Estudo sobre as diversas formas de violência contra a mulher, especialmente a violência à moral, e sua repercussão perante a Lei nº. 11.340/2006

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19/11/2013 às 09:54
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CAPÍTULO II – DA VIOLÊNCIA

Neste Capítulo, estudaremos o fenômeno “violência” em suas diversas manifestações. “Violência” é um termo amplo que pode ser entendido como a dominação do mais forte sobre o mais fraco – e aqui, o mais forte pode o ser por características físicas ou por hierarquia familiar ou ainda por posição social – por meio de atos que causem ao outro sequelas – que podem ser permanentes ou temporárias – de caráter físico, psicológico, mas que sempre alteram a moral da vítima.

O violentador pode estar dentro de casa, pode estar no trabalho, na escola ou até na rua, sendo um completo desconhecido. Neste trabalho, evidenciaremos a violência sofrida em âmbito doméstico e sofrida especialmente pelas mulheres por seus pais, maridos, namorados, tios, primos, entre outros.

Vejamos como Valéria Soares de Farias Cavalcanti (2008, p. 25) define “violência”:

“[...] Do ponto de vista pragmático podemos afirmar que a violência consiste em ações de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental ou espiritual.[...] Para alguns cientistas sociais a violência seria própria da essência humana (do estado da natureza). A sociedade pode ser compreendida como uma construção destinada a enfrentar e conter o avanço da violência. René Girard constrói um sistema antropológico-fenomenológico para explicar a origem da cultura e a estrutura de violência nas sociedades. Sustenta que os homens são governados por um desejo gerador de conflitos e rivalidades que apresenta uma estrutura mimética: algo é desejável para alguém exatamente na medida em que também é desejado pelos outros, advindo daí um conflito”.

Vemos no excerto citado que a vontade de ser violento, de assumir uma característica de poder sobre o outro é inato do ser humano, desde que este passou a habitar o mundo. O surgimento da sociedade, conforme a autora, pode ser vista como uma barreira à propagação de tal ato e analisando o sistema em que vivemos, a criação do Direito, de normas regulamentadoras da vida em sociedade, podemos concluir que este veio para consolidar a barreira existente, visando o bem comum de todos os cidadãos pertencentes àquela determinada sociedade e regulando a vida de todos, impedindo assim o “olho por olho, dente por dente”.

Vejamos a definição de “violência” no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa:

violência[...]s. f.1. Estado daquilo que é violento.2. Acto violento. 3. Acto de violentar. 4. Veemência. 5. Irascibilidade. 6. Abuso da força. 7. Tirania; opressão. 8. [Jurídico, Jurisprudência]  Constrangimento exercido sobre alguma pessoa para obrigá-la a fazer um actoqualquer; coacção”.

Assim, uma definição simples de “violência” pode se dar como qualquer ato intentado contra uma pessoa a fim de impor sua própria vontade, seu modo de pensar, utilizando-se de sua superioridade física, hierárquica ou social. Nos próximos tópicos, estudaremos a violência moral contra o ser humano e principalmente a violência moral doméstica sofrida pela mulher.

2.1. Da violência moral

Abordaremos neste tópico e ao longo deste trabalho a violência moral em sentido amplo, como aquela que afeta a moral da pessoa vítima, a que imbrica no ser humano a sensação de inferioridade, de sofrimento, de verdadeira nulidade como ser.

Assim, a par de podermos conceituar a violência moral, a estudaremos como um viés e uma sub-violência consequente das demais, portanto, vemos que para todo tipo de violência existe junto em maior ou menor grau o atingimento da moral da vítima.

Para Marie-France Hirigoyen apud Candy Florencio Thome (2009, p. 35):

“[...] as agressões, no assédio moral, são fruto de um processo inconsciente de destruição psicológica, constituindo-se, tal processo, de atos hostis mascarados ou implícitos, de um ou vários indivíduos sobre um indivíduo específico, por meio de palavras, alusões, sugestões de “não ditos”. [...] trata-se de um processo real de destruição moral, que pode conduzir à doença mental ou ao suicídio”.

É notório do excerto citado a implicação na moral do ser humano vítima de violência de verdadeira destruição psicológica, que atinge o âmago da estrutura emocional da vítima e quando mulher em situação de violência doméstica, vê-se claramente uma agravante, pois a dor é sofrida por alguém a quem a mesma dedicava amor e o esperava recíproco, criando uma contraposição “dor x amor”, sentimentos que não andam juntos, senão são contrários.

