Reprodução Humana Assistida - Breves Aspectos Jurídicos e Legais

26/11/2014 às 16:54

Resumo:


  • A reprodução humana assistida é um conjunto de operações para unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, possibilitando a geração de um novo ser humano.

  • As técnicas de reprodução humana assistida devem respeitar os princípios éticos, legais e constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de planejamento familiar e a paternidade responsável.

  • Apesar da ausência de uma legislação específica, a reprodução assistida é legalmente respaldada, desde que respeite os limites impostos pelo ordenamento jurídico vigente e pelos princípios éticos e legais estabelecidos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo visa, ainda que de forma breve, abordar alguns aspectos jurídicos e legais acerca da Reprodução Humana Assistida (conceito, técnicas e princípios) acerca deste tema tão importante e cada vez mais presente na sociedade brasileira.

 INTRODUÇÃO

Maria Helena Diniz questiona: “Até onde as ciências da vida poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana e de outros direitos?”.[1]

Atualmente é possível criar um novo ser utilizando-se dos mais diversos métodos artificiais de reprodução. Deste modo, a reprodução das espécies que era até bem pouco tempo realizada somente de forma natural, passou a ser possível através de métodos artificiais.

Com isso depreende-se que a reprodução, que significa a criação de um novo ser, ou um novo indivíduo, pode ocorrer de maneira natural ou artificial.

Este artigo está focado no campo da reprodução humana artificial na medida em que novas técnicas de RA (Reprodução Humana Assistida) trouxeram uma série de questões jurídicas que não existiam até bem pouco tempo.

Diante desta realidade, indubitavelmente conflitos de interesses irão surgir. Litígios envolverão valores e princípios jurídicos, tais como a vida, a personalidade, a dignidade da pessoa humana, dentre tantos outros.

O presente artigo visa, ainda que de forma breve, abordar alguns aspectos jurídicos e legais acerca deste tema tão importante e cada vez mais presente na sociedade brasileira.

 BREVE INTRÓITO - CONCEITO DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

O objetivo deste tópico é conceituar o que venha a ser reprodução humana assistida (RA), pois, é de fundamental importância uma noção elementar da realidade a ser tratada. Não se pode, com efeito, conhecer um assunto sem se ter a noção básica do mesmo, obviamente, a noção básica vem do conceito.

A reprodução humana assistida, no que tange ao conceito, nada mais é do que o “conjunto de operações para unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano”.[2]

Observa-se que, não há coito no processo de RA, a fecundação se realiza graças a um conjunto de operações médicas. Por isto pode-se afirmar que, a reprodução humana assistida é o conjunto de determinadas técnicas médicas que proporciona a união do sêmen ao óvulo por meios não naturais, possibilitando, assim, a geração de um novo ser humano.

TÉCNICAS DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

A inseminação artificial é uma técnica de RA, e como tal possibilita a geração de um novo ser através da fecundação homóloga ou heteróloga.

No caso da fecundação homóloga, uma das técnicas da reprodução humana assistida utiliza tão somente gametas do casal (óvulo e esperma). Já no caso da fecundação heteróloga são utilizados gametas que não são do pai e/ou da mãe. Daí surge a necessidade de gametas de terceiros. Pelo fato da fecundação heteróloga envolver material genético (esperma e/ou óvulo) estranho ao casal ou companheiros, as questões que podem emergir são mais polêmicas.

No que tange as técnicas, como a RA utiliza-se de várias técnicas, o autor deste artigo, no intuito de não omitir, incluiu no presente apenas as duas mais conhecidas e utilizáveis:

1- Inseminação Artificial

A inseminação artificial é uma técnica de RA, e como tal possibilita a geração de um novo ser através da fecundação homóloga ou heteróloga. Consiste, a inseminação artificial, na “deposição de esperma dentro da vagina ou do útero por meios outros que o ato do coito”.[3]

Observa-se que, “a inseminação artificial heteróloga, assim como a homóloga, ocorre também in vivo, todavia o material fecundante será proveniente de terceiro, estranho a inseminação”.[4]

Assim, “será homóloga se o sêmen inoculado na mulher for do próprio marido ou companheiro, e heteróloga se o material fecundante for de terceiro, que é o doador”.[5]

Nota-se que, no caso de fecundação heteróloga não haverá a figura da doadora do óvulo, pois não haverá a manipulação externa do mesmo. Sendo assim, a fecundação heteróloga ocorrerá da união do esperma do doador (estranho ao casal ou companheiros) com o oócito da beneficiária.

