Alguns fundamentos do Direito Penal brasileiro

19/08/2014 às 23:56
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A constituição cidadã já chega a quase três décadas de existência sem que contudo consiga modular adequadamente dos direitos construídos dentro do paradigma da modernidade ao modelo de Estado projetado a partir de meados do século XX.

 

É premissa constitucional, principalmente em uma constituição “cidadã, conforme a atual, que a liberdade seja a pedra fundamental. É claro que desdobra-se ela de formas várias e diversas, e também é claro que com tal afirmativa fica estabelecida uma certa hierarquização entre as normas constitucionais, assunto que foge à meta perseguida pelo presente estudo, mas que sendo aceita aprioristicamente, pode ser demonstrada com facilidade. Não é necessário muito esforço para que, ao analisar-se o artigo 5º e seus incisos, aceite-se que a importância dada às liberdades quer individuais, quer coletivas, é de especial realce.  Próprio adjetivo “cidadã”, também implica na aceitação da premissa que a liberdade é cláusula pétrea, e que apenas a norma constitucional permite que seja ela limitada, em caráter excepcional, e nos estritos parâmetros da norma penal

Para que sejam delimitados os princípios gerais da norma penal recorre-se ao preambulo da constituição, de onde são retirados alguns de seus elementos constitutivos[1].

Estado democrático, exercícios de direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, bem estar, desenvolvimento, igualdade, justiça.

Diante de um estado, constituído sob o MODELO DEMOCRÁTICO, e somente diante dele, pode a sociedade almejar os direitos que lhes são assegurados, e com os fins citados. Aí está formado o esboço primário de um direito que tem como conseqüência de suas sanções privação da liberdade, um princípio minimalista, onde o estado deve, cada vez menos, normatizar, pois, a cada delito que surge uma liberdade sucumbe. É a criminalização ação excepcional, imprescindível, e requisito imperativo para que haja a supressão de liberdades individuais.

O conceito de BEM ESTAR é de extrema amplitude, e abrange situações das mais diversas. É sentir-se bem, seguro, no seu mais amplo sentido, segurança social, pessoal, coletiva. É ser livre, livre para viver condignamente. É o avesso das condições exigidas por Rawls[2], em seu modele de estado ultramínimo.

É leviano afirmar-se que a criminalidade está contida em um só elemento. O delito é fenômeno social, resultado de um estado criminógeno, repleto de privilégios e desigualdades, o que resulta na perpetuação da conduta ilícita. O clamor por justiça deve ser feito sem o envolvimento pessoal, passional, que com a justificativa de promover a segurança social julga possível prescindir-se da IGUALDADE e garantias individuais, já que a liberdade que vai ser tolhida é a do “nosso” ofensor, e nunca a nossa própria. Tal modele escapa por completo ao conceito de justiça, pois é impossível falar-se me justiça individual. Somente é concebível a justiça SOCIAL, coletiva, partilhada por todos, de forma equânime.

As teorias que vêem no crime resultados de características individuais, biológicas, ou biopsicológicas deram lugar ao atual conceito de que também é fator criminógeno o meio social, que com ingerências familiares e externas formam um sistema complexo, que interagem com a personalidade do delinqüente. Está o indivíduo, sempre, que necessariamente, que ocasionalmente, inserto em grupos que o influenciam. É nesse sentido que o bem estar social atinge indiretamente ao indivíduo. Do meio desfavorável surge a tendência de condutas indesejáveis, que, em um ciclo vicioso composto de soluções paliativas não chega a qualquer resultado sistematizado, mas sim ocasional.

O DESENVOLVIMENTO é fator anterior e posterior a todo este processo. Chega-se a ele, através de um estado constituído por boas razões, por princípios coerentes, partilhados, de forma comum por todos, com a contribuição social e retribuição dela advinda feita de forma equânime, ônus e bônus para todos.

Dois novos elementos vem complementar o preambulo constitucional. O pluralismo e a fraternidade.

