição e Processo

José Arnaldo Vitagliano

Advogado. Doutorando em Direito Educacional pela UNINOVE - São Paulo. Mestre em Constituição e Processo pela UNAERP - Ribeirão Preto. Especialista em Direito pela ITE - Bauru. Especialista em Docência do Ensino Universitário pela UNINOVE - São Paulo. Licenciado em Estudos Sociais e História pela UNIFAC - Botucatu. Professor de Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Processual Civil e Prática Civil. Autor de dois livros pela Editora Juruá, Curitiba: Coisa julgada e ação anulatória (3ª Edição) e Instrumentos processuais de garantia (2ª Edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASI, Clóvis Guido ; VITAGLIANO, José Arnaldo. A estrutura comunitária da União Européia e as bases juridicas do Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2324. Acesso em: 25 abr. 2024.

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