O binômio ilegalidade e lesividade na propositura da ação popular em defesa da moralidade na Administração Pública

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O principal objetivo deste trabalho é estudar a possibilidade de um cidadão ajuizar a ação popular com o intuito de impedir que os atos legais, mas imorais, praticados por agentes públicos causem dano ao patrimônio público, material e imaterial.

 

RESUMO: O principal objetivo deste trabalho é estudar a possibilidade de um cidadão ajuizar a ação popular com o intuito de impedir que os atos legais, mas imorais, praticados por agentes públicos causem dano ao patrimônio público, material e imaterial, principalmente no que se refere à moralidade. A questão principal do estudo será a dificuldade de se concretizar a propositura da ação popular, pois, nem sempre é possível comprovar o binômio ilegalidade/lesividade, critério de admissibilidade exigido, na maioria atos que ferem a moralidade pública.

PALAVRAS-CHAVES: Ação Popular, Ilegalidade, Lesividade, Moralidade Administrativa.

SUMÁRIO: 1- Introdução. 2- A História da Ação Popular no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 3- A Ação Popular e o Princípio da Moralidade. 4- A Ação Popular e os Atos de Improbidade. 5- Requisitos da Ação Popular. 5.1- Legitimidade Ativa e Passiva. 5.2- Binômio Ilegalidade/Lesividade. 6- Posições Doutrinárias e Jurisprudenciais. 7- Conclusão. 8- Referências Bibliográficas.


1-           Introdução

A ação popular é um dos instrumentos jurídicos mais antigos colocados à disposição do cidadão para proteger o patrimônio público, bem como coibir a prática de atos imorais pelos nossos representantes e também de todos os agentes públicos, pois, apesar de não serem eleitos pelo povo por meio do voto, tem o dever de agir com muita responsabilidade e transparência, pois estão trabalhando com um patrimônio pertencente a uma coletividade.

Para Uadi Lammêgo Bulos (2010, p. 775) a ação popular: “Trata-se de um mecanismo que permite a qualquer cidadão, no pleno gozo de seus direitos políticos, invocar a tutela jurisdicional de interesses difusos.”.

No Brasil, atualmente, a ação popular está prevista na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 5º, inciso LXXIII, no qual são assegurados os direitos fundamentais a todos os brasileiros, bem como instrumentos processuais para garantia dos mesmos.

Art. 5º LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

Além da previsão constitucional, no Brasil, a ação popular é também disciplinada pela Lei Ordinária 4.717 de 29 de junho de 1965, que mesmo sendo anterior à Carta Magna, continua em vigor, pois o seu conteúdo foi recepcionado pelo texto constitucional e assim, especifica mais detalhadamente o seu cabimento e também os procedimentos que deverão ser utilizados.

A ação popular é um instituto processual que deve ser utilizado para viabilizar o exercício da cidadania pelo povo brasileiro, mas muitas vezes não é tão efetivo, porque apesar de ser qualquer cidadão parte legítima, o fato de se exigir a presença do binômio ilegalidade e lesividade para que seja julgada procedente, torna muito difícil a sua propositura, principalmente nos casos de defesa da moralidade pública, pois existem atos considerados lícitos que ferem o princípio da moralidade e são praticados por agentes públicos corruptos e sem ética.

2-           A História da Ação Popular no Ordenamento Jurídico Brasileiro

A ação popular está presente no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição do Império outorgada em 25 de março de 1824 pelo imperador D. Pedro I. Já em 1824, a ação popular era o instrumento indicado para que os cidadãos fiscalizassem e combatessem as ilegalidades praticadas na administração pública conforme consta em seu artigo 157.

Art. 157: Por suborno, peita, peculato e concussão haverá contra eles a ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo, guardada a ordem do processo estabelecido na lei.

A ação popular é uma ação de natureza constitucional, sendo assim, a sua previsão está essencialmente no texto constitucional. No Brasil, apenas duas constituições não colocaram em sua redação a ação popular, sendo elas a constituição de 1891 e a de 1937, em todas as outras havia a previsão da ação popular, respeitando- se as peculiaridades de cada uma.

A constituição de 1934 trouxe em seu artigo 113, §38 a possibilidade de “qualquer cidadão pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”.