Diniz aduz que na inseminação artificial poderá haver:

a)                inseminação artificial homóloga, praticada na esposa (convivente) com sêmen do marido (convivente), em vida deste, ou após sua morte (AIH – Artificial Insemination by Donor);

b)        inseminação heteróloga, durante o matrimônio ou união estável, feita em mulher casada ou convivente, com esperma de terceiro (AID – Artificial Insemination by Donor). [6]

No que tange ao procedimento, Hatem ensina que:

Na inseminação artificial é colhido material genético do homem através da masturbação em laboratório para posterior implantação no colo do útero (inseminação intracervical), diretamente na vagina (inseminação intravaginal) ou, ainda, na cavidade do útero (inseminação intra-uterina). [7]

2- Ectogênese ou Fertilização in vitro.

A Ectogênese também conhecida como fertilização “in vitro”, é uma técnica de RA, e como tal, possibilita a geração de um novo ser através da fecundação homóloga ou heteróloga. Nesta técnica de RA ocorre a manipulação externa do óvulo, não obstante, a fecundação ocorre fora do corpo da mulher, ou seja, “in vitro”.  Assim sendo, para que esta fecundação ocorra fora do aparelho reprodutor feminino é mister que o ambiente artificial in vitro simule as condições do ambiente natural.

Neste sentido, Machado explica que:

A fecundação externa do óvulo humano e a cultura do embrião, devem se efetuar em condições e ambiente físico, tão próximos quanto possível daquelas existentes no aparelho genital. [8]

Pode-se dizer que, a fecundação será homóloga se os gametas (masculino e feminino) fecundados in vitro forem, única e exclusivamente, do próprio casal ou companheiros, e será heteróloga se o material fecundante utilizado (óvulo e/ou esperma) provém de terceiro(s).[9]

Nota-se que, no caso de fecundação heteróloga poderá haver tanto a figura da doadora do óvulo como do doador do esperma, assim como de ambos; isto é possível, pois, haverá a manipulação externa do óvulo. Daí surge a possibilidade da beneficiária receber em seu ventre óvulo fecundado que não seja o seu. 

Diniz assinala diversas possibilidades que a ectogênese pode gerar, tais como:

a)        fecundação de um óvulo da esposa ou companheira com esperma do marido ou convivente, transferindo-se o embrião para o útero de outra mulher;

b)        fertilização in vitro com sêmen e óvulo de estranhos, por encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da mulher ou no de outra;

 c)        fecundação, com sêmen do marido ou companheiro, de um óvulo não pertencente à sua mulher, mas implantado no seu útero;

 d)        fertilização, com esperma de terceiro, de um óvulo não pertencente à sua esposa ou convivente, com imissão do embrião no útero dela;

 e)        fecundação na proveta de óvulo da esposa ou companheira com material fertilizante do marido ou companheiro, colocando-se o embrião no útero da própria esposa (convivente);

 f)        fertilização, com esperma de terceiro, de óvulo da esposa ou convivente, implantando em útero de outra mulher;

 g)        fecundação in vitro de óvulo da esposa (companheira) com sêmen do marido (convivente), congelando-se o embrião para que, depois do falecimento daquela, seja inserido no útero de outra, ou para que, após a morte do marido (convivente), seja implantado no útero da mulher ou no de outra. [10]

Ressalva-se apenas que as situações de fecundação homóloga encontram-se nas letras (a), (e) e (g) as restantes são casos de fecundação heteróloga.

