Insanidade Cultural

07/11/2014 às 05:32
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Somos filhos do boto.

~~Só há homo cordialis num país insano. Desconfio que o homem cordial, predicado por Sérgio Buarque de Holanda – no livro Raízes do Brasil –, nem seja mais condizente com a máscara social da acomodação e da pacificação que neutralizava, mas não encobria, a luta de classes sociais. Tenho certeza de que nunca foi cordial como benígno, bonzinho, amável; pois, “cordis” implica em coração. Não há brasileiro bom de coração, sempre é um sorriso volátil ou uma escaramuça com Deus ou Diabo. Ainda bem que não penso isso sozinho. Confesso que fui bastante instigado pelo Macunaíma, de Mário de Andrade. Em todo caso, é uma porta aberta para a modernidade. De acordo com nossa brasilidade interesseira, turista é que é ingênuo: “levar vantagem em tudo”; “jogo é jogo, treino é treino”. Definitivamente, não se dá ponto sem nó. Macunaíma, é um índio-preto, nascido nos grotões da floresta, como queria Mário de Andrade. Ainda pequeno, seduziu as duas esposas de seu irmão e, por excesso de traquinagens, alvejou a mãe com a morte. O João Grilo do folclore nordestino – copiado por Ariano Suassuna, na peça Auto da Compadecida, empurrando bitucas de cigarro para dentro das orelhas do jegue –, é uma criança sem malícia (João Ferreira de Lima. Proezas de João Grilo. Fortaleza-CE, Academia Brasileira de Cordel).
Com Macunaíma pela proa, seria interessante pesquisar a "insanidade" como categoria sociológica, produtora de cinismo, hipocrisia, demagogia e um vício irredutível pela mentira. Afinal, viciados em mentir, é natural e insuportável não mentir. Mentimos com a miscigenação, sem desvelar o estupro na origem. Mentinos ao negar o racismo, porque há uma “democracia racial”: Gilberto Freyre teria vergonha. Mentimos para não ver a guerra civil que mata 50 mil brasileiros(as) por ano. Sem contar a luta de classes que nunca houve, até mesmo porque o capitalismo convivia com a escravidão. O fato de mentir não esconde a verdade, apenas põe viseira em quem não quer ver. Portanto, a insanidade é o apogeu de uma condição psicossocial. Um traço da cultura que nos aprisiona como Macunaíma: o não-ser nacional. Só neste melado de culturas sem identidade – sem identidade com o caráter –, como é o Brasil,  é possível visualizar um afro-descendente neo-nazista. Aqui pode tudo, a Lei de Gérson permite. Como dizia um antigo coronel das caatingas: “A lei é como a cerca da fazenda: se está dura, passo por baixo; se está frouxa, passo por cima”. Nossa rouquidão civilizatória demonizou o Estado de Direito, até mesmo porque Deus é brasileiro.
Aqui, em se plantando, tudo dá – certo! Inclusive tiriricas. Também plantamos um ódio pelos famélicos: “só é pobre quem quer”. Deus ajuda quem madruga, para catar reciclados da cultura enlatada e enlutada. Se um professor de universidade pública diz na sala de aula, em alto e bom som, que jamais seria atendido por um médico negro, aos olhos da lei, ele não comete crime. Aos olhos do povo, é o porta-voz dos outros macunaímas. Se um senador chama a Presidente da Repúbica de leviana, ele não quis prostituí-la. Queria mesmo só dizer leviana, sem impor as demais leviandades de sua condição de mulher. Assim, se o Macunaíma encoxa no metrô – alguns ejaculam – isso não é estupro. Só queria mesmo encoxar. Se um Tribunal de Justiça absolve um velho fazendeiro de 70 anos, do crime de estupro prezumido, ao comprar o sexo de duas garotas de 12 anos, é porque elas, sim, são prostitutas. Se o Macunaíma – o de Mário de Andrade – sevicia as moças, é devido a sua notável inteligência. Quer dizer, as moças – todas as moças – são burras. No que há certa razão. Pensemos que o pai estuprador de crianças pobres afirmou que foi o boto cor de rosa. A mãe – para não morrer de fome ou de pancada – fez a criança acreditar e contar essa história para a polícia. A moça cresceu assim, emburreceu, o que se há de fazer. Tereza Batista Cansada de Guerra contou a Jorge Amado que o senhor das terras coleciona argolas, demonstrando quantas deflorou. Realmente, não há racismo, maxismo, sexismo e nem preconceito no país. Somos todos filhos do boto. Nosso cadinho cultural já veio com esse vício de origem. Contudo, para sorte do Herói Nacional, não se faz recall desse tipo de vício redibitório. Já pensou “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão...”.
 

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

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