Em 1937, a constituição outorgada pelo então presidente Getúlio Vargas, conhecida como Polaca, não trouxe a previsão da ação popular, pois implantava a ditadura do Estado Novo, e a ação popular, como instrumento eminentemente democrático, contrariava os interesses da época.

Com o fim do Estado Novo, a ação popular voltou a fazer parte dos textos das constituições seguintes. Na constituição de 1946, estava prevista no artigo 141, §38. Nas constituições de 1964 e 1967 também estava prevista nos artigos 150, §31 e 153, §31, respectivamente, mesmo estando o Brasil, na época, vivenciando um período de ditadura imposto pelos militares na Revolução de 1964.

Mas, somente com a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, denominada constituição cidadã, a ação popular foi prevista no texto como um “remédio constitucional”, ou seja, foi incluída em rol de instrumentos jurídicos utilizados para tornar efetivo o exercício dos direitos constitucionais.

Pela primeira vez, o texto constitucional trouxe a ação popular como instrumento para garantir a defesa da moralidade administrativa, dentre outros objetivos também está a anulação dos atos lesivos ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, corroborando o que está prescrito na lei ordinária 4.717 de 29 de junho de 1965, lei que disciplina a ação popular, recepcionada pela Carta Magna.

3-           A Ação Popular e o Princípio da Moralidade

A moralidade administrativa tornou-se tema de grande relevância no cenário jurídico brasileiro a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com a sua introdução de forma expressa no artigo 5º, LXXIII, como bem jurídico a ser protegido pela ação popular, e também no caput do artigo 37, no qual vem como princípio de observância obrigatória para todos os entes da administração pública, direta e indireta.

Um dos maiores desafios para melhor utilização da ação popular em defesa da moralidade pública é justamente a compreensão do termo, pois tem um significado com alto grau de abstração, sendo sua conceituação ampla. De modo geral o significado de moralidade, de acordo com o dicionário da língua portuguesa Houaiss, é: “a qualidade do que segue os princípios da moral”, entendendo moral como: “o conjunto de condutas desejáveis a um grupo social”.

Já a moralidade administrativa como princípio constitucional, muito além do que foi dito acima, significa também a obrigação que tem o administrador público de cumprir com seu dever sempre pautado na ética, na razoabilidade, na justiça e, sobretudo na honestidade, compreendendo o princípio da lealdade e da boa-fé. São virtudes que devem ser comprovadas por todos os agentes públicos, como afirma o Ministro Marco Aurélio Mello: “o agente público não só tem que ser honesto e probo, mas tem que mostrar que possui tal qualidade. Como a mulher de César”. (STF, 2ªT, Rel. Min. Marco Aurélio, RE 160.381/SP, RTJ 153/1.030).

No mesmo sentido é a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p.107) a respeito da moralidade administrativa: “[...] a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação do próprio Direito [...]”.

Como se vê, o princípio da moralidade é muito complexo, e isso dificulta a sua aplicação nos casos concretos, principalmente na propositura da ação popular, pois como já foi dito anteriormente, existem atos praticados pelo gestor público que estão em conformidade com a legislação, mas que são totalmente imorais, além de causar, muitas vezes, prejuízos ao patrimônio público. Portanto, em muitas situações, a violação da moralidade administrativa, por meio de atos legais, não é aceita como fundamento para a viabilização da ação popular, gerando assim desentendimentos doutrinários e jurisprudenciais, pois que muitos acham necessária a comprovação do binômio lesividade/ilegalidade.

 Apesar das controvérsias, existem doutrinadores que defendem a moralidade administrativa como pressuposto autônomo da ação popular, mesmo sem a comprovação da lesão ao erário público, como por exemplo, Rodolfo de Camargo Mancuso, que assim diz:

“[...] se a causa da ação popular for um ato que o autor reputa ofensivo à moralidade administrativa, sem outra conotação de palpável lesão ao erário, cremos que em princípio a ação poderá ser acolhida, em restando provada tal pretensão, porque a atual Constituição Federal erigiu a “moralidade administrativa” em fundamento autônomo para a ação popular [...]”. (2003, p. 89, v.1.)

Por último, sustenta o doutrinador Gregório Assagra de Almeida (2003, p.302) que: “O desejo do constituinte foi justamente esse, possibilitar, por intermédio de ação popular, a tutela da moralidade administrativa de forma autônoma”.

