Art. 305 do CPPM e o prejuízo da defesa em virtude do silêncio do acusado.

A imposição de uma inconstitucionalidade?

26/09/2014 às 08:33
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O art. 305 do CPPM por ser anterior à CF/88 e possuir conteúdo material contrário à norma constitucional, é indubitável sua não-recepção pelo ordenamento jurídico hodierno.

RESUMO

Este artigo visa interpretar o disposto no art. 305 do Código de Processo Penal Militar (CPPM), que durante o interrogatório do acusado militar, caso venha calar-se diante do juiz, seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa, violando dispositivos previstos na Constituição Federal de 1988.

Entende-se que o processo penal militar assim como outros ramos do Direito, merece ser analisado sob o prisma da Constituição Federal, pois, o regime jurídico do interrogatório, considerado pelo legislador ordinário como meio de prova, diverge da doutrina majoritária, que entende configurar um ato de defesa.

Neste entendimento, o presente trabalho procurará demonstrar por meio de uma análise de conteúdo, que o direito ao silêncio, prerrogativa de todo acusado, seja militar ou civil, por ocasião do interrogatório, não pode ser interpretado em seu prejuízo haja vista o mandamento previsto no art. 5º, inciso LXIII da Lei Maior.

Diante da interpretação da norma vigente será proposta uma reflexão sobre a faculdade que o acusado possui de ficar silente sobre os fatos que lhe foram imputados pela acusação, a questão do interrogatório perante o ordenamento processual brasileiro e, de forma especial, a flagrante violação ao direito de permanecer calado.

Por fim, a pesquisa tem por escopo demonstrar que a jurisprudência brasileira afasta qualquer norma tendente a obrigar o acusado ou testemunha a praticar algum ato que possa ser utilizado em seu desfavor, quer seja em âmbito administrativo, quer seja em âmbito judicial.

PALAVRAS CHAVE:Direito ao silêncio. Interrogatório do acusado. Inconstitucionalidade. Direito fundamental. Norma inválida.

Sumário: 1- Introdução; 2- Desenvolvimento; 3- Conclusão; 4- Referências Bibliográficas.


1.INTRODUÇÃO

A República Federativa do Brasil, nossa Lei Maior dá efetividade ao Estado Democrático de Direito através de normas constitucionais que formam um sistema garantista de direitos no qual busca-se suprimir ao máximo o direito de punir do Estado, elevando assim, os direitos individuais do cidadão.

Neste viés, nossa Constituição Federal (CF) cria um verdadeiro arcabouço normativo através de princípios constitucionais que têm como função precípua garantir a máxima efetividade dos direitos individuais.

Dentre tais princípios, podemos citar o Princípio da inexigibilidade de auto-incriminação, aplicado reiteradas vezes pelo Pretório Excelso através da expressão em latim “nemo tenetur se detegere”. Este princípio possui estreita ligação com o Princípio da presunção de inocência (ou, como prefere o STF, presunção de não-culpabilidade) e com o direito ao silêncio assegurado pela CF.

Assim, a jurisprudência brasileira afasta qualquer norma que obrigue o acusado ou testemunha a produzir provas em seu desfavor, sendo que cabe ao órgão da acusação tal mister. A Suprema Corte possui inúmeros julgados sobre o tema, dentre os quais podemos destacar o seguinte trecho de decisão, conforme preleciona o Ministro Celso de Mello:

Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que expressivamente delimitam o círculo de atuação das instituições estatais, enfatizou que qualquer indivíduo “tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. ‘Nemo tenetur se detegere’. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal” (RTJ141/512, Rel. Min. Celso de Mello).

Durante o interrogatório do acusado, este deve ser advertido acerca do direito de permanecer silente, na falta de advertência, caso o réu demonstre que tal omissão processual trouxe prejuízo para a defesa, o julgamento pode ser reformado. Caso não demonstre o prejuízo, a pretenção do acusado é indeferida.

Os motivos que justificam esta pesquisa estão diretamente relacionados à prerrogativa ao “Silêncio” durante o interrogatório previsto no Código de Processo Penal Militar. O art. 305 do CPPM assevera que:

Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao acusado que, embora não esteja obrigado a responder ás perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa. (BRASIL, 2012).

É importante ressaltar que com o advento da Lei nº 10.792, de 01/12/03, houve importantes alterações na Lei de Execuções Penais e no Código de Processo Penal (CPP) no que diz respeito ao procedimento do interrogatório do réu. Em contrapartida, o legislador deixou de regularizar/atualizar o CPPM, principalmente o previsto no art. 305 que trata o interrogatório do militar, colocando-o em descompasso com a Constituição Federal de 1988.

