A administração pública e a civilização islâmica

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06/08/2014 às 17:14
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(VI)

A vida econômica do mundo islâmico variava de acordo com o tempo e o lugar. Nas áreas centrais da sua civilização, a vida mercantil foi extraordinariamente desenvolvida.

Razão para isso foi terem herdado na Síria e na Pérsia um domínio que já estava marcado por uma empreendedora cultura urbana, que se situava nas encruzilhadas do mundo, junto das principais rotas comerciais entre a África, a Europa, a Índia e a China.

Mercadores e negociantes construíram importante atividade comercial sobre essas antigas fundações e penetraram no sul da Rússia, enquanto caravanas de milhares de camelos chagavam até os portões da Índia e da China. Seus navios abriram novas rotas no Índico, no golfo pérsico e no mar Cáspio.

Uma das causas para o seu posterior declínio foi o fato de os cristãos terem passado a dominar o Mediterrâneo nos séculos XI e XII e roubado o seu controle do oceano Índico no século XVI.

Essa notável expansão do comércio só foi possível graças a um correspondente desenvolvimento da indústria. Foi a capacidade da população de uma região de transformar seus recursos naturais em produtos acabados, a serem vendidos a outras regiões, que proporcionou alicerces para grande parte daquele comércio.

Quase todas as grandes cidades se especializaram num dado tipo de indústria. Mossul (al-Mawsil, em árabe), na Síria, era centro de fabricação de tecidos de algodão. Bagdá especializou-se em vidros, ourivesaria, cerâmica e sedas. Damasco era famosa por seu aço excelente e por seu “damasco”, ou seda com desenhos em relevo. Marrocos ganhou fama pela produção de couros. Toledo, na Espanha, por suas magníficas espadas.

Drogas, perfumes, tapetes, tapeçarias, brocados, lãs, cetins, artigos de metal e mil outros produtos eram fabricados por artífices em muitas cidades. Com os chineses aprenderam a arte da fabricação de papel. Os produtos dessa indústria tinham grande procura não só no próprio império como também na Europa.

Em todas essas áreas a civilização islâmica eclipsou a do Ocidente até o século XII, sem possibilidade de traçar comparações.

O Ocidente só avançou quando tirou partido da absorção de muitas realizações da tecnologia islâmica, como técnica de irrigação, cultivo de novos produtos agrícolas, fabricação de papel e destilação do álcool.

A extensão da nossa dívida para com a influência islâmica reflete-se em grande número de palavras de origem árabe ou persa. Exemplos: tráfego, tarifa, magazine, álcool, musselina, laranja, limão, alfafa, açafrão, açúcar, xarope, almíscar, achaque, açougue, alcatra, alcunha, aldeia, alface, azimute, benjoim, café, enxaqueca, fardo, garrafa, máscara, mesquinho, pataca, quilate, almirante, talco, tripa etc.

Na área intelectual e científica o Ocidente muito deve ao islã. Essa dívida reflete-se nas seguintes palavras árabes: álgebra, cifrão, zero, nadir, amálgama, alambique, alquimia, álcali, soda, almanaque e nomes de muitas estrelas, como aldebarã e betelgeuse.

Quando quase de todo esquecido no Ocidente, o conhecimento filosófico e científico dos gregos foi preservado e expandido pela civilização islâmica. Todas as obras científicas gregas de importância e que sobreviveram da Antiguidade foram traduzidas do árabe para o latim. A preservação e a interpretação das obras de Aristóteles foi recuperada para o Ocidente por intermédio das traduções árabes.  Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Munhammad Ibn Ruchd, conhecido pelo nome de Averróis, tinha tanto prestígio que era chamado de o “comentador” pelos autores ocidentais da Idade Média.

Basta lembrar que os algarismos arábicos constituem um legado intelectual de tremenda importância para quem tentar fazer contas com algarismos romanos.

Talvez a maior influência da civilização do islã sobre o Ocidente tenha sido dada por seu papel de rival poderoso e de acicate à imaginação. A civilização bizantina estava demasiadamente ligada ao Ocidente cristão e, na realidade, não era bastante forte para cumprir essa função.

Os ocidentais em geral desprezavam os gregos bizantinos, mas as mais das vezes respeitavam e temiam os muçulmanos. E nisso estavam certos, pois a civilização islâmica, em seu zênite (outra palavra árabe), foi uma das maiores do mundo.

Embora sua organização fosse frouxa, unia povos distintos, como os árabes, os persas, os turcos, várias tribos africanas e os indianos, por meio de uma grande religião e de instituições comuns.

A unidade da multiplicidade era uma marca islâmica, e essa atitude gerou esplêndida sociedade diversificada, bem como um magnífico legado de descobertas e realizações originais.


N. do A. – Foram utilizadas aqui algumas idéias de Giovanni Reale e Dario Antiseri (Il pensiero occidentale dalle origini ad oggi. 8. ed. Brescia: La Scuola, 1986).

Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

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