Artigo Destaque dos editores

A efetividade das decisões judiciais nacionais em território estrangeiro

Exibindo página 2 de 3
01/07/2002 às 00:00
Leia nesta página:

IV - A EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE OBJETIVA PARA A TEORIA DO IMPACTO TERRITORIAL.

Após analisar o tema da jurisdição extraterritorial do Estado e de seus limites nos princípios ditados pelo direito internacional, neste capítulo procurar-se-á tecer algumas considerações sobre a evolução do conceito de soberania no direito norte-americano e internacional, da perspectiva do direito interno (absoluta) para a perspectiva do direito internacional (relativa), tomando como base a jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos na interpretação das leis anti-monopólio editadas no fim do Século XIX e primeira década do Século XX.

Os Estados Unidos conquistaram sua independência em 1776, após um conturbado processo marcado pela intolerância da Inglaterra, que impunha à colônia diversos tributos para recuperar os prejuízos da Guerra dos Sete Anos com a França. Seguiu-se a Primeira Guerra da Independência, que garantiu às 13 colônias autonomia até a formação do estado federal e a promulgação da Constituição (1789) (21). Nestes primeiros anos de independência os Estados Unidos conviveram com a ameaça britânica de reconquista. Talvez por esta razão e por um longo tempo, a Suprema Corte dos Estados Unidos expressou em seus julgados o caráter exclusivamente territorial para delimitação da sua jurisdição, provavelmente para fortalecer nos tribunais sua posição de independência (22).

O ilustre Juiz Marshall, que teve cadeira na Suprema Corte dos Estados Unidos no início do Século XIX, atento aos movimentos políticos na Europa e partidário da política norte-americana de fortalecimento da política interna e externa, não concordava com a perspectiva de soberania mitigada que propiciou na Europa a partição de Estados (23) surgidos após a Revolução Francesa de 1789, cujos princípios coincidiam com aqueles que ensejaram a própria independência dos Estados Unidos, em 1776.

Na visão conservadora e nacionalista de Marshall... "a jurisdição de uma nação dentro de seu território é necessariamente exclusiva e absoluta. Não é suscetível de limitação senão por si mesma. Qualquer limitação da jurisdição, oriunda de fontes externas, implicaria na diminuição da soberania...tudo o que estiver no território de um Estado está sob seu pleno controle, o que estiver fora, não".

Esta proposição de Marshall causava conflitos potenciais entre estados federados e como passar dos anos passou a ser desinteressante também aos interesses externos dos Estados Unidos. Neste contexto, em 02 de dezembro de 1823 era lida a mensagem de Monroe, conhecida como Doutrina Monroe (24), em muitos pontos coincidente com a posição defendida por Marshall e seu pares na Suprema Corte.

Nesta mesma época, o Juiz Story (contemporâneo de Marshall na Suprema Corte), sem abrir mão do rígido conceito de soberania lastreado na territorialidade, passou a exercer a jurisdição americana em território estrangeiro (internacional) com fundamento no Law of Nations (embrião do international law, ou direito internacional, expressão que passou a ser francamente utilizada na Suprema Corte no início do Século XX), ou seja, em princípios de direito universais que incriminavam determinadas condutas.

No caso US x Schooner La Eugénie, por exemplo, a conduta criminosa, dita internacionalmente reprovável, que legitimou a apreensão do navio francês foi o tráfico de escravos africanos (25): em 1822 uma escuna francesa foi apreendida por um navio americano em águas internacionais, nas costas da África, com escravos africanos a bordo. Os escravos foram colocados sob a tutela das leis americanas e o navio La Eugénie entregue às autoridades francesas. Os Estados Unidos pagaram indenização à França pela apreensão do La Eugénie e de outros navios franceses, mas reafirmaram seu direito de busca e apreensão de navios em alto mar sob o argumento de estarem sendo empregados no tráfico escravo.