É de fundamental relevância jurídica a solução dessa questão, haja vista, que na Constituição, o preso ou acusado, será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado. No CPP o art. 186 dispõe o seguinte:

Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. (BRASIL, 2012).

O cerne desse problema é impedir que o direito ao silêncio assegurado pela Constiuição não seja mitigado pelo CPPM, produzindo um desequilíbrio entre a legislação processual castrense e o mandamento constitucional. Ademais, tal dispositivo estabelece uma desigualdade entre os acusados perante a Justiça Militar e os acusados perante a Justiça Comum, uma vez que o art. 186 do CPP prevê redação diversa do CPPM.


2.DESENVOLVIMENTO

2.1.RECEPÇÃO DE NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS PELO NOVO ORDENAMENTO JURÍDICO

A partir do momento em que o novo Poder Constituinte Originário, quer seja histórico, quer seja revolucionário, rompe com o ordenamento jurídico anterior, todas as normas vigentes que forem incompatíveis com a nova Constituição são revogadas, por ausência de recepção. Em outras palavras, a norma que não contrariar a nova Constituição será recepcionada, permanecendo vigente no novo ordenamento jurídico. Assim, caso o conteúdo da norma infraconstitucional anterior possua conteúdo material que não viole a nova Constituição, sendo compatível com esta, aquela permanecerá no ordenamento jurídico.

Ocorre que na matéria em comento, em que o direito ao silêncio está inserido nos direitos individuais do cidadão constitucionalmente previstos e, portanto, trata-se de norma supralegal que pelo fato de ser hierarquicamente superior, não pode ser contrariada pelo legislador ordinário, dada a supremacia da norma constitucional.

Destarte, o art. 305 do CPPM, por ser anterior à CF/88 além de ser materialmente contrário ao seu art. 5º, LXIII, o qual preconiza que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, eis que o art. 305 do diploma castrense não foi recepcionado pela CF/88. Embora o art. 5º, LXIII da CF/88 refira-se particularmente ao preso, o direito ao silêncio estende-se ao acusado ou réu, assim como ao indiciado ou ao meramente investigado, conforme jurisprudência consolidada pelos tribunais superiores.

Sobre o problema em questão, Jorge César de Assis esclarece o seguinte:

O dispositivo em análise está mitigado pela nova ordem constitucional e infraconstitucional. Da mesma forma, determina a lei que o silêncio do acusado não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. A alteração da Lei 10.792/03 atende ao comando constitucional do art. 5º, LXIII, comando este que deve ser igualmente aplicado ao processo penal militar. (ASSIS, 2010, p.166).

No mesmo sentido, Paulo Brossard se posiciona sobre a revogação de lei não recepcionada pela Constituição:

(…) “as leis anteriores à Constituição não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá revogação, dado que a lei posterior revoga lei anterior com ela incompatível, e a lei constitucional, como lei que é, revoga a leis anteriores que se lhe opunham”. (BROSSARD, 1992, p.127).

2.2.INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

Trata-se de um método interpretativo em que a norma infra-constitucional é confrontada com a CF , não podendo esta ser contrariada, sob pena da referida norma infra-constitucional ser invalidada judicialmente tanto pelo controle difuso de constitucionalidade quanto pelo controle concentrado exercido pelo guardião da CF/88, qual seja, o STF.

No magistério de Paulo de Souza Queiroz,

(…) como guardião da legalidade constitucional, a missão primeira do juiz, em particular do juiz criminal, antes de julgar os fatos, é julgar a própria lei a ser aplicada, é julgar, enfim, a sua compatibilidade – formal e substancial – com a Constituição, para, se a entender lesiva à Constituição, interpretá-la conforme a Constituição ou, não sendo isso possível, deixar de aplicá-la, simplesmente, declarando-lhe a inconstitucionalidade” (QUEIROZ, 2011, p.39).

Assim, caso ainda seja aceita a recepção do art. 305 do CPPM ao ordenamento jurídico, o confronto de seu conteúdo com o direito ao silêncio assegurado pela CF/88 afasta qualquer aplicação da legislação especial ao caso concreto, podendo ser declarada sua incompatibilidade com a Constituição por qualquer juiz ou tribunal, tanto pertencente à Justiça comum quanto à Especial.