No que tange ao procedimento, a ectogênese segundo Maria Helena Machado “compreende o desenvolvimento de várias etapas como: a indução da ovulação, a punção folicular e cultura dos óvulos, coleta e preparação do esperma, completando-se com a inseminação e cultura dos embriões”.[11]

Observa-se que, a técnica “in vitro” pode ser dividida em cinco fases:

1ª Estimulação da ovulação;

2ª Coleta dos Óvulos;

3ª Manipulação dos Gametas;

4ª Transferência dos Embriões;

5ª Suporte da fase lútea. [12]

Destaca-se a primeira fase, pois nela ocorre o induzimento nas mulheres à uma “superovulação”. Neste ponto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou relatório denunciando a quantidade cada vez maior de nascimentos múltiplos de bebês.[13]

Por este motivo, a Resolução CFM n.º 1.358 estabelece em sua Seção I, no item 6 que, “o número ideal de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não deve ser superior a quatro, com intuito de não aumentar os riscos já existentes de multiplicidade”.

Seguindo os mesmos parâmetros, o projeto de Lei nº. 2.061, de 2003, de autoria da Deputada Maninha, prevê em seu art. 7º o seguinte:

Art. 7° É vedada a transferência de oócitos e pré-embriões em número superior a quatro, com o intuito de não aumentar os riscos pré-existentes de multiparidade.

§ Único O número de oócitos e pré-embriões a serem transferidos poderá ser reduzido em função da melhoria das técnicas cientificamente aceitas de procriação assistida.

Já o projeto de Lei nº. 1.118, de 2003 (Define normas para realização de inseminação artificial e fertilização "in vitro"; proibindo a gestação de substituição (barriga de aluguel) e os experimentos de clonagem radical) prevê em seu art. 7º o seguinte:

Art. 13. Na execução da técnica de Reprodução Assistida, poderão ser produzidos e transferidos até 2 (dois) embriões, respeitada a vontade da mulher receptora, a cada ciclo reprodutivo.

§ 1º Serão obrigatoriamente transferidos a fresco todos os embriões obtidos,obedecido ao critério definido no caput deste artigo.

§ 2º Os embriões originados in vitro, anteriormente à sua implantação no organismo da receptora, não são dotados de personalidade civil.

§ 3º Os beneficiários são juridicamente responsáveis pela tutela do embrião e seu

ulterior desenvolvimento no organismo receptor.

§ 4º São facultadas a pesquisa e experimentação com embriões transferidos e espontaneamente abortados, desde que haja autorização expressa dos beneficiários.

§ 5º O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será definido em regulamento.

  Neste aspecto vem evoluindo bem o legislador, pois imagine se houvesse um consenso em relação ao número de embriões que podem ser transferidos ao aparelho reprodutor feminino receptor (até então no máximo 4 embriões segundo o CFM)? Vamos supor que os quatro embriões vingam; neste caso indaga-se: não poderia haver uma gravidez de risco? Como ficaria o aspecto econômico e social do casal, pois para a criação, educação, saúde, lazer e demais fatores familiares, exige-se determinado dispêndio pecuniário? Por isto, a modificação em relação aos embriões que podem ser transferidos (de quatro para dois) merece ser bem vista.

Por fim, como este trabalho não se destina à área médica, mas sim a área do direito, o autor não acha propício adentrar mais profundamente nas espécies de técnicas de RA (que são várias por sinal). Aliás, o autor apresenta as devidas escusas, pois o problema de conceituação da RA cabe, única e exclusivamente, a área da medicina.