Marie-France Hirigoyen (1998, p. 22) observa da seguinte maneira a relação de dominação moral entre os casais:

“Entre casais, o movimento perverso instala-se quando o afetivo falha, ou então quando existe uma proximidade excessivamente grande com o objeto amado.

Excesso de proximidade pode dar medo, e exatamente por isso, o que vai ser objeto da maior violência é o que há de mais íntimo. Um indivíduo narcisista impõe seu domínio para controlar o outro, pois teme que, se o outro estiver demasiado próximo, possa vir a invadi-lo. Trata-se, portanto, de mantê-lo em uma relação de dependência, ou mesmo de propriedade, para comprovar a própria onipotência. O parceiro, mergulhado na dúvida e na culpa, não consegue reagir.

A mensagem não-dita é: “Eu não te amo!”, mas ela permanece oculta para que o outro não vá embora, e atua sobre ele de maneira indireta. O parceiro tem que continuar presente, para ser permanentemente frustrado; ao mesmo tempo, é preciso impedi-lo de pensar, para que ele não tome consciência do processo”.

O trecho extraído da obra da psiquiatra e psicanalista francesa, deixa evidente o processo de dominação que ocorre entre os casais, um verdadeiro processo de anulação do outro, em que apenas um pensa e decide pelos dois, em que apenas um vive pelos dois. É exatamente essa a experiência que encontramos nas mulheres vítima de violência doméstica.

2.2 Da violência de gênero

A violência de gênero se dá quando o homem se acha superior à mulher e por isso esta deve se submeter a ele ou, ao contrário, quando a mulher é que se acha superior, devendo o homem ser-lhe submisso, enfim, se dá com a dominação de um gênero sobre o outro. Ao longo da história, o que vemos na maior parte do tempo é a primeira ocorrência, sendo a mulher verdadeiramente sobrepujada pelo homem, devendo-lhe, mais do que respeito, verdadeira obediência.

Tal exigência, muitas vezes, era corroborada pela legislação, exemplo crucial por exemplo no Brasil, em que até pouco tempo a mulher era tutelada pelo pai e depois que casasse pelo marido, pois não era considerada civilmente capaz.

Talvez o maior problema da violência de gênero ainda existente seja a conivência da sociedade refletida em ditados populares como “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” ou “mulher gosta de apanhar”, que ditas em tom de brincadeira retratam uma realidade de vivência de muitas mulheres.

Para Maria Berenice Dias (2010, p. 18-19):

“Ninguém duvida que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente de responsabilidade do agressor. A sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência, o que impõe a necessidade de se tomar consciência de que a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício do poder que leva a uma relação de dominante e dominado. Essas posturas acabam sendo referendadas pelo Estado. Daí o absoluto descaso de que sempre foi alvo a violência doméstica”.

Apesar de não haver mais no plano da teoria distinção entre os sexos, na prática a sociedade ainda rejeita a mulher que vive por si mesma, pois sem a presença masculina do seu lado, ela é vista como egoísta, manipuladora, ou de alguma forma dotada de mais defeitos do que qualidades e por isso está sozinha. Assim, a própria sociedade não aceita que a mulher possa escolher estar sozinha, pois a mesma impõe a esta desde criança que um homem deve protegê-la, impondo ao mesmo tempo a este a força, a virilidade de um super-homem.

Segundo a OMS – Organização Mundial da Saúde -, 30% das mulheres foram forçadas nas primeiras experiências sexuais; 52% são alvo de assédio sexual; 69% já foram agredidas ou violadas. E mais: segundo um relatório da ONU – Organização das Nações Unidas -, o Brasil é o país que mais sofre com a violência contra a mulher: 23% das mulheres estão sujeitas à violência doméstica.

A par de esses números causarem espanto, ainda não demonstram a realidade, tendo em vista que muitas mulheres simplesmente não denunciam as agressões por se sentirem ameaçadas pelos violentadores ou por sentirem vergonha ou ainda por não quererem ver seus entes queridos presos ou sofrendo alguma pena decorrente das agressões cometidas. Reparemos que essas mulheres, vítimas de violência doméstica, são deprimidas, geralmente solitárias e sempre se acham inferiores às outras pessoas, necessitando mais do que ajuda física de auxílio psicológico, de acompanhamento médico e de apoio de parentes e amigos.

Pois a maior arma do agressor é a destruição da auto-estima da mulher agredida; com constantes críticas a faz acreditar que não é capaz de cuidar dos seus filhos, do seu marido, por fim de si mesma, quando então passa a se subordinar totalmente ao seu homem. E o silêncio da mulher e a sua anulação são uma arma mais forte ainda para a dominação masculina.