Quando se discute a interpretação de normas infraconstitucionais deve-se atentar para um significado mais próximo ao texto constitucional. Em sua obra Pedro Lenza relata que “uma vez realizada a interpretação da norma, pelos vários métodos, se o juiz chegar a um resultado contrário à Constituição, em realidade, deverá declarar a inconstituicionalidade da norma, proibindo a sua correção contra a Constituição”. (LENZA, 2009, p. 97).

2.3.NORMA VIGENTE X NORMA VÁLIDA

Uma norma vigente é aquela que cumpre seus trâmites procedimentais previstos na CF/88 para que faça parte do ordenamento jurídico. Assim, cumpridos alguns requisitos do processo legislativo como, por exemplo, capacidade de iniciativa e quórum de instauração e aprovação, bem como esgotado o período de vacância da lei, eis que esta é vigente no ordenamento.

Já a norma para ser considerada válida, tendo em vista nossa Constituição garantista, seu conteúdo material deve respeitar certos limites constitucionais que criam certas imposições e proibições como forma de resguardar direitos e garantias individuais, que são cláusulas pétreas e, portanto, jamais podem ser suprimidos ou reduzidos pelo Poder Constituinte Derivado Reformador.

Destarte, para que a norma tenha cabal aplicabilidade, deve respeitar tanto seus trâmites procedimentais, assim como seu conteúdo deve ser compatível materialmente com a constituição. Assim preleciona Ferrajoli sobre o tema:

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Num ordenamento jurídico dotado de Constituição rígida, para que uma norma seja válida ademais de vigente não basta que haja sido emanada com as formas predispostas para a sua produção, senão que também é necessário que seus conteúdos substanciais respeitem os princípios e os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição”. (FERRAJOLI, 2006, p. 66).

Como exemplo de norma vigente, porém inválida podemos citar a Lei 8.072/90 (Lei de crimes hediondos), que em seu art. 2º, §1º, previa o regime integralmente fechado para o cumprimento da pena; por ferir o Princípio da Individualização da Pena, constitucionalmente previsto, o referido dispositivo foi declarado inconstitucional pelo STF em 2007, ao decidir que embora o referido dispositivo de lei estivesse vigente no ordenamento jurídico, seu conteúdo material maculava a C88, motivo pelo qual foi declarado inconstitucional e extirpado da legislação pátria.

Assim, o art. 305 do CPPM, embora tenha cumprido seus trâmites procedimentais, o que lhe atribuiu vigência, possui conteúdo material que contraria nossa Carta Maior. Dentro de um escalonamento normativo, em que a Carta Magna regulamenta o conteúdo material das demais normas de hierarquia inferior, eis que tudo aquilo que for contrário a preceito constitucional será inválido, ainda que tenha vigência, como ocorre com o art. 305 do CPPM.

2.4.ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Sob a óptica moderna o Estado democrático de direito é um conceito de Estado que busca superar o simples Estado de Direito concebido pelo liberalismo. Garante não somente a proteção aos direitos de propriedade, mais que isso, defende através das leis todo um rol de garantias fundamentais, baseadas no chamado "Princípio da Dignidade Humana".

A Constituição Federal denomina estes princípios fundamentos da República Federativa do Brasil, que se constitui em Estado Democrático de Direito. A partir destes fundamentos o constituinte explicita direitos e garantias do cidadão e deveres do Estado ao longo de todo o texto constitucional.

Com o Estado Democrático de Direito, o ator que importa é o sujeito, titular desses direitos. Logo, a República e o Estado Democrático são utilizados para a viabilização desses fundamentos.

Para que o Estado Democrático cumpra com a sociedade o papel a que se dispõe, faz-se necessário que os preceitos constitucionais e legais que o balizam se constituam, não só em garantias constantes do ordenamento jurídico-constitucional, mas sim em efetivos instrumentos na defesa dos direitos da sociedade civil como um todo e, para tanto, deve esta aparelhar-se, utilizando-se dos meios de participação que lhe são postos à disposição, com o objetivo de defender suas necessidades e seus ideais.

2.4.1 Direitos e garantias individuais

São considerados fundamentais aqueles direitos e garantias especificados na Constituição Republicana, nos artigos 5º a 17 inclusive. Tamanha é a importância desses direitos fundamentais na vigência da Constituição que o legislador constituinte proibiu qualquer alteração nos dispositivos que tratam dos direitos e garantias fundamentais. Tal preocupação fez com que o constituinte impedisse a modificação desses direitos por meio de emendas, conforme dispõe o art. 60 § 4º, inciso IV da CR/88.

É necessário distinguir direitos e garantias perante a ordem constitucional. Os direitos estão estabelecidos na norma constitucional, enquanto as garantias são os instrumentos através dos quais esses direitos serão assegurados.

A principal proteção desses direitos individuais é sua inviolabilidade, não podendo o Estado prejudicar determinado grupo ou cidadão pela criação de situações injustas.

Também a Convenção Americana de Direitos Humanos Pacto de São José da Costa Rica em seu artigo 8º, traz o direito de não ser a pessoa obrigada a se auto-incriminar, servindo este como uma garantia fundamental assegurada pela presença do defensor em todos os atos judiciais que se fizerem necessário à presença ou manifestação do indivíduo investigado ou acusado

2.5.NATUREZA JURÍDICA DO INTERROGATÓRIO

No que concerne à natureza jurídica do interrogatório do acusado, mormente em relação ao direito do acusado de permanecer calado, a matéria é bastante controversa, destacando-se (TÁVORA, 2010) os seguintes posicionamentos:

1ª CORRENTE: interrogatório como meio de prova, devido ao CPP enquadrar tal ato no capítulo destinado às provas em espécie.

2ª CORRENTE: interrogatório como meio de defesa, devido ao fato de o acusado possuir a faculdade de invocar o direito ao silêncio sem qualquer prejuízo à culpabilidade, podendo ainda mentir para livrar-se da acusação. (posição defendida por Ada Pellegrini, Scarance Fernandes, Gomes Filho, Tourinho Filho, Nestor Távora, dentre outros).

3ª CORRENTE: interrogatório como meio de prova e de defesa, indistintamente: esta corrente tem prevalecido tanto na doutrina como na jurisprudência, ao afirmarem que o interrogatório possui natureza jurídica híbrida ou mista, pois é meio de defesa, dada as prerrogativas concedidas ao réu como, por exemplo, o direito de permanecer calado, bem como é meio de prova, pois o magistrado, a acusação e o advogado de defesa realizam perguntas com escopo de elucidar os fatos. (posição defendida por Mirabete, Denílson Feitoza Pacheco, STF, STJ).

4ª CORRENTE: interrogatório como meio de defesa, primordialmente, e como meio de prova, subsidiariamente: este posicionamento defendido por Guilherme de Souza Nucci faz um escalonamento quanto à natureza jurídica do presente instituto, atribuindo maior grau de importância à defesa do acusado em relação ao interrogatório como meio de prova. O referido autor assim preleciona acerca do tema:

[…] o interrogatório é, fundamentalmente, um meio de defesa, pois a Constituição assegura ao réu o direito ao silêncio. Logo, a primeira alternativa que se avizinha ao acusado é calar-se, daí não advindo conseqüência alguma. Defende-se apenas”. No entanto, “caso opte por falar, abrindo mão do direito ao silêncio, seja lá o que disser, constitui meio de prova inequívoco, pois o magistrado poderá levar em consideração suas declarações para condená-lo ou absolvê-lo” (NUCCI, 2007, P. 381).

Durante o interrogatório do acusado, este deve ser advertido acerca do direito de permanecer silente; na falta de advertência, caso o réu demonstre que tal omissão processual trouxe prejuízo para a defesa, o julgamento pode ser reformado. Caso não demonstre o prejuízo, a pretensão do acusado é indeferida. Neste sentido o seguinte julgado do STF :