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ASPECTOS JURÍDICOS E LEGAIS

O Artigo XVI da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que “os homens e as mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm direito de contrair matrimônio e fundar uma família”.[14]

Silvia da Cunha Fernandes menciona que:

No contexto jurídico mundial, reconhece-se plenamente o direito a procriação, como direito inerente à espécie humana. Neste sentido, a Declaração dos Direitos do Homem, aprovada em Paris, em 10 de dezembro de 1978 através de resolução da III Seção Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, disciplina o direito de fundar uma família, entre outros. [15]

A Lei n.º 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, estabelece no art. 1º que “o planejamento familiar é direito de todo o cidadão”; o art. 2º define que “ para fins desta Lei entende-se planejamento familiar como conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”. Insta salientar, que a Lei 9.263/96 reza em seu art. 4° que “o planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade”.

Na esfera constitucional, o direito à procriação deduz-se principalmente das normas de inviolabilidade do direito a vida (pressuposto de todos os direitos), a integridade moral, a intimidade e privacidade, a herança, ao livre planejamento familiar como livre decisão do casal, do incentivo da liberdade de expressão à pesquisa e ao desenvolvimento científico, e da dignidade da pessoa humana.[16]

Irrefutavelmente, a motivação na solução dos problemas de infertilidade que a Reprodução Humana Assistida propõe, está diretamente vinculada à tutela da instituição familiar que, por sinal, encontra-se amplamente amparada pelo direito. No entanto, apesar da reprodução humana assistida estar atrelada a valores constitucionais, princípios e garantias fundamentais, reconhecidos inclusive na esfera mundial através de tratados, não há uma legislação nacional específica em vigor.

De fato, a RA é uma realidade social que envolve valores, princípios e garantias fundamentais, e, assim sendo, há a necessidade de uma tutela legal específica para dar maior proteção aos envolvidos e à sociedade. Deste modo, urge ao Poder Legislativo, com caráter de urgência, elaborar uma lei específica, de natureza cogente, que regule a RA. Afinal, o primeiro bebê de proveta brasileiro, Ana Paula, nasceu em 7 de outubro de 1984, assim sendo, até o presente momento tardou o legislador trinta anos para regular um assunto de crucial importância.

Venosa ensina que, “não pode o Estado deixar de cumprir sua permanente função social de proteção à família, como sua célula mater, sob pena de o próprio Estado desaparecer, cedendo lugar ao caos. Daí por que a intervenção do Estado na família é fundamental.” [17]

Diante desta realidade, o legislador não pode mostrar-se dispersivo, pois as técnicas de reprodução humana assistida estão sendo largamente utilizadas no Brasil. Desníveis como estes entre as ocorrências da vida e a inércia legislador, levou “Lacerda de Almeida a atribuir pernas curtas ao legislador” [18]

Neste sentido, Silvia da Cunha Fernandes leciona que:

O legislador deve ficar atento para, ao menos, não chegar irremediavelmente, atrasado, podendo, inclusive, aproveitar algumas soluções uniformes e consensuais do direito comparado, observando também as sugestões que tem sido apresentadas pela doutrina nacional. [19]

Urge, pois, que o Estado assuma o papel institucional que lhe incumbe, sistematizando o tratamento jurídico sobre o assunto de maior relevância no Direito contemporâneo. [20]

Menciona-se que, somente a Resolução 1.358/92 do CFM cuida do tema de maneira específica. Todavia a citada norma não tem eficácia jurídica, pois ela é fruto de decisões tomadas por órgão corporativo, sem qualquer caráter representativo do corpo social.[21]

Todavia, convém salientar que a respectiva resolução tem um valor considerável no campo do direito, haja vista que os projetos de lei, elaborados até o momento, refletiram alguns de seus aspectos. Ademais, o profissional médico encontrará, seus limites de atuação profissional, tanto na respectiva Resolução 1.358/92 do CFM como também no Código de Ética Médica. Vale dizer que, enquanto pairar a inércia do legislativo em relação a confecção de lei específica à RA, diversas relações jurídicas e dissídios poderão surgir. Desta forma, tais relações poderão vir à baila da justiça exigindo, assim, uma solução por parte do Poder Judiciário.

Apesar de haver lacuna de lei específica que regule a RA, nos termos do art. 126 do CPC: “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei”. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais, não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito. O art. 4° da LICC determina que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.

