É POSSÍVEL JURIDICAMENTE O CUMPRIMENTO DE SENTENÇA DECLARATÓRIA?
Segundo o STJ, sim, dependendo do conteúdo da sentença.
Veja-se, como exemplo:
“(...) 3. Segundo a atual redação do art. 475-N, I, do CPC, é possível a concessionária de energia elétrica promover cumprimento de sentença que reconheceu débito nos próprios autos de demanda ajuizada pelo consumidor, atribuindo-se à sentença "eficácia executiva". (REsp 1261888/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 9.11.2011, submetido ao rito do art. 543-C do CPC).”
(AgRg no AREsp 257206 / RS, 2ª. Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, dec. un. pub. DJE 29.04.2013)
“AGRAVO REGIMENTAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. AÇÃO DECLARATÓRIA. INEXISTÊNCIA DE CONDENAÇÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPOSSIBILIDADE. (...)
2. Em razão das alterações legislativas do Código de Processo Civil, principalmente a que acrescentou o art. 475-N, esta Corte posicionou-se no sentido da possibilidade de execução de sentença declaratória, desde que tenha conteúdo condenatório, a fim de que seja privilegiado o princípio da efetividade.
3. Tal matéria já foi objeto de decisão por esta Corte, por ocasião do julgamento do REsp 1.192.783/RS, de relatoria do Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 4.8.2011, DJe 15.8.2011, submetido à sistemática dos recursos repetitivos. Naquele julgado, firmou-se o entendimento no sentido de que a decisão proferida no processo civil que reconhece a existência de dada obrigação de pagar é título executivo hábil a fundar pedido de cumprimento de sentença.
4. No caso dos autos, todavia, verifica-se que a sentença em questão apenas julga improcedente pedido declaratório de inexistência de débito, e não pedido de reconhecimento de obrigação. Agravo regimental improvido.”
(AgRg no AREsp 351004, STJ, 2ª. Turma, Rel. Min. Humberto Martins, dec. un. pub. DJE 11.09.2013)
Nesta linha de pensamento, JÚNIOR ALEXANDRE MOREIRA PINTO afirma que: 1
“(...) Não se pode confundir a natureza da decisão, com sua aptidão para projetar conseqüências materiais no plano exterior. Equivocada, portanto, a expressão efeito declaratório da sentença. O correto está no conteúdo declaratório, ou mesmo do elemento declaratório da decisão. Os efeitos desta tutela declaratória serão os resultados que, no plano material, advirão com a eliminação da crise de certeza até então existente. (...)”.
Mais adiante, diz: 2
“A inclusão do mencionado dispositivo na sistemática processual brasileira depende exclusivamente da possibilidade de se incluir, nessa demanda declaratória (ajuizada com a lesão já ocorrida) o efeito declaratório. Nessa hipótese propiciaria a sentença declaratória a submissão do réu ao comando da decisão, impondo-lhe, diante da do preceito emanado, a sujeição à demanda executiva. Mesmo porque, pouquíssimo racional seria a utilização de novo processo cognitivo, após o encerramento de outro que já certificou a existência do direito e o modo pelo qual este se desenvolveu, garantindo ao juízo a segurança necessária e propícia à formação do título. Mais uma evidência de que o efeito executivo não representa parâmetro obrigatório a influir nas categorias de sentença. É a quebra da imprescindível correlação conteúdo – efeito. Os efeitos práticos, decorrentes da discricionariedade legislativa, objetivam atender à necessidade do direito material, não interferindo, necessariamente, na essência do ato decisório.”
Por último, comenta precedente do STJ, “que diante da procedência de demanda que tinha por objeto a rescisão contratual”, decidiu que “a sentença representa título para a execução para a entrega de coisa, independentemente de pedido específico, já que a obrigação de restituir o bem representa efeito natural da resolução do compromisso”. 3
Indago: “...sem pedido específico”? E como pode o réu defender-se se ele não souber, de antemão, qual o objeto da ação (o pedido) ?
Não custa relembrar que o princípio do contraditório tem, como um primeiro conteúdo, o direito do réu de defender-se “sobre o pedido do autor”. 4
Mas o conteúdo do princípio do contraditório, sob o foco democratizante de Direito da Constituição Federal de 1988, foi além daquele restrito sentido negativo, tendo se passado a reconhecer ao réu o direito fundamental de influenciar ativamente na formação do convencimento do órgão jurisdicional, e assim alinhando-se com tendência já manifestada em outras sociedades democráticas mais consolidadas. 5
É evidente que o réu somente poderá exercer plenamente esse direito fundamental se a decisão judicial guardar um mínimo de previsibilidade objetiva, e esta só poderá advir se o órgão jurisdicional respeitar os limites dados pelos pedidos e causas de pedir formulados pelas partes, e a atividade argumentativa e probatória que desenvolveram, antes de decidir. 6
Refletindo essa eficácia democratizante da Constituição Federal, o Projeto do Novo Código de Processo Civil contém normas tais como que “não se considera fundamentada a decisão, sentença ou acórdão que: (...) IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador “ (art. 476, parágrafo único, inciso IV) e que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício”, salvo nos casos de “tutela de urgência e nas hipóteses do art. 307” (art. 10).