Ementa: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. NULIDADES PROCESSUAIS. PROCESSO PENAL MILITAR. INTERROGATÓRIO. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. PRESENÇA DO DEFENSOR. AUSÊNCIA DE ADVERTÊNCIA SOBRE O DIREITO AO SILÊNCIO. RÉUS QUE APRESENTAM SUA VERSÃO DOS FATOS. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO. ALTERAÇÃO DE ADVOGADO SEM ANUÊNCIA DOS RÉUS. FATO QUE NÃO PODE SER ATRIBUÍDO AO PODER JUDICIÁRIO. PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. AUSÊNCIA DE ABUSO DE PODER, ILEGALIDADE OU TERATOLOGIA APTAS A DESCONSTITUIR A COISA SOBERANAMENTE JULGADA. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. 1. As garantias da ampla defesa e do contraditório restam observadas, não prosperando o argumento de que a falta de advertência, no interrogatório, sobre o direito dos réus permanecerem calados, seria causa de nulidade apta a anular todo o processo penal, nos casos em que a higidez do ato é corroborada pela presença de defensor durante o ato, e pela opção feita pelos réus de, ao invés de se utilizarem do direito ao silêncio, externar a sua própria versão dos fatos, contrariando as acusações que lhes foram feitas, como consectário de estratégia defensiva. 2. A falta de advertência sobre o direito ao silêncio não conduz à anulação automática do interrogatório ou depoimento, restando mister observar as demais circunstâncias do caso concreto para se verificar se houve ou não o constrangimento ilegal. (HC 88.950/RS, Relator Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, Julgamento em 25/9/2007, HC 78.708/SP, Relator Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, Julgamento em 9/3/1999, RHC 79.973/MG, Relator Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, Julgamento em 23/5/2000.) 3. In casu: a) os recorrentes, policiais militares, foram processados e condenados como incursos no § 1º do artigo 308 do Código Penal Militar, a 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão em regime inicial aberto; b) a sentença destaca que, no dia 3/4/1996, na cidade de São Paulo/SP, os sentenciados, agindo em coautoria, exigiram da vítima vantagem indevida no valor de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) com o escopo de se omitirem quanto às providências cabíveis relativas ao ato ilícito de condução de veículo automotor sem portar os documentos necessários, que implicaria na apreensão do veículo e autuação do infrator; c) a condenação ocorreu em 21/7/1997, confirmada por apelação julgada em 19/12/2000, sendo certo que o Ministério Público ajuizou representação junto ao Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo com o escopo de decretação de perda da graduação das praças, julgada procedente, e transitada em julgado em 27/11/2001 (fls. 123); d) destarte, em 8/1/2002, a defesa dos réus ajuizou revisão criminal, que foi julgada improcedente, e transitou em julgado em 28/10/2008, sendo as penas julgadas extintas ante o seu cumprimento, conforme sentenças exaradas pelo Juízo de Direito das Execuções Criminais da Comarca de Santo André, em 9/11/2004 e 16/2/2005; e) aos 20/10/2009, a defesa reabriu o caso por meio de impetração do writ junto ao Superior Tribunal de Justiça, que se voltou contra o acórdão da apelação julgada pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo. 4. A suposta nulidade decorrente de alteração de defensor sem a anuência das partes restou superada pelas informações prestadas pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo (“1º à época, a grande maioria dos policiais militares processados no âmbito da Justiça Militar era defendida por advogados que integravam o Departamento Jurídico da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar e prestavam assistência jurídica aos associados dessa entidade, como ocorreu neste caso; 2º - em nenhum momento houve por parte do Juízo a “desconstituição” ou a “nomeação” de qualquer advogado para atuar nos autos, tendo sim na verdade ocorrido apenas alterações no quadro de advogados da referida Associação, cuja composição, como não poderia deixar de ser, é de seu livre arbítrio). 5. É cediço na Corte que: a) o princípio geral vigente no processo penal é o de que somente se proclama a nulidade de um ato processual quando há a efetiva demonstração de prejuízo, nos termos do que dispõe o art. 563 do CPP, verbis: Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa; b) a Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal dispõe que “No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu” (HC 93.868/PE, Rel. Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, Julgamento em 28/10/2008; HC 98.403/AC, Rel. Ministro Ayres Britto, Segunda Turma, Julgamento em 24/8/2010, HC 94.817, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, Julgamento em 3/8/2010.) 6. Os presentes autos não revelam a existência de abuso de poder, ilegalidade ou teratologia que possa autorizar a concessão do writ, desconstituindo, assim, um feito processual já acobertado pela coisa soberanamente julgada. 7. Recurso ordinário desprovido. (RHC 107915 / SP - SÃO PAULO - RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS - Relator:  Min.LUIZ FUX - Julgamento:  25/10/2011 - Órgão Julgador:  Primeira Turma).

Em sentido diametralmente oposto preleciona o CPPM, ao preconizar em seu art. 305 que durante o interrogatório do acusado militar, caso venha calar-se diante do juiz, seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.

Como forma de comprovar a tese já destacada, o Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, em julgamento ocorrido em 2007 assim dispõe:

Polícia Militar. Ação Ordinária visando anulação de ato de demissão com conseguente reintegração ao cargo. Ausência de informação quanto ao direito ao silêncio. Inexistência de prejuízo à defesa do acusado, que encontrava-se inclusive, acompanhado por seu advogado. Nulidade enexistente. Independência entre as instâncias criminal e administrativa. Atuação do Poder Judiciário restrita ao controle de legalidade do ato administrativo. Recurso não provido. (APELAÇÃO CRIMINAL 000181/05, TJMMG, RELATOR: CLOVIS SANTIMON, JULGADO EM 23/8/2007.