Estado PLURAL é aquele composto por parcelas, por individualidades, por unidades diversas. Diversidade é sinônimo de tolerância, o que leva a um modelo de estado que aceita, que tolera, que admite as diferenças, que não pune aos que fogem do “modelo” desejado ou desejável. A diversidade pode, e deve imperar, e tal diversidade deve ser aceita. Isso implica imediatamente no direito penal. Nenhum fator subjetivo merece tutela penal. Nada que tenha origem anímica pode ser objeto de tutela do direito penal. Aqui divide-se com clareza o campo da moral e do direito, mais especificamente do penal. O imoral não pode ser ilegal, o discrepante não pode ser objeto de sanção. Durkheim[3] vê na moral normas rígidas, que constituem-se em obrigações, sendo dividida ela em dois momentos, observação e julgamento. Vê ainda uma moralidade que em nome da qual condenam os tribunais, com base nas opiniões que julgam. Dista daí, no entanto, a autoridade processual e o mérito casuístico. É o julgamento resultado de uma corte regularmente constituída, para que, com base nas leis vigentes diga do direito em concreto, sem que aspectos de moralidade das condutas seja, ou devam ser, questionados. A moral é anímica, o crime é físico, é ato, é conduta e não intenção. Só o momento vomitivo ou a conduta que não se adequa a padrões sociais desejáveis, desde que não ofensiva materialmente são objetos do direto penal.

O que é tolerância? É a oposição à intolerância, quando no seu sentido positivo, é o rigor na oposição ao que nada aceita, diante de boas razões, ao que se põem de encontro a elas e labora sobre seu lado pernicioso. Também há que se falar em tolerância negativa, omissiva, aceitação, “indulgencia culposa, de condescendência com o mal”[4]. Não é então tolerância a aceitação ilimitada do oposto, mas sim o acatamento dele, quando calcado em boas razões As mesmas observações valem para a FRATERNIDADE, ideal de ordem pessoal, desejável, por certo. Sua ausência, seu desrespeito é merecedor de toda a reprovação, de toda a recriminação, mas de nenhuma punição.

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As penas tem de ser nesses princípios constitucionais, de onde se infere que o legislador autoriza, aceitando dessa maneia que seja excepcionada a liberdade e dignidade das pessoas. Como dito com relação à liberdade, e a proporcionalidade, sua medida de limitação, tem-se na dignidade máxima, principio da pena. Deve então a pena ser o mais digna possível, se é que isso é possível, pois dada à tolerância de tal tipo de sanção surge a exigência paralela de garantir a mais absoluta dignidade em sua execução.

Em um estado formado com base na liberdade e na igualdade vale lembrar as considerações feitas por Bobbio[5], que afirma que “liberdade constitui um estado; igualdade uma relação”. É nossa constituição que busca através da premissa da liberdade o ideal de igualdade, pois, somente com estas premissas satisfeitas pode-se falar em justiça

Como últimos elementos preambulares apresenta o legislador a HARMONIA SOCIAL e SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS. Ambas premissas constitucionais implicam em intervenção mínima, em penalização de forma restritiva, de cominhos que busquem a redução de conflitos, no caso delitos, de forma menos agressiva e ofensiva às liberdades e dignidade o possível. A norma que crivada de injustiça, retribui em excesso, ou sanciona conduta que não é merecedora de sanção penal, ou ainda, que ofende à dignidade do cidadão, é repudiada, por ir de encontro ao princípios aqui mencionados.

Muito se construiu nas nossas quase três décadas de constituição, sem dúvida, mas é importante lembrar que muito ainda há de se construir quando falamos em um direito penal nascido dentro dos parâmetros da constituição brasileira.

Bibliografia

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro.Rio de Janeiro: Revan, 3. ed., 1999

 

BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi di, 1738-1794. Dos delitos e das penas. Trad. Flôrio de Angelis.  São Paulo: EDIPRO, 2000.

 

BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

 

______. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 10.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

 

DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia.. Trad. Paulo J. B. San Martin. São Paulo: Ícone. 1994.

 

HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão.  Peines perdues. Le systême pénal en question 1982:Editions du Centurion, Paris. Trad.: Maria Lúcia Karan. Rio de Janeiro: Luan 2. ed. 1997.

 

 

LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: RT, 1994.

 

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas.Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

 

RAWLS, John. Justiça como Equidade. In: RAWLS, John. Uma Teoria de Justiça. Brasília: UnB. 1981.


[1] constituição da república federativa do brasil 1988

[2] RAWLS, John. Justiça como Equidade.

[3] DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia

[4] BOBBIO, Norberto. A era dos direiros.

[5] BOBBIO, Norberto. Iguladade e liberdade

Sobre o autor
Edson Vieira da Silva Filho

Graduado em Direito pela PUC Minas. Mestre em Direito pela UFPR. Doutor em Direito pela UNESA/RJ. Pós-Doutor em Direito pela UNISINOS. Professor do PPGD da Faculdade de Direito do Sul de Minas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Parte de pesquisa do grupo de estudos razão critica e direito penal, desenvolvida junto ao PPGD da Faculdade de Direito do Sul de Minas

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