Assim, percebe-se que não há um consenso no meio jurídico a respeito da possibilidade de se propor a ação popular nos casos em que os atos são pautados na total legalidade, mas que, são visivelmente imorais, atos que ferem os princípios constitucionais e que causam muitas vezes lesão ao patrimônio material e imaterial do povo.

4-           A Ação Popular e os Atos de Improbidade

O termo improbidade, conforme consta no dicionário da língua portuguesa Houaiss, significa desonestidade, mau caráter, portanto um indivíduo pertencente aos quadros da administração pública que contenha essas características seria um sujeito pouco ou nada confiável, um agente desonesto.

No Brasil, as punições contra os atos de Improbidade Administrativa são regulamentadas pela Lei Ordinária 8.429 de 1992, Lei de Improbidade Administrativa, que trata principalmente do enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. A Lei de Improbidade Administrativa vem elencando atos que importam enriquecimento ilícito, que causam prejuízos ao erário e também os atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, principalmente ao princípio da moralidade, lembrando que os atos que importam enriquecimento ilícito, nem sempre causam prejuízos ao erário, mas com certeza ferem o princípio da moralidade pública.

A legitimidade para ajuizar uma ação de improbidade administrativa, conforme disposto no artigo 17 da Lei Ordinária 8.429 de 1992, pertence ao Ministério Público e também à pessoa jurídica lesada, portanto não é permitido ao cidadão ajuizar uma ação de improbidade para coibir os atos imorais praticados por seus representantes.

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Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.

A restrição feita pela lei, no que se refere aos legitimados, prejudica os principais interessados, os cidadãos, pois, o recurso dado a eles seria a ação popular, e esta não enquadra os atos de improbidade que estão em conformidade com a lei, tendo em vista a necessidade de se comprovar o binômio ilegalidade/lesividade.

5-           Requisitos da Ação Popular

A ação popular, como toda ação judicial, está subordinada às determinações previstas na legislação processual. As condições gerais da ação popular são as mesmas exigidas para qualquer outra ação, portanto deverá conter, além dos requisitos específicos, também os requisitos gerais, ou seja, a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade para a causa.

Os requisitos específicos da ação popular são: a ilegalidade ou ilegitimidade do ato a ser impugnado, a lesividade causada pelo ato ao patrimônio público e ainda um requisito peculiar no que se refere à legitimidade ativa, pois que a ação popular só pode ser proposta por cidadão brasileiro.

5.1 - Legitimidade Ativa e Passiva

A parte legítima para propor a ação popular, de acordo com o artigo 5º, LXXIII da Constituição da República é o cidadão brasileiro, ou seja, o brasileiro nato ou naturalizado, desde que esteja no pleno gozo de seus direitos políticos, comprovando tal situação por meio da cópia do título eleitoral ou documento correspondente que deverá ser juntada na petição inicial. No mesmo sentido dispõe o artigo 1º, § 3º da Lei Ordinária 4.717 de 1965: ”A prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda”.

Assim, não podem ser autores da ação popular os estrangeiros, os apátridas, os partidos políticos e pessoas jurídicas, conforme consta na Súmula 365 do Supremo Tribunal Federal: “Pessoa Jurídica não tem legitimidade para propor ação popular”.

Dentre os legitimados ativos para a propositura da ação popular estão os maiores de 16 anos e menores de 18 anos, que, de acordo com a Constituição da República, no seu artigo 14, §1º, II, c, podem exercer facultativamente o direito de voto. Esta possibilidade gera controvérsias, no que se refere à exigência do menor de 18 anos estar ou não devidamente assistido conforme consta no artigo 8º do Código de Processo Civil, Lei Ordinária nº 5.869 de 1973, cumulado com o artigo 4º, I do Código Civil, Lei Ordinária nº 10.406 de 2002,  pois eles não possuem capacidade processual.

No que diz respeito à ação popular, porém, a legitimidade do cidadão decorre da Constituição da República Federativa do Brasil, portanto, para muitos estudiosos o menor de 18 anos, eleitor, poderá sim ser parte legítima da ação popular, sem a necessidade da assistência dos pais ou tutores. Esse é o entendimento do doutrinador Pedro Lenza (2009. P. 747): “Entendemos que aquele entre 16 e 18 anos, que tem título de eleitor, pode ajuizar a ação popular sem a necessidade de assistência, porém, sempre por advogado (capacidade postulatória)”.