Assim sendo, diante da pluralidade de relações jurídicas que podem ser trazidas a baila da justiça devido aos complexos de interesses resultantes da RA, o Estado Juiz terá, no ordenamento jurídico vigente, o dever de solucionar a lide, mantendo o fim do império da lei e da paz social.  

Ressalta-se que, embora não haja legislação específica, a RA encontra respaldo legal diante do ordenamento jurídico em vigor uma vez que a legalidade repousa no fato de que em nosso país, onde tudo o que não é proibido é permitido, pois “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF/88 artigo 5º, inciso II). No âmbito penal a RA é conduta lícita haja vista que, “não há crime sem lei anterior que o defina” (CF/88 art. 5° XXXIX).[22]

Por conseguinte, ainda que sem legislação específica, é possível verificar a licitude dos procedimentos, pois é evidente que, se a sociedade os considerasse ilegais, certamente procuraria algum modo de coibi-los.[23]

Vale ainda ressaltar que o Novo Código Civil, implicitamente, reconhece a utilização da RA ao dispor em seu confuso artigo art. 1.597 incisos III, IV e V sobre a aplicação da presunção, juris tantum, da paternidade no campo da RA. Sobre isso Venosa acrescenta:

advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade; toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por um estatuto ou microssistema. [24]

Nessa ordem de idéias, mesmo antes da aprovação e vigência de algum dos projetos de lei em andamento no Congresso Nacional, a procriação é um direito natural assegurado livremente.[25]

 Entretanto observa-se que, apesar de não haver legislação específica em vigor, as técnicas de RA não se encontram ilimitadas, senão vejamos: A Constituição Federal de 1988 dita limites legais a serem seguidos e, no capítulo dedicado à família, em seu dispositivo 226, § 7º, estabelece que, “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal”.

Nota-se que, o planejamento familiar deve estar sempre fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Destarte, o livre planejamento familiar é princípio permissivo da RA, enquanto a dignidade da pessoa humana e a paternidade responsável são princípios limitadores, no sentido de que é inconcebível a reprodução humana assistida fora de seus limites. 

Ainda, o art. 226, §7º da CF/88, determina que compete “ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e privadas”. 

Regulando a respectiva norma constitucional a Lei 9.263/96 dita em seu artigo 9° que “para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção, contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”. Destaca-se que, nos termos do artigo 6° da respectiva Lei 9.263/96, “as ações de planejamento familiar serão exercidas pelas instituições públicas e privadas, filantrópicas ou não, nos termos desta Lei e das normas de funcionamento e mecanismos de fiscalização estabelecidos pelas instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde”.

Diniz ao discorrer sobre os limites da liberdade da atividade científica afirma que:

A Constituição Federal de 1988 em seu art. 5°, inciso IX, proclama a liberdade da atividade cientifica como um dos direitos fundamentais, mas isso não significa que ela seja absoluta e não contenha qualquer limitação, pois há outros valores e bens jurídicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade física e psíquica, a privacidade, etc., que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica.[26]

Nesta senda, todos os métodos e técnicas de concepção devem ser cientificamente aceitos e limitados tanto na área da medicina como na área do direito. Contudo, vale ressalvar que estes métodos não podem colocar em risco a vida e a saúde das pessoas envolvidas, ademais, as respectivas técnicas deverão ater-se sempre ao fundamental e limitador princípio dignidade da pessoa humana.

Em caso de aparente conflito entre os princípios da livre expressão da atividade cientifica e da dignidade da pessoa humana, Diniz traça a devida solução:

Havendo conflito entre a livre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução ou ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 1º, III, da Constituição. [27]

Compartilhando do entendimento de que a ciência deve ater-se aos limites impostos pelo direito, Silvia da Cunha Fernandes leciona que:

A ciência sem controle pode levar à destruição da humanidade e isso não se pode admitir de maneira alguma, visto que o Estado Democrático de Direito e todo o ordenamento jurídico nele vigente tem base no ser humano e estão a serviço dele. [28]

Exatamente por isso, são vedadas as técnicas para a busca do ser humano perfeito (eugenia), pois o mesmo não pode ser analisado, pesado e escolhido como se fosse uma mercadoria (res). Também não é lícita a utilização da RA para a escolha do sexo ou outras características biológica, neste sentido o Conselho Federal de Medicina considerou antiética essa seleção de sexo.[29]Nesta ordem de idéias a Lei 8974/95 estabelece em seu art. 8° que é vedada “a manipulação genética de células germinais humanas”.