Em 25 de setembro de 1826 sobreveio a Convenção de Genebra sobre Tráfico de Escravos, que expressamente passou enquadrar o princípio do Law of Nations de repúdio ao tráfico negreiro, possibilitando aos Estados Unidos e as demais países em industrialização, entre estes a Inglaterra, com base num direito positivo, o combate mais efetivo ao tráfico negreiro, especialmente aquele realizados por países europeus e colonialistas como Portugal e Espanha (26). Com o passar dos anos, os Estados Unidos passaram a abertamente expor seus interesses na expansão de seu território, confirmando cada vez mais sua hegemonia geopolítica na América (27).

Em 1861, a tônica da escravidão, mal resolvida no início do Governo Monroe (28), foi o estopim político da guerra deflagrada entre o norte (industrial) e o sul (escravocrata): a Guerra de Secessão. Reestabelecida a unidade federativa americana com o fim da Guerra, em 09 de abril de 1865, os Estados Unidos, movidos pela vitória do industralismo do norte, procuraram incrementar sua indústria e descobriram novas jazidas de petróleo, ferro e carvão, o que lhes deu grande impulso para fazer de sua política externa comercial um reflexo do sucesso de sua política-econômica interna.

Neste espírito, quinze anos mais tarde, em 1890, foi promulgado o Sherman Act, lei anti-monopólio que estabelecia a ilegalidade de todo o acordo ou contrato em forma de fidúcia (trust), cujo objetivo ou de cuja execução resultasse restrições ao comércio entre estados membros da federação americana, impondo penalidades criminais e civis para indenização dos prejudicados.

Anos mais tarde, em 1914, foram editados o Federal Trade Comission Act, que coibia a concorrência desleal e o Clayton Act, que proibia fusões e incorporações da qual resultassem situações monopolísticas.

Com a expansão comercial americana, estas leis internas passaram a ser aplicadas a empresas americanas (dentro e fora dos Estados Unidos) e à empresas estrangeiras, tanto em território americano, quanto em áreas independentes. A justificativa americana para a extensão de sua jurisdição fez nascer a teoria do impacto territorial, que traz para a jurisdição interna o poder para conhecer, processar e julgar fatos e pessoas, cujos resultados ou as ações viessem a produzir efeitos em território norte-americano.

Deste modo, a Suprema Corte, a partir de interpretações extensivas da lei interna, com grande margem de discrição (definição e enquadramento do fato à lei), passou a conferir a estas leis internas (Acts) efeitos extraterritoriais.

Na esteira desta evolução, teve-se julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos o caso American Banana (29), o caso Alcoa e o caso ICI; na Corte Permanente de Justiça Internacional , o caso Lotus, este último já relatado.

Pouco antes de 1914 anteriormente referido, em 1909, a Suprema Corte julgou o caso American Banana ainda sob o estrito critério de territorialidade. Sob os auspícios do Sherman Act, a companhia americana American Banana promoveu um ação contra outra companhia americana chamada United Fruit, quando o governo da Costa Rica, ao confiscar todos os equipamentos e terras da American Banana que estavam em território costa riquenho, favoreceu a United Fruit com o monopólio da exportação e do comércio interno de bananas nos Estados Unidos. A Suprema Corte decidiu que os atos políticos ou de império dos Estados são de jurisdição absoluta destes, portanto estão fora da área de competência de outros Estados. Esta tese de Act of State foi aprofundada no caso Sabbatino (30), que reconheceu a incompetência dos tribunais americanos para julgar atos políticos e de império de Estado.

Como bem destacado pelo Prof. Magalhães (31)... "A importância do caso reside no fato de se tratar de questão envolvendo práticas monopolísticas levadas a efeito por empresa norte-americana, fora do território dos Estados Unidos, tendo a Suprema Corte se pautado estritamente pelo princípio da territorialidade da jurisdição, respeitando a jurisdição e competência alheias." Contudo, vale lembrar que a solução da Suprema Corte considerou a falta de prova do concurso da United Fruit para o resultado monopolístico. Por outro lado, se o confisco se deu em território da Costa Rica, a Suprema Corte sabia que não haveria como executar na Costa Rica decisão diversa, uma vez que a American Banana perdera não só os implementos agrícolas, mas também os próprios meios de produção (terra). Tinha-se, então, um problema de efetividade e resultados práticos.