Na mesma diretriz tem-se a opinião de Gustavo de Medeiros Melo:

Com presunção de consciência política amadurecida, mercê do direito constitucional ao voto, o adolescente naquela faixa etária, mesmo sem representante legal, pode promover a ação popular, desde que, agora sim, disponha do título de eleitor ou documento equivalente. (2006, p. 184)

No polo passivo da ação popular, conforme consta no artigo 6º da Lei Ordinária 4.717 de 1965, deverão constar todos os beneficiados do ato ou omissão lesiva, bem como os responsáveis por ele.

Art.6º A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.

             Na ação popular ajuizada contra os entes públicos, se julgada procedente e sendo declarada a culpa ou dolo do agente causador do ato lesivo, poderá o ente público condenado propor uma ação de regresso contra o agente, conforme consta no artigo 37, § 6º da Constituição da República, que faz menção à responsabilidade objetiva do Estado.

            O Ministério Público na ação popular exercerá a função de fiscal da lei, mas conforme consta no artigo 9º da Lei Ordinária 4.717 de 1965, se o autor desistir, poderá promover o prosseguimento da ação.

 Art. 9º Se o autor desistir da ação ou der motiva à absolvição da instância, serão publicados editais nos prazos e condições previstos no art. 7º, inciso II, ficando assegurado a qualquer cidadão, bem como ao representante do Ministério Público, dentro do prazo de 90 (noventa) dias da última publicação feita, promover o prosseguimento da ação.

5.2 - Binômio Ilegalidade/Lesividade

Para o cabimento da ação popular, como foi dito acima, exigem-se alguns requisitos que são específicos, além dos requisitos gerais exigidos pelo Código de Processo Civil. Dentre esses requisitos está a comprovação da ilegalidade e a lesividade, pressupostos que geram muitas controvérsias no mundo jurídico atual, quanto a sua exigência para a validade do pedido de anulação do ato contido na ação popular.

A legalidade, assim como a moralidade, é um princípio básico da administração pública, e é de observância obrigatória por todo bom administrador. Está previsto no artigo 37, caput, da Constituição da República e significa que todo ato praticado pelo agente público, termo que abarca todos aqueles que desempenham a função estatal, sejam agentes políticos ou servidores estatais, deve estar de acordo com a lei.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello ato administrativo é conceituado da seguinte forma:

[...] declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.(2005, p.358)

Por ato ilegal, pode-se entender que seja todo aquele praticado em desconformidade com a lei vigente. O ato ilegal praticado pela Administração Pública pode ser nulo ou anulável por via judicial, e a ação popular é um dos meios apropriados para isso, ou administrativamente, quando a Administração reconhece que praticou um ato contrário à legislação.

Quanto ao conceito de ilegalidade nos casos de anulação do ato administrativo, diz Hely Lopes Meirelles:

O conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação do ato administrativo, não se restringe somente à violação frontal da lei. Abrange não só a clara infringência do texto legal, como também o abuso por excesso ou desvio de poder, ou por relegação dos princípios gerais do Direito. (1995, p.187)

            Para corroborar a opinião do ilustre doutrinador, a Lei Ordinária 4.717 de 1965 traz em seu artigo 2º os casos em que são nulos os atos lesivos ao patrimônio público:

Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

a) incompetência;

b) vício de forma;

c) ilegalidade do objeto;

d) inexistência dos motivos;

e) desvio de finalidade.

Além de ser ilegal, o ato objeto da ação popular deve ser lesivo ao patrimônio público, que poderá ser material ou imaterial, econômico ou não, por exemplo, nos casos de ação popular ajuizada em defesa da moralidade pública e do meio ambiente.

Pode-se dizer que lesivo é todo ato ou omissão do agente público que de alguma forma prejudica a administração e consequentemente toda a sociedade, podendo essa lesão, conforme opinião de Hely Lopes Meirelles, ser:

[...] tanto pode ser efetiva quanto legalmente presumida, visto que a lei regulamentar estabelece casos de presunção de lesividade (art.4º), para os quais basta a prova da prática do ato a naquelas circunstâncias para considerar-se lesivo e nulo de pleno direito. (1999, p.177)

A lesividade em alguns casos específicos previstos no artigo 4º da Lei Ordinária 4.717 de 1965 é presumida de forma absoluta, ou seja, basta a configuração do ato para que ele seja considerado lesivo, e, consequentemente capaz de ensejar a propositura da ação popular.

O binômio ilegalidade/lesividade continua sendo, em muitos casos, considerado pela doutrina e jurisprudência essencial para que a ação popular seja considerada procedente. Exceção se observa na ação popular ambiental, pois, no caso, conforme salienta Rodrigues (2006, p.224) basta o dano ao meio ambiente e nexo de causalidade entre a conduta e o dano, independentemente de culpa.

Já a ação popular em defesa da moralidade administrativa traz muitas controvérsias no que se refere à exigência do binômio ilegalidade/lesividade, tendo em vista que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ampliou o alcance da ação popular erigindo a moralidade como um objeto autônomo. Existem correntes que defendem a necessidade da moralidade administrativa vir sempre conjugada com alguma infração a um dispositivo legal, portanto, necessário o binômio ilegalidade/lesividade, pois, caso contrário, o subjetivismo amplo daria possibilidade para disputas partidárias e abusos judiciais.

6-           Posições Doutrinárias e Jurisprudenciais

Quando o assunto é a exigibilidade do binômio ilegalidade/lesividade como requisito para o ajuizamento da ação popular em defesa da moralidade pública, os posicionamentos são diversos. Não existe um consenso no que se refere a este assunto. Existe opinião favorável à sua dispensa devido ao fato de a Constituição da República ter trazido a moralidade como fundamento autônomo para o ajuizamento da ação, e também há os que defendem que não é possível sem a presença do binômio.

Em algumas situações, a lesividade de forma presumida é aceita, conforme o artigo 4º da Lei Ordinária 4.717 de 1965, mas nunca dispensada. Nesse sentido é a opinião de Luiz Manoel Gomes Junior:

[...] impossível ignorar que a própria Constituição Federal exige a lesividade. Pode-se admitir a adoção de situações na qual a lei tenha como presente tal requisito, ainda que por presunção, mas nunca dispensá-lo dizendo-se que seria derivado da própria ilegalidade, sob pena de ser ignorado o sentido do preceito constitucional que expressamente o exige. (2004, p.33 apud Ferrari Neto, 2006, p. 266).

Existe ainda uma corrente que sustenta que a lesividade traz presumida a ilegalidade. Para Michel Temer (1991, p. 204) “[...] é impossível a existência de um ato lesivo, mas legal. É que a lesividade traz em si a ilegalidade”. Considera-se assim que, o ato lesivo é sempre ilegal, caso contrário, se não houvesse a presunção de ilegalidade o Poder Público estaria sendo conivente com os atos lesivos ao seu patrimônio material ou imaterial.

Seguindo o raciocínio de que os atos considerados lesivos são sempre ilegais é a opinião de André Ramos Tavares:

[...] o fato de determinados atos serem descritos em lei como lesivos, fazem com que também sejam considerados ilegais (art. 4º da Lei da Ação Popular). Logo, em tais casos a prova da lesividade é dispensada por ser presumida. Conclui, afirmando que pelo fato de tais hipóteses terem sido consideradas ilegais, não se pode levar a conclusão de que a ilegalidade é um requisito para a propositura da ação popular. (2002, p.689, apud Ferrari Neto, 2006, p.267).

Em posição contrária da maioria, a favor da dispensa da comprovação do binômio ilegalidade/lesividade, está Maria Garcia quando diz que:

[...] a exigência da simultaneidade dos requisitos (lesividade/ilegalidade) vai representar, efetivamente, um obstáculo ao exercício da cidadania, desviando-se da dicção constitucional, expressa sobre a suficiência da lesividade, despiciendo demonstra que a lei 4717/65 demonstra-se neste particular, na própria definição de seu art. 1º e em muitos aspectos de seu texto, eivada do vício de inconstitucionalidade, merecendo total revisão. (2000, p.94, apud Ferrari Neto, 2006, p 267).

            Outra polêmica surge quando se vislumbra a ideia de somente exigir a lesividade como requisito para a propositura da ação popular, sem que seja o ato considerado ilegal, pois, neste caso haveria uma violação ao Princípio da separação dos Poderes, já que o Poder Judiciário só poderá anular os atos administrativos eivados de ilegalidade. Os atos legais somente poderão ser anulados ou revogados pela própria administração. Assim entende Luiz Manoel Gomes Junior:

[...] adotar outra conclusão seria permitir um subjetivismo inaceitável, ao nosso ver, que traria mais consequências negativas que positivas. Há certas opções políticas que, ainda que lesivas, são legais, não havendo a possibilidade de controle apenas sobre o prisma econômico, isto sob pena de substituição dos critérios do administrador pela do julgador. (2004, p. 37, apud Ferrari Neto, 2006, p. 268).

Ainda, de acordo a opinião de Luiz Manoel Gomes Júnior, transcrita por Gilberto Gomes Bruschi, a presença do binômio é essencial para a propositura da ação. Assim diz:

[...] para que se possa acolher o pedido em Ação Popular, fundamentado na violação ao Princípio da Moralidade Administrativa, deve haver o desatendimento de alguma regra escrita e, ainda, a demonstração do prejuízo efetivo ou potencial, ainda que presumido, sendo este último de forma clara e precisa, pois a utilização de frase de efeito – ‘o prejuízo estaria na violação ao Princípio da Moralidade Administrativa” – apenas denota a incapacidade de descrevê-lo e a inutilidade da via eleita do ponto de vista prático. (2004, p. 28, apud Bruschi, 2006, p.51).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            

Apesar das diversas opiniões na doutrina o que vem prevalecendo em nossos tribunais é a exigência do binômio ilegalidade e lesividade. Nesse sentido foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça:

AÇÃO POPULAR. PROVA EFETIVA. LESIVIDADE. ATO ADMINISTRATIVO.

Para o cabimento da ação popular, é necessário que se demonstre a ilegalidade do ato administrativo, bem como se prove sua lesividade seja sob o aspecto material seja sob o moral. Não se deve adotar a lesividade presumida em função da irregularidade formal do ato. No caso, não existe prova efetiva de lesão ao patrimônio público. Logo a Seção, por maioria, deu provimento aos embargos. EREsp 260.821-SP, Rel. originário Min. Luiz Fux, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgados em 23/11/2005. 

 

            O Supremo Tribunal Federal entende que “a lesividade decorre da ilegalidade e que a ilegalidade do comportamento, por si só, causa o dano” (RT162/59). Logo, prescindível seria a demonstração da lesividade, bastando somente a ilegalidade do ato para a propositura da ação popular.

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO POPULAR. PRESSUPOSTOS. LESIVIDADE AO ERÁRIO. PRESUNÇÃO DECORRENTE DA ILEGALIDADE DO ATO PRATICADO. CONTROVÉRSIA ACERCA DA NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL. QUESTÃO RESTRITA AO ÂMBITO INFRACONSTITUCIONAL. ALEGAÇÃO DE AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO. OFENSA REFLEXA. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que, para o cabimento da ação popular, a própria ilegalidade do ato praticado pressupõe a lesividade ao erário. 2. A questão alusiva à necessidade de produção de prova pericial demandaria o reexame da legislação infraconstitucional pertinente. 3. Violação às garantias constitucionais do processo, se existente, ocorreria de modo reflexo ou indireto. 4. O acórdão recorrido, em que pese haver dissentido dos interesses da parte agravante, está devidamente fundamentado. Logo, não há falar em afronta ao inciso IX do art. 93 da Carta Magna de 1988. 5. Agravo regimental desprovido. (STF AI 561622 AgR / SP – São Paulo AgReg no Agravo de Instrumento Relator Min. Ayres Britto Julgamento14/12/2010 Órgão Julgador: Segunda Turma)

 

 

Corroborando a opinião do Ministro Ayres Britto tem-se a opinião do Ministro Marco Aurélio que diz: “Na maioria das vezes, a lesividade ao erário público decorre da própria ilegalidade do ato impugnado” (STF, RE 160381/SP, Rel. Min. Marco Aurélio. DJ 12.08.94, P. 20052)

