A inviolabilidade do sigilo de correspondência como direito fundamental constitucionalizado

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Ao Estado não pode ser permitido entrar na intimidade das pessoas. Há um dever de abstenção, um limite no qual não lhe é permitida a ingerência na esfera privada do indivíduo. É o que caracteriza os direitos fundamentais de defesa.

A INVIOLABILIDADE DO SIGILO DE CORRESPONDÊNCIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL CONSTITUCIONALIZADO

“Os direitos fundamentais são o oxigênio das Constituições democráticas” São estas as palavras de Paulo Bonavides[1], que nos levam ao entendimento de que uma Constituição pressupõe a existência de um catálogo de direitos fundamentais para sua existência legítima.

Importante ressaltar que o fato de estar constitucionalizado, por si só, não garante a um direito o status de fundamental. São outras características inerentes aos direitos fundamentais que nos fazem ter essa certeza e, inclusive, primar para que sejam observados como tais.  O círculo de proteção que os envolve, as reservas de lei, as normas preenchedoras das reservas e outras normas são imprescindíveis de serem consideradas para se entender o alcance de um direito fundamental.[2]

No caso do sigilo de correspondência, constante do rol positivado pelo artigo 5º de nossa Constituição, fácil é perceber seu caráter fundamental, tanto pela observância da importância do direito que procura resguardar, como pela percepção de que ele é  um direito abrangido por outro, de grande e clara importância: a intimidade.

As constituições anteriores de nosso país, bem como as estrangeiras, consagram o sigilo de correspondência como direito fundamental.[3]Não poderia ser diferente na Constituição de 1988, em que é também tratado como fundamental, ao lado do direito à vida, do direito à liberdade, do direito à educação, etc, merecendo, portanto, ser respeitado como tal que é.

Em primeiro plano, para identificar seu caráter fundamental, utilizamo-nos  do simples fato de estar elencado no artigo 5º de nossa constituição, que nos discorre acerca dos direitos e garantias fundamentais. Em que pese tal fato, entendemos que nossa Constituição foi excessiva – não no mal sentido, pois é melhor para que se  afirme ainda mais o sigilo como direito fundamental – quando reservou um inciso para falar do sigilo de correspondência e de comunicações telegráficas e telefônicas, vez que, claramente, fazem parte esses direitos do direito à intimidade, amplamente consagrado como fundamental, e anteriormente positivado no inciso X do mesmo artigo. 

O artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal não admite explicitamente ressalvas ao sigilo das correspondências. Para que haja qualquer restrição a ele, deve-se ter uma lei que a justifique, obedecendo os limites do núcleo essencial. Em não existindo tal lei, há que se levar as eventuais necessidades de restrição à jurisdição, para que ela pondere os bens em voga, e, pautando-se em razões do caso concreto, em que haja colisão com outro direito ou valor igualmente fundamental, determine a possibilidade de restrição ao seu exercício. Queremos ser práticos. O ideal é que não houvesse qualquer tipo de restrição sem a lei regulamentadora, eis que a Constituição não faz ressalvas. Contudo, sabemos que seria utópico pensar que isso ocorra, razão pela qual buscamos uma solução que melhor compatibilize a realidade brasileira com a doutrina dos direitos fundamentais.

A garantia constitucional do direito à intimidade, regida pelo inciso X do artigo 5º da Constituição Brasileira, protege a vida privada dos cidadãos, de forma ampla. Na amplitude de tal proteção, está a inviolabilidade do sigilo de correspondência, garantido também  pelo inciso XII do art. 5º da Carta Magna de 1988. Sendo assim, a quebra do sigilo de correspondência é uma forma de violação da intimidade, vez que aquele direito deste deflui.[4]

Queremos dizer, com isso, que, além de resguardado pela garantia da intimidade, o direito ao sigilo de correspondência está resguardado por um inciso próprio. Assim, a inviolabilidade de correspondência é tutela indireta do direito à intimidade, que objetiva resguardar a revelação de sentimentos, opiniões pessoais, desejos, anseios, expectativas e demandas dos indivíduos, os quais os presos não perderam ao serem presos.