Como conjugar esses princípios, normas e valores democráticos com a ideia de que o réu terá que se defender não contra aquilo que foi pedido, mas pelo que imaginar que o juiz poderá vir a entender que estaria compreendido no conteúdo da petição inicial, na causa de pedir ?
E isso, de modo até inovador, inclusive em sede de recurso especial, ausente qualquer possibilidade de dilação probatória, ou de discussão a respeito da qual fora até então produzida !...(Súmula STJ no. 07)
Mais: como fica o art. 293. do CPC, que ainda está em vigor, e cuja norma deve ser mantida pelo art. 297. do Projeto do Novo CPC – “...os pedidos devem ser interpretados restritivamente...”) ?
E afinal, se o autor, embora pudesse ter formulado não só o pedido de rescisão contratual, mas também o de entrega de coisa certa, preferiu não fazê-lo, é lícito ao juiz substituí-lo, e de ofício?
Como ficam os princípios dispositivo e da imparcialidade do juiz?
Sim, porque, e como lembrado por RUI PORTANOVA 7:
“Hoje, tanto nas postulações para o primeiro como naquelas para o segundo grau de jurisdição e assim também nos recursos especiais e extraordinários, o vigor do princípio dispositivo reside na liberdade das partes em limitar os fatos e os pedidos. A parte dispõe do objeto do processo e da causa de pedir que comporão o processo.O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte (art. 128. do CPC). (...)’ (grifei)
O réu, ainda, terminará por depender não da pretensão que contra ele formulou o autor, mas sim do modo como a sentença houver sido redigida, caso a caso, juiz a juiz.
Assim, por exemplo, já teve o STJ oportunidade de decidir que a sentença declaratória não poderia ser seguida da “fase de cumprimento” porque limitou-se a julgar improcedente o “pedido declaratório de inexistência de débito, e não pedido de reconhecimento de obrigação” (AgRg no AREsp 351004, STJ, 2ª. Turma, Rel. Min. Humberto Martins, dec. um. pub. DJE 11.09.2013)
Em outros termos: a possibilidade jurídica da existência da “fase de cumprimento” das sentenças declaratórias dependerá, em última análise, não da adequação do pedido àquilo que não vedado pelo ordenamento jurídico, mas sim da técnica redacional da petição inicial ou da sentença mesma, inclusive se aquela houver sido omissa quanto ao pedido que acabou por ser “interpretado” como contido na causa de pedir pela segunda...
A linha interpretativa aqui criticada – e já dotada da força de recurso repetitivo, insista-se – por último, peca também ao ignorar ou recriar a evolução histórica que resultou na reforma instituída pela Lei no. 11.232/2005.
De fato, e como dito por ANTÔNIO CLÁUDIO COSTA MACHADO 8:
“(...) só se deve falar de “execução de sentença” se esta tiver natureza condenatória, vale dizer, se ela reconhecer “obrigação por quantia certa” (somente aqui “o cumprimento da sentença far-se-á (...) por execução”); de outra parte, se se trata de sentença mandamental ou executiva lato sensu, qual seja, a que reconhece a obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, não se deve, então, falar de “execução de sentença”, mas apenas de “cumprimento de sentença” (...) conforme os arts. 461. e 461-A”. Note-se que tal discriminação tem fundamento na própria história recente do direito processual civil brasileiro, posto que o CPC primeiro eliminou a necessidade de “processo de execução” para as sentenças relativas às obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa (arts. 621, caput e 644) e só agora eliminou o “processo de execução” para as sentenças relativas à obrigação por quantia certa. (...)” (grifei)
Surpreende que ninguém tenha vislumbrado em semelhante estado de coisas lesão ao direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º., LIII CF/88), e a força quase mágica que a invocação da “efetividade” e da “instrumentalidade” acabaram por adquirir nos corações e mentes...
Mas ainda é tempo de reflexão e de se mudar esse lamentável equívoco que está sendo vivenciado, em nome de um “bezerro de ouro”, uma “miragem” – a “instrumentalidade”, também chamada de “eficiência”, outra palavra mágica – como se o sacrifício de um direito fundamental já tão aviltado e limitado ao longo da nossa História, e logo quando começava a crescer e desenvolver-se sob os auspícios da “Constituição Cidadã”, fosse condição imperativa e necessária, inafastável, para a democratização do processo e dos direitos !...
BIBLIOGRAFIA
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado. Manole: Barueri, 12ª. ed., 2013;
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 28ª. ed., 2010;
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. Conteúdos e Efeitos das Decisões Judiciais. Editora Atlas, São Paulo, 2008;
PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 5ª. ed., 2003;
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Constituição e Processo, ou de “como discricionariedade não combina com democracia”: o contraponto da resposta correta, in Constituição e Processo – a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro.
MACHADO, Felipe Daniel Amorim e OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni (org). Del Rey Editora: Belo Horizonte. 2009.
Notas
1PINTO, Júnior Alexandre Moreira. Conteúdos e Efeitos das Decisões Judiciais. Editora Atlas, São Paulo, 2008, p. 165.
2 Op. cit., p. 172.
3 Idem, p. 173.
4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 28ª. ed., 2010, p. 05: “Sobre o pedido formulado pelo autor, com a demanda, naturalmente deve abrir-se ao réu a oportunidade de pronunciar-se: princípio do contraditório (audiatur et altera pars). Salvo expressa autorização legal (ex.: art. 923), o réu, como tal, não formula pedido em sentido técnico; mas, em regra, pleiteia e trata de obter que se rejeite o pedido do autor, isto é, defende-se.”
5 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Constituição e Processo, ou de “como discricionariedade não combina com democracia”: o contraponto da resposta correta, in Constituição e Processo – a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. MACHADO, Felipe Daniel Amorim e OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni (org). Del Rey Editora: Belo Horizonte. 2009, p. 17, “fine”/19: “Por isso, decisões de caráter “cognitivista”, de ofício ou que, serodiamente, ainda buscam a “verdade real”, pretendem-se “imunes” ao controle intersubjetivo e, por tais razões, são incompatíveis com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Veja-se, nesse sentido, que a Corte de Cassação da Itália (n. 14.637/02) recentemente anulou decisão fundada sobre uma questão conhecida de ofício e não submetida pelo juiz ao contraditório das partes, chegando a garantir que o recurso deve vir já acompanhado da indicação da atividade processual que a parte poderia ter realizado se tivesse sido provocada a discutir. Em linha similar – e em certo sentido indo além – o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal (Rec. N. 10.361/02) assegurou o direito de a parte controlar as provas do adversário, implementando a garantia da participação efetiva das partes na composição do processo, incorporando no decisum doutrina (...), no sentido de que o contraditório deixou de ser a defesa, no viés negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito de influir ativamente no desenvolvimento do processo. O Supremo Tribunal do Brasil (MS no. 24.26804, Rel. Min. Gilmar Mendes) – (...) dá sinais sazonais da incorporação dessa democratização do processo, fazendo-o com base na jurisprudência do Bundesvefassungsgericht, é dizer, a pretensão à tutela jurídica corresponde à garantia consagrada no art. 5º., LV da CF, contendo os seguintes direitos: (a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; (b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; 9c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berückschtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas. O mesmo acórdão da Suprema Corte brasileira incorpora a doutrina de Dürig/Assmann, sustentando que o dever de conferir atenção ao direito das partes não envolve apenas a obrigação de tomar conhecimento (Kenntnisnahmeplicht), mas também a de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungsplicht). Assim, além de outros princípios (devido processo legal e igualdade, por exemplo), a garantia que cada cidadão tem de que a decisão estará devidamente fundamentada – porque cada ato de aplicação judicial é um ato de jurisdicional – está umbilicalmente ligada (e dependente) à garantia do contraditório, que assume uma especificidade radical nesta quadra de história, isto é, o contraditório passa a ser a garantia da possibilidade de influência (e efetiva participação) das partes na forma da resposta judicial, questão que se refletirá na fundamentação da decisão, que deve explicitar o iter percorrido no processo, tornando a decisão visível e apta aocontrole social – jurisdicional (inclusive, a toda evidência, transparente à apreciação que a doutrina deve fazer sobre as decisões judiciais).”
6 STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 18, nota 06/19: “Há, pois, uma umbilical relação entre a exigência de fundamentação e o direito fundamental que cada cidadão tem a uma resposta correta (adequada à Cosntituição). Comob em assinala Flaviane de Magalhães Barros (...), embora o juiz seja uma pessoa com convicções e história de vida, a limitação ao seu subjetivismo e a sua parcialidade se dá justamente no impedimento de uma fundamentação que extrapole os argumentos jurídicos e na obrigatoriedade de se construir a decisão com a argumentação participada das partes, que, como partes contraditoras, possam discutir a questão do caso concreto, de modo que a decisão racional se garanta em termos de coerência normativa, a partir da definição do argumento mais adequado ao caso. Assim, o objetivo é garantir que um juiz, mesmo com suas convicções, não apresente um juízo axiológico, no sentido de que todos os cidadãos comunguem da mesma concepção de vida, ou que os valores ali expostos na sentença vinculem normativamente todos os demais sujeitos do processo.” (grifei)
7 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 5ª. ed., 2003, p. 122.
8 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado. Manole: Barueri, 12ª. ed., 2013, p. 493, “fine”/494. O mesmo autor, à p. 460, ao comentar a “revolução” feita pela Lei no. 10.444/2002 quanto ao cumprimento das obrigações de fazer ou de não fazer: “(...) Ainda em linha introdutória, não se pode deixar de registrar que assim como a Lei no. 10.444/2002 alterou o art. 644. do CPC para transformar em mandamental a sentença relativa às obrigações de fazer e não fazer, eliminando, assim, o correspondente processo de execução, a mesma lei modificou o art. 621 com o que produziu idêntica transformação no âmbito das obrigações de entregar coisa, posto que restringiu o processo de execução aos títulos extrajudiciais; as sentenças que ordenam entrega não mais se executam; de agora em diante, elas se efetivam de acordo com as disposições dos parágrafos 1º. e 2º. do art. 461. (...)”