No entanto, em 1911, a posição da Suprema Corte passava a tomar rumos diferentes daqueles da aplicação estrita do princípio da territorialidade, passando à aplicação da teoria do impacto territorial.

Envolvidos pelo ideal protecionista de suas leis anti-truste, os Estados Unidos passaram a combinar uma teoria de conspiração com a idéia do impacto interno de eventos ocorridos no exterior. Isto ocorreu no julgamento do caso American Tobacco (1911), no caso Nord Deuscher Lloyd (1912) e no caso Sisal Sales (1927) (32), coroando-se com o impacto internacional negativo do caso Alcoa, cujos resultados encontram boa justificativa na frase do o ex-presidente americano Thomas Jefferson - "a aplicação de leis é mais importante que sua elaboração".

Novamente em 1936, empresas não americanas reuniram-se na Suíça para formação de um cartel que delimitaria a produção de lingotes de alumínio, constituindo uma empresa suíça denominada Alliance. O acordo durou até 1938, mas a Alliance jamais foi dissolvida. Nos Estados Unidos, a Alcoa, empresa americana, cujos sócios detinham o controle acionário da Alluminum Limited, a qual, por sua vez, participava da Alliance, sofreu uma ação do governo americano com base na legislação anti-truste (Seção I do Sherman Act). Desta ação não escapou também a Alluminium Limited que, mesmo sendo canadense, tinha um grande escritório em território americano. A decisão da Suprema Corte foi pela aplicação das leis anti-truste americanas às condutas executadas em território estrangeiro (formação de cartel na Suíça), pois seus efeitos produziram-se em território norte-americano.

Finalmente tem-se o julgamento do caso ICI, um dos melhores exemplos de como uma decisão nacional, ao ferir princípios da lei internacional, pode carecer de total efetividade.

A ICI, empresa americana, e a Dupont, empresa francesa, firmaram acordo envolvendo a troca de patentes entre as duas empresas, cujo resultado foi a cartelização dos mercados nos Estados Unidos, violando a legislação anti-truste norte-americana. Como o acordo envolveu também uma subsidiária da Dupont na Inglaterra, a Corte americana determinou a esta subsidiária que também procedesse à devolução das patentes, tal como decidido em relação à Dupont e ICI. A subsidiária inglesa recorreu ao judiciário britânico, que pronunciou totalmente sem efeito a sentença americana em relação à subsidiária inglesa da Dupont, uma vez que, segundo a lei inglesa, somente os tribunais ingleses tinham jurisdição para conhecer e julgar a causa.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

V - A BUSCA DA EFETIVIDADE DAS DECISÕES NACIONAIS EM TERRITÓRIO ESTRANGEIRO.

A teoria do impacto territorial, sustentada pelos efeitos negativos num território dos fatos ocorridos no exterior, como se disse, nada mais é que a aplicação da própria jurisdição interna do Estado, como se considerasse o fato como ocorrido em seu próprio território. Nos Estados Unidos, a solução para a recepção negativa da aplicação judicial desta teoria, mas preservando-lhe a essência, foi regular diretamente as relações comerciais externas das empresas americanas com o restante do mundo.

Neste sentido, fez-se o bloqueio econômico à Cuba (1962) pelos Estados Unidos que proíbe, em linhas gerais, pessoas físicas e jurídicas americanas de operarem com qualquer um que tenha qualquer tipo de relação com o Governo de Fidel Castro. Em outras palavras, se uma empresa da Alemanha vende commodities para Cuba, fatalmente não comercializará seus produtos para uma empresa americana que estará proibida de comprá-los, ou seja, estará legalmente excluído do maior mercado consumidor do Mundo. Ao que parece, a agressiva política americana anti-truste velou-se numa roupagem de legalidade, fundada na soberania e na absoluta jurisdição interna do Estado.