Há uma relação de continência entre essas garantias constitucionais e os bens juridicamente tutelados por elas, na medida em que a correspondência faz parte da intimidade do indivíduo. Tanto também se extrai do Anteprojeto de Reforma do Código Penal Brasileiro, que, em seu art. 157, capitula o crime de Violação da intimidade, que tem como descrição “violar, mediante processo técnico ou qualquer outro meio, o resguardo sobre fato, imagem, escrito, ou palavra que alguém queira manter na esfera da vida privada.” [5]

A característica de intimidade contida na correspondência é reforçada por René Ariel Dotti, quando afirma que:

“A correspondência é sempre confidencial e reservada, quando assim se considera que o direito ao segredo epistolar existe não somente quando se trata de cartas reservadas ou confidenciais, mas igualmente quanto àquelas que não tenham, visivelmente, tal caráter.”[6]

José Afonso da Silva[7]manifesta-se em idêntico e ainda mais amplo sentido, abarcando no sigilo outras categorias de direitos, ao afirmar que

“o sigilo da correspondência alberga também o direito de expressão, o direito de comunicação, que é, outrossim, forma da liberdade de expressão do pensamento. Mas nele é que se encontra a proteção dos segredos pessoais, que se dizem apenas aos correspondentes. Aí é que, não raro, as pessoas expandem suas confissões íntimas na confiança de que se deu pura confidência.” 

Ao Estado não pode ser permitido entrar na intimidade das pessoas. Há um dever de abstenção, um limite no qual não lhe é permitida a ingerência na esfera privada do indivíduo. É o que caracteriza os direitos fundamentais de defesa. O interesse público também é o próprio limite estatal, à medida que não pode configurar interesse público a violação de um direito ou garantia fundamental, a menos que suficientemente justificado como parâmetro para garantia real de outro valor, que, no momento, deva ser considerado.

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Entendemos que se deva confiar à jurisdição as decisões restritivas de direitos fundamentais, que afetem conteúdo essencial do direito porque a responsabilidade do aplicador da norma, enquanto árbitro na decisão da controvérsia, é muito grande, vez que

“cabe ao exegeta enxergar o direito enquanto sistema organizado, fazendo as distinções necessárias para adequar a norma aos seus verdadeiros fins, de modo que se o direito faz as distinções desacertadamente diante das circunstâncias, o erro é do operador jurídico, e não da norma em si. Até porque o direito é instrumento de vida, forma de pacificação social, que ordena o desenvolvimento e as realizações das necessidades humanas dentro dos valores colimados pelo grupo social, de modo que nunca conduz ao absurdo, a não ser que o operador jurídico trilhe o caminho errado.”[8]

Além  de tudo isso, estando positivada nos arts. 150 e 151 do Código Penal, a violação de correspondência é crime, para o qual o legislador determinou a pena de um a seis meses de detenção.


[1]{C}Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 340.

[2]{C}BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 545.

[3]{C}De acordo com a informação de Vânia Siciliano Aieta, e apenas a título de curiosidade, este direito foi consagrado pela a Constituição de 1824 em seu artigo 179, n. 27. Pela Constituição de 1891, em seu artigo 72, § 18, pela de 1934, em seu artigo 113, n. 8, pela de 1937, em seu artigo 122, n. 6. A constituição de 1946 consagrou-o em seu artigo 141, § 6º, a de 1967 no artigo 150, § 9, e o Emendão de 1969 em seu artigo 153, § 9º. In: A garantia da Intimidade como Direito Fundamental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999. p. 125, nota n. 490.

[4]{C}AIETA, Vânia Siciliano. A garantia da Intimidade como Direito Fundamental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999. p. 123.

[5]{C}FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação.Porto Alegre: S.A. Fabris, 2000, p.116.

[6]{C}DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

[7]{C}Curso de Direito Constitucional positivo. 19.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 210.

[8]{C}AIETA. op. cit., p. 123. 

Sobre a autora
Juliana Silva Barros de Melo Sant'Ana

Graduada em Direito<br>Graduada em Administração de Empresas e Administração Pública<br>Pós-Graduada em Direito Público<br>Procuradora Federal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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