Percebe-se que é uníssono tanto na jurisprudência quanto na doutrina, o entendimento de que o art. 305 do CPPM não encontra respaldo jurídico para gerar seus efeitos, pois está eivado de vícios que devassam os direitos fundamentais do cidadão.


CONCLUSÃO

O CPPM é produto de uma época de poucas luzes (1969), sob inspiração evidentemente autoritária, que sofreu pouquíssimas alterações ao longo das décadas, mantendo-se retrógrada em seu texto superado pela evolução do ordenamento constitucional e pela exegese conferida pelos órgãos colegiados da Justiça castrense, cuja existência já não se justifica no modelo penal acusatório inaugurado pela Constituição Federal de 1988.

Constata-se que o direito ao silêncio possui natureza jurídica de autêntico direito subjetivo do acusado, não podendo ser afastado por quaisquer espécies legislativas, tendo em vista tratar-se de preceito constitucional que não pode ser contraposto por ato do legislador ordinário.

O art. 305 do CPPM é anterior à CF/88, e por possuir conteúdo material contrário à norma constitucional, é indubitável sua não-recepção pelo ordenamento jurídico hodierno.

É importante ressaltar que o fato de não haver reforma no CPPM, assim como ocorreu no processo comum, não dá direito ao juiz castrense aplicar a norma ultrapassada e desprovida de legalidade constitucional. O militar tem o direito ao silêncio sem que sua escolha lhe imponha algum prejuízo no decorrer do processo judicial militar.

Ainda que seja aceita a hipótese de recepção do art. 305 do CPPM pela CF/88, neste caso trata-se de norma vigente, todavia inválida, devendo ser declarada inconstitucional pelo juiz ou tribunal que com ela tiver contato.

Em razão disso, a falta de previsão expressa por parte do legislador quanto ao CPPM trará um descompasso entre legislação processual comum e a processual castrense, estabelecendo uma desigualdade entre os acusados perante a justiça militar e os acusados perante a justiça comum.

  Conclui-se, portanto, que a inclusão do direito ao silêncio em nossa CF representa importante conquista voltada a combater desmandos muitas vezes praticados por autoridades que não têm pudor de utilizar métodos questionáveis para a apuração de fatos, prática comum em períodos ditatoriais, mas que não se compatibiliza com um Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    ASSIS, Jorge Cesar de. Código de processo penal militar anotado. – 2º volume (artigos 170 a 383). 2. ed. Curitiba: Juruá, 2010.

    BRASIL. Código de processo penal militar. Vade Mecum Acadêmico de Direito. Anne Joyce Angher, organização,9. ed. São Paulo: Rideel, 2009. p. 497-540.

    BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168 p.

    BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (RHC 107915 / SP - SÃO PAULO - RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS - Relator:  Min.LUIZ FUX - Julgamento:  25/10/2011 - Órgão Julgador:  Primeira Turma).Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 16 de nov. de 2012.

    BRASIL, Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais. (APELAÇÃO CRIMINAL 000181/05, TJMMG, RELATOR: CLOVIS SANTIMON, JULGADO EM 23/8/2007. Disponível em <http://www.tjmmg.br>. Acesso em: 16 nov. 2012.

    BROSSARD, Paulo. A constituição e as leis a ela anteriores. Arquivo Ministério da Justiça. Brasília, 45(180), jul/dez, 1992, p. 127.

    FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 e. São Paulo: RT, 2006.

    GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em sua unidade. Rio de Janeiro: 1984.

    JUNIOR, Paulo de Tarso Augusto. O interrogatório em face das alterações ocorridas no código de processo penal comum. Disponível em: <http://www.jusmilitarescom.br.htm>. Acesso em: 10 jan. 2012.

    LENZA, Pedro. Direito Penal Esquematizado. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

    NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. Ed. São Paulo: RT, 2007.

    QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal-Parte Geral. São Paulo: Lumen Juris, 2011.TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 4 ed. Bahia: Juspodivm, 2010.p.70, p. 386-388.

    Sobre o autor
    Paulo Moisés de Souza Macedo

    2º Tenente da PMMG, Bacharel em Direito pela PUC Minas, Especialização "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal Militar, pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais.

    Informações sobre o texto

    Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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