Nessa ordem de idéias, Da Gama afirma que:

em qualquer caso, a utilização das técnicas de procriação medicamente assistida tem de ater-se ao respeito dos princípios jurídicos fundamentais em matéria de proteção da família, filiação e direitos do nascituro a uma correta inserção familiar e bem assim dos direitos invioláveis do homem, sendo de repudiar toda a operação de engenharia genética que não seja benéfica para aquele que vai nascer. [30]

Não obstante, todos os princípios jurídicos fundamentais em matéria de proteção da família são refletidos na RA. Da Gama traça os seguintes princípios de ordem constitucional que devem permear as relações jurídicas provenientes da RA: [31]

a)        o princípio e fundamento da dignidade da pessoa humana [32](art. 1°, III);

b)        o princípio da tutela especial à família, independentemente da espécie (art. 226, caput);

c)        o princípio e fundamento do pluralismo e da democracia nos âmbitos dos organismos familiares, bem como da escolha da espécie de família (art. 1°, V);

d)         o princípio da igualdade em sentido material de todos os particípes da família (art. 5° e inciso I);

e)        os princípios e objetivos da liberdade, da justiça e do solidarismo nas relações familiares (art. 3°, I);

f)          o princípio e objetivo da beneficência em favor dos participes do organismo familiar (art. 3° IV);

g)        o princípio da paternidade responsável, vinculado ao método interpretativo the best interest of the child (art. 226, §7°);

h)        o princípio da prevalência do elemento anímico da affectio nas relações familiares (art. 226, §6°);

i)          princípio do pluralismo das entidades  familiares (art. 226, §§ 1°, 3° e 4°);

j)          princípios da liberdade restrita e beneficência à prole em matéria de planejamento familiar (art. 226, §7°);

k)        princípio e dever da convivência familiar (art. 227, caput);

l)          princípio da prioridade da proteção absoluta e integral da criança e do adolescente (art. 227, caput), incluindo a sua colocação em família substituta (art. 227, § 3°, VI, e §5°);

m)       princípio da isonomia entre os cônjuges (art. 226, §5º) e, implicitamente, entre os companheiros;

n)         princípio da isonomia entre os filhos, independentemente da origem (art. 227, §6º);

o)        princípio da não-equiparação entre o casamento e o companheirismo (art. 226, §3º).

CONCLUSÃO

Diante do exposto conclui-se que, não havendo vedação legal específica, nem especificação de crime, são válidas todas as técnicas disponíveis para a resolução de problemas de infertilidade humana, aliás, a RA é meio legítimo de satisfazer o direito de todo ser humano de se reproduzir e se perpetuar, com suporte moral e sentimento de igualdade. Nada obstante, estas técnicas de reprodução humana assistida devem ater-se a determinados limites impostos tanto pelo atual ordenamento jurídico vigente como pelos princípios de direito e atuais normas éticas do Conselho Federal de Medicina. 

BIBLIOGRAFIA E APONTAMENTOS

[1]DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 9.

[2]DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 452.

[3]PACIORNIK, R. Dicionário Médico. 5. ed. São Paulo: Guanabara Koogan, 1975. p. 315.

[4]FERNANDES, Silvia da Cunha. As técnicas de Reprodução Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentação.  Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 78.  

[5]DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 455.

[6]Ibidem., p. 453.

[7]HATEM, Daniela Soares; SÁ, Maria Fátima Freire de Sá (Cord).  Biodireito: questionamentos jurídicos diante das novas técnicas de reprodução assistida. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 194.