Na verdade, a evidente superioridade comercial americana, que impõe suas leis intenas escancaradamente com efeitos extraterritoriais, sempre tenderá a ser combatida, com mais ou menos sucesso e intensidade, tal como vem sendo feito mais eficazmente na Organização Mundial do Comércio.

O Prof. José Carlos de Magalhães, por exemplo, defende a reestruturação da ordem internacional para adequação dos novos fenômenos que transcendem os limites do território, pois os princípios do direito internacional clássico não se ajustam a essa nova problemática.

Sem embargos, a nova ordem internacional demanda soluções efetivas, que estejam aptas a produzir efeitos concretos em território estrangeiro, o que seria inviável, senão impossível, com a simples violação da jurisdição legal internacional alheia. Destarte, a solução proposta por Falk em 1959, de arranjos horizontais consubstanciados em tratados internacionais como a melhor alternativa para a efetividade das decisões, além de atual, vem sendo largamente aplicada.

Na nova ordem econômica mundial, um sistema de coordenação de fatores para diminuição das disparidades entre os Estados vem naturalmente provocando uma maior integração econômica e política entre eles. Este fenômeno integracionista tem se concretizado em tratados internacionais, tais como o Tratado de Maastritch (1992) e o Tratado do NAFTA (1992), cujos textos procuram abarcar todas as áreas de interesse econômico, político e sociais para consecução dos objetivos colimados no tratado.

A evolução dos meios de produção e de comunicação para as raias da internacionalidade (regionalização e globalização (33)) demanda, além de leis internas que possibilitem a integração, processos mais eficientes e seguros de solução de controvérsias, seja entre os estados, seja entre os particulares. Assim, em se tratando do movimento de formação de blocos regionais, a efetividade tornou-se um importante elemento de integração.

Por estas razões, é que os Estados em processo de integração econômica (i.e. União Européia), através de tratados internacionais vêm atribuindo a jurisdição sobre determinadas matérias a órgãos e tribunais supranacionais regidos por um direito comunitário, fundado na harmonização e uniformização da legislação e na tradição dos Estados, em princípios e técnicas próprios do direito internacional.

Como resultado deste processo legislativo comunitário, as decisões proferidas nos tribunais da Itália tendem a ser efetivas em território da Alemanha, por exemplo.

Por outro lado, fora desta realidade integracionista, a ordem internacional carece de regras positivadas e de conteúdo coercitivo (enforceable) que limitem e façam limitar o exercício da jurisdição dos Estados. Nesta perspectiva, a regra geral é a reciprocidade e os acordos bilaterais de cooperação que têm garantido, em alguns casos, maior efetividade à decisões nacionais em territórios estrangeiros.

Nenhum destes elementos e princípios de direito internacional clássico (da territorialidade objetiva e subjetiva, da nacionalidade, da personalidade passiva, da segurança nacional, da universalidade), nem todas os tratados internacionais que se possam engendrar, podem fazer uma decisão efetiva, senão com o concurso direto dos Estados interessados.

O próprio processo de homologação de sentenças estrangeiras, requisito de exequibilidade para alguns sistemas jurídicos, pode funcionar como um óbice legal, e por vezes político, à efetividade.

Na perspectiva dos indivíduos, cuja análise se procurou afastar deste trabalho, a solução talvez esteja com aqueles que defendem as decisões arbitrais, cuja execuçãode sentenças estrangeiras, pelo menos no Brasil, ainda tem como obrigatória a homologação pelo Supremo Tribunal Federal (34).

Já na perspectiva dos Estados, diante do inevitável processo de integração econômica que deverá dividir (ou unificar, quem sabe?) o Mundo em blocos comerciais, a solução está nas variáveis que se pode criar a partir do modelo de regionalismo europeu, que criou de um tribunal supranacional e harmonizou a ordem constitucional e infraconstitucional interna dos Estados membros em relação ao regramento comunitário.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rodrigo Fernandes More

advogado, professor em São Paulo,mestre e doutor em direito internacional pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORE, Rodrigo Fernandes. A efetividade das decisões judiciais nacionais em território estrangeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2956. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos