“Em lombo de burro”: o calvário

26/04/2014 às 14:19
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Algumas decisões judiciais são verdadeiras relíquias, em que se evidencia a antiga máxima: "manda quem pode, obedece quem tem juízo". É o caso da decisão que mandou a autoridade policial conduzir um réu no lombo de um asno, caso inexista viatura no local.

              O país continua produzindo relíquias. A novidade vem mais uma vez do Poder Judiciário, em que um juiz de direito após adiar uma audiência por ausência da condução de um réu preso, determinou que "na impossibilidade de não haver viatura deverá a autoridade policial trazer o acusado em lombo de burro, carro de boi, charrete ou de táxi".

               Vivo fosse, Cervantes estaria chocado com tamanha criatividade. Quem sabe o magistrado até ganhasse um capítulo em Dom Quixote de La Mancha. Mas aqui no país têm outros na fila, aguardando seu capítulo ou parágrafo junto aos moinhos de vento... A concorrência é grande e impiedosa. Imagino a cena: o policial, em seu Rocinante, conduz o preso algemado até o lombo do asno. O animal empaca, o policial chicoteia a besta, até que continue o trajeto. O sol na face do preso e a multidão observando o calvário, contribuindo com vaias e gritos. Talvez até algumas pedras sejam arremessadas... Não sei o motivo, mas me lembrei agora de Jesus Cristo ou, mais recente, de Tiradentes.

               Retornando à determinação do julgador, fiquei em dúvida se foi pura gozação, uma crítica irônica ou uma sanção indireta pela ausência de viatura policial. Eis o que preocupa: seja qual for a hipótese o equívoco permanece.

               Em sendo gozação, o erro é crasso. Judiciário não é picadeiro de circo e determinação judicial não é piada. Longe disso.

               Caso o intuito tenha sido o de formular uma critica de forma irônica, mais uma vez se constata o equívoco da determinação. Primeiro, porque se trata de ordem judicial e como tal deve ser cumprida, pena de desobediência. Segundo, porque exige da autoridade policial esforço diverso do que lhe é exigido pela lei. Noutras palavras, a ordem é essencialmente um contrassenso.

               Na terceira hipótese, se o magistrado pretendeu aplicar indiretamente uma sanção, por ausência de viatura no local, errou na execução: "aberratio ictus" do Poder Judiciário! Explico: não existindo viatura no local a culpa é do chefe do executivo; jamais da autoridade policial ou do preso. Por que a autoridade policial tem que conseguir um jumento para transportar o preso? Por qual motivo o preso tem que ser transportado no lombo de um burro? Priva-se a liberdade ou restringe-se a dignidade?

               Noutra ocasião, outro juiz, de outra Comarca, mandou um advogado emendar uma inicial por estar longa demais, dizendo que não tinha como ler livros durante o expediente. Nos argumentos, disse que deveria ser retirado da petição o supérfluo. Mas como sabe que havia supérfluo? Das duas uma: ou leu e reputou supérfluo o conteúdo, o que seria perda de tempo a elaboração de um despacho mandando emendar a inicial ou não leu e afirmou algo sem tomar conhecimento do conteúdo. De uma forma ou de outra, o despacho é mais uma relíquia.

               A antiga máxima parece estar em voga aqui no Brasil, com grande aceitação por parte do Judiciário: "manda quem pode, obedece quem tem juízo".

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