Da violência doméstica contra a mulher

A violência doméstica contra a mulher, segundo a OMS, é aquela cometida no âmbito doméstico, do lar, familiar, sempre por um familiar próximo que pode ser o marido, o pai, irmão, um primo, um tio, alguém que tenha o afeto e a confiança da vítima.

De acordo com a Resolução nº. 886, do Conselho de Ministros de Portugal, a violência doméstica possui a seguinte definição:

“Entende-se por violência doméstica toda a violência física, sexual ou psicológica que ocorre em ambiente familiar e que inclui, embora não se limitando a, (sic) maus-tratos, abuso sexual de mulheres e crianças, violação entre cônjuges, crimes passionais, mutilação sexual feminina e outras práticas tradicionais nefastas, incesto, ameaças, privação arbitrária de liberdade e exploração sobre mulheres, atinge também, direta e ou indiretamente, crianças, idosas e idosos e outras pessoas mais vulneráveis, como as deficientes”.

A violência doméstica contra a mulher tomou rumos absurdamente denunciáveis exatamente pelo ostracismo com que era tratada, visto que nem sequer chegava a ser considerada um atentado aos direitos humanos, até porque nem era cogitada a possibilidade de existência deste.

Atualmente, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, com a Constituição Federal de 1988, no Brasil, e especialmente a Lei Maria da Penha, maior visibilidade tem sido dado ao descaso com que era tratada a mulher até pouco tempo. Em pesquisa realizada pela Sociedade Mundial de Vitimologia, constatou-se que, em 2005, em cerca de 70% dos casos de violência contra as mulheres, o agressor é o próprio marido ou companheiro. Em mais de 40% dos casos, ocorrem lesões corporais graves e apenas 2% das queixas resultam em alguma punição.

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O que se faz mais difícil no combate à violência doméstica contra a mulher é o próprio modo de criação dos filhos e filhas que ainda persiste hoje em muitas famílias. O modo diferenciado na forma de criação de meninos e meninas que transforma os filhos em homens machistas e as filhas em mulheres submissas acaba por gerar um conformismo por parte de muitas mulheres que acabam por sofrer em silêncio.

Da violência moral contra a mulher

A moral segundo o dicionário pode ser definida como:

moral (latim moralis, -e, relativo aos costumes) adj. 2 g.1. Relativo à moral. 2. Que procede com justiça. = CORRECTO, DECENTE, HONESTO, ÍNTEGRO, JUSTO, PROBO ≠ DESONESTO, ERRADO, IMORAL, INDECENTE. 3. Não físico nem material (ex.: estado moral). = ESPIRITUAL. 5. Conforme às regras éticas e dos bons costumes.s. f.6. Conjunto dos princípios e valores morais de conduta do homem. 7. Bons costumes. 8. Conjunto de regras e princípios que regem determinado grupo.9. [Filosofia]  Tratado sobre o bem e o mal. 10. Susceptibilidade no sentir e no proceder.s. m. 11. Estado do espírito. = ÂNIMO, DISPOSIÇÃO”

Assim, a moral é o estado de espírito, mais ainda o estado do ser. Portanto, toda forma de violência, seja esta física ou psicológica ou verbal, pode-se dizer, afeta direta ou indiretamente e substancialmente a moral da pessoa vítima, especialmente se for emanada de alguém próximo por quem a vítima tenha alguma afinidade, como é o caso das mulheres que sofrem violência doméstica.

Em entrevista concedida ao blog “Relatos da Nossa Vida”, no dia 4 de setembro de 2010, a psicóloga Karina Dohme diz sobre a violência moral:

“Eu acredito que a violência moral acontece de várias formas e em diferentes ambientes. É inegável que este tipo de violência vem crescendo significativamente, e acontece dentro das famílias, no trabalho, nas escolas, ocasionando uma série de consequências que repercutem tanto na vida profissional, quanto pessoal do indivíduo. Eu acredito que, geralmente, este tipo de violência é fomentado por chefes, empregadores, pais de família, (ou aquele que detém o "poder" dentro de casa), que se sentem no direito de usar tais artifícios a fim de colocar o indivíduo na condição de submisso, usando do poder para constranger e persuadir. O assediador utiliza-se da sua liderança como uma forma de punição, reprimindo o individuo e colocando-o em uma situação inferior. Uma vez implantado o assédio moral, com a dominação psicológica do agressor e a submissão forçada da vítima, a dor e o sentimento de perseguição passam para a esfera do individual sem uma participação do coletivo, marcado pelo cansaço, ansiedade, depressão, estresse, e trazendo uma série de consequências muitas vezes irreversíveis para o indivíduo”.