Contrário aos posicionamentos acima, inclusive do próprio STJ, é o posicionamento da Ministra Eliana Calmon do STJ no REsp 964909/RS, quando diz que “A Jurisprudência do STJ admite o ajuizamento da ação popular na defesa da moralidade administrativa, ainda que inexista dano material ao patrimônio público”. (STJ, REsp 964909/RS, Rel. Min. Eliana Calmon. DJe 23/11/2009)

Conforme se vê a jurisprudência contemporânea dos tribunais não está harmonizada, apresenta opinião diversa no que diz respeito à necessidade da presença do binômio lesividade e ilegalidade na propositura da ação popular, assim como também há divergências nas opiniões dos doutrinadores.

7-           Conclusão

A ação popular é ainda o meio mais democrático para que o povo possa combater os atos lesivos ao patrimônio público, mas quanto aos atos lesivos à moralidade pública, conclui-se que esta ação não é um meio eficiente, haja vista as dificuldades em se comprovar o binômio ilegalidade/lesividade nos atos a serem combatidos, pois, como já dito, muitos atos legais ferem este princípio.

A moralidade administrativa, princípio que em tese poderá ser defendido pela ação popular, tem um significado muito amplo e em sua essência estão atos pautados na ética, na justiça e, sobretudo na honestidade, com já dito acima, compreende o princípio da lealdade e da boa-fé. O que ocorre, na maioria das vezes, é que muitos atos imorais praticados pelos agentes públicos estão em perfeita concordância com a legislação vigente, e podem ser lesivos ou não ao patrimônio público, mas com certeza são lesivos ao patrimônio moral da sociedade.

Além da comprovação do binômio ilegalidade/lesividade, pois os atos que aqui interessam são os atos legais, conclui-se que dois outros obstáculos surgem para impedir a utilização da ação popular de forma adequada para impedir que atos lesivos à moralidade sejam praticados pelos agentes públicos. Temos um obstáculo de ordem jurídica e um obstáculo de ordem moral.

O respeito ao princípio da separação dos poderes, é um dos obstáculos apresentados, pois os atos administrativos considerados legais não podem ser anulados pelo Poder Judiciário, são atos privativos, somente a Administração Pública poderá revogá-los.

Mesmo que a moralidade administrativa seja considerada um pressuposto autônomo, como defendem alguns doutrinadores, surge ainda outro obstáculo, que é a utilização da ação popular com objetivos escusos, ou seja, a sua utilização de forma indevida por pessoas inescrupulosas com objetivos claros de denegrir a imagem pública de agentes que tenham o interesse real de fazer o bem público. Esta possibilidade geraria muita insegurança, além de um grande congestionamento no Poder Judiciário, que se depararia com inúmeras ações populares sem a comprovação do binômio ilegalidade e lesividade.

Portanto, a exigência do binômio ilegalidade/lesividade é necessária para que a ação popular seja ajuizada, mesmo que a lesividade seja de forma presumida com é defendido por alguns autores, a ilegalidade, com certeza é imprescindível.

Quanto a moralidade lesada por práticas de atos legais, esta não pode ser defendida por meio da ação popular, mesmo que sejam lesivos ao patrimônio material e imaterial. Mas não quer dizer que o cidadão não possa de alguma forma manifestar sua indignação diante de atos corruptos e desonestos, pois outros meios existem e podem ser utilizados, como por exemplo, uma denúncia feita ao Ministério Público, órgão legitimado para ajuizar a ação de improbidade administrativa, que é, sem dúvida, a ação mais apropriada.

8-            Referências Bibliográficas

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Sobre os autores
Douglas Luis de Oliveira

Mestre e graduado pela Universidade Federal de Viçosa, coordenador do programa de pós-graduação em Direito e Gestão Pública, professor a área de Direito Público, nas Faculdades Univiçosa e Dinâmica.

Kátia Regina Ferreira

Graduada em Direito pela Faculdade Univiçosa , pós-graduanda em Direito e Gestão Pública pela Faculdade Univiçosa e servidora do TJMG.

Elaine Harumi Sediyama

Graduada em Odontologia pela Universidade Federal de Uberlândia, pós-graduanda em Direito e Gestão Pública pela Faculdade Univiçosa e servidora do TJMG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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