[8]MACHADO Maria Helena. Reprodução Humana Assistida: aspectos éticos e jurídicos. Curitiba: Juruá, 2006, p. 44.

[9] FERNANDES, Silvia da Cunha. As técnicas de Reprodução Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentação.  Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 90-95.  

[10]DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 452.

[11]MACHADO Maria Helena. Reprodução Humana Assistida: aspectos éticos e jurídicos. Curitiba: Juruá, 2006, p. 41.

[12]ABDELMASSIH, Roger. Aspectos Éticos de Reprodução Assistida.  Revista de Bioética e Ética Médica publicada pelo Conselho Federal de Medicina. São Paulo, v. 9, n. 2, p. 15-16. 2001.

[13] MACHADO Maria Helena. Reprodução Humana Assistida: aspectos éticos e jurídicos. Curitiba: Juruá, 2006, p. 42.

 [14]Artigo XVI.  Os homens e as mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e dissolução. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

[15]FERNANDES, Silvia da Cunha. As técnicas de Reprodução Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentação.  Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 1.  

[16] Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:(...)            II – a dignidade da pessoa humana;

            Leciona Celso Ribeiro Bastos que “a referência à dignidade da pessoa humana parece englobar em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico social”; “...um dos fins do Estado é propciar as condições para que as pessoas se tornem dignas”.  (BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Granda. Comentários à Constituição Brasileira. 1V. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 472.)

            Art. 5°, caput. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)

             X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

            XXX – é garantido o direito de herança;

            Art. 218, caput. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.

            Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

            § 7° Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e privadas. 

Art. 5º, inciso XXXIX da CF/88: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.Art. 1º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.

[17] Venosa, Silvio de Salvo. Direito de Família. 5. ed. São Paulo : Atlas, 2005. p. 26.

[18]ALMEIDA, Lacerda apud MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. V1. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 39.

[19]FERNANDES, Silvia da Cunha. As técnicas de Reprodução Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentação.  Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 186.  

[20] DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Filiação e Reprodução Assistida: introdução ao tema sob a perspectiva do direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, V776, p. 82, ano 2000.

Consultar: DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Filiação e Reprodução Assistida: introdução ao tema sob a perspectiva do direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, V776, p. 81, ano 2000.

[23] OLIVEIRA, Deborah Ciocci Alvarez de Oliveira. Reprodução Assistida: até onde poderemos chegar? compreendendo a ética e a lei. São Paulo: Gaia, 2000. p. 15.

[24]VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : direito de família. 5.ed. v.6. São Paulo : Atlas, 2005. p. 256.

[25] OLIVEIRA, Deborah Ciocci Alvarez de Oliveira. Reprodução Assistida: até onde poderemos chegar? compreendendo a ética e a lei. São Paulo: Gaia, 2000. p. 16.

[26]DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 7.

[27]Ibid., p. 7-8.

[28]FERNANDES, Silvia da Cunha. As técnicas de Reprodução Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentação.  Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 189.  

[29]Resolução CFM nº 1.358/92, Capítulo 1, item 4 – “As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar as doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer”.

[30]DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Filiação e Reprodução Assistida: introdução ao tema sob a perspectiva do direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, V776, p. 68, ano 2000.

[31]Ibidem., p. 65-66-67.

[32] A dignidade da pessoa humana está intimamente ligada a possibilidade de procriação; assim, a reprodução artificial, quando necessária, torna-se a única maneira de satisfazer o desejo de procriar, ou seja, de dar continuidade a si próprio na figura do filho, legando-lhe os valores, o nome, o patrimônio econômico e genético.

Sobre o autor
Wieland Puntigam Travnik

Advogado (OAB/SP 264.659). Formação Acadêmica – Unimep. Pós Graduado em Processo Civil pela Metrocamp. Advoga desde 2007, (advogou até junho de 2014 no escritório Suguimoto & Associados no âmbito do direito cível e empresarial).

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