A psicóloga ainda aconselha para coibir a violência moral:

“Na minha visão, denunciar, dialogar, estabelecer contato com a vítima encorajando-a a sair dessa situação (procurando uma nova empresa, tirando a criança de determinada escola). Dificilmente o agressor tomará consciência de que está errado, por isso, ao meu ver, o melhor caminho é estabelecer uma conexão com a vítima fazendo-a sair da condição submissa e ajudando-a a entender que nenhum ser humano numa condição "superior" profissionalmente ou hierarquicamente tem o direito de usar tais artifícios para determinar a qualificação de outro ser humano em aspectos psicológicos”.

Sem dúvidas, o maior problema da violência doméstica moral impingida contra as mulheres é o fato de ela ser camuflada por um bom comportamento social do agressor. Assim, em casa, no âmbito do lar, este trata sua mulher uma pessoa – e às vezes nem mesmo como uma pessoa, e sim realmente como ninguém – sem direitos e não digna de respeito. No entanto, não levanta contra ela, pelo menos a princípio, nem um dedo, mas denigre sua imagem com críticas na maioria das vezes tolas, porém que envolvem a vítima de tal modo que ela se anula, vindo a sofrer consequências graves, perdendo até a vontade de viver.

Marie-France Hirigoyen (1998, p. 27-28) apresenta-nos um exemplo de violência moral ocorrida entre um casal:

“Monique e Luciano estão casados há trinta anos. Luciano tem um caso há seis meses, que anuncia a Monique dizendo que não consegue escolher. Ele deseja manter o casamento com ela, mantendo também paralelamente este outro relacionamento. Monique recusa com determinação. Ele vai embora.A partir de então, Monique vai a pique. Chora o tempo todo, não consegue dormir, não come. Apresenta manifestações psicossomáticas de angústia: sensação de suores frios, bolo no estômago, taquicardia... Ela sente raiva, mas não de seu marido, que a faz sofrer, e sim dela mesma, por não ter sabido retê-lo. Se ela pudesse sentir raiva de seu marido ser-lhe-ia mais fácil defender-se. Mas, para poder sentir essa raiva, ela precisa conseguir dizer a si mesma que o outro é agressivo e violento, o que pode levá-la a não o querer de volta. É mais fácil, quando se está em estado de choque, como acontece com Monique, negar a realidade dos fatos e permanecer à espera, mesmo sendo essa espera feita de sofrimento.Luciano pede a Monique que continue a almoçar com ele regularmente, para manterem a ligação, do contrário ele poderia vir a partir definitivamente. Se ela se afastar dele, ele a esquecerá. Mas se ela se mostra deprimida, ele não tem vontade de ficar com ela. Seguindo os conselhos de seu psicanalista, ele chegou a propor a Monique que se encontrassem com a namorada dele, a fim de que 'todo mundo se comunique'! Nem por um instante ele parece ter parado para pensar a respeito do sofrimento de sua mulher. Ele simplesmente diz que já está farto de vê-la com aquela cara de cadáver. Ao culpar a esposa, que não faz o que deveria para ficar com ele, Luciano livra-se da responsabilidade quanto à decisão de se separarem”.

Pela história verídica narrada – extraída da experiência profissional da psiquiatra e psicanalista Marie-France – vê-se o “jogo” de sedução e repulsa aplicada pelo agressor contra sua vítima. Assim, como um animal feroz, ele se apodera de sua mulher, descobre-lhe seus segredos, suas fraquezas, conquista sua confiança e depois usa todos esses conhecimentos contra sua vítima. Desse modo, o agressor age sorrateiramente e violenta perversamente sua vítima, e às vezes torna o sofrimento desta irreversível, ela fica inerte, anulada, deixa verdadeiramente de existir, pois se de um lado se sente abandonada, solitária, por outro se sente culpada por este abandono e fica presa entre um misto de tristeza e de raiva (de si mesma!).

A recuperação da vítima nessa situação deve ser feita com muita cautela, pois é uma tarefa árdua, tendo em vista que após a constatação real do ocorrido, após a consciência de vitimização, apodera-se da mulher a vergonha, por ter sido usada, por não ter sido amada, e mais, por ter ela mesma se culpado do fato. E ainda há a importante missão de mostrar à mesma que não importa o que ela faça, ao perverso não interessa o amor, se este não vir acompanhado e cercado pelo ódio.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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