A função social e desapropriação do imóvel rural para fins de reforma agrária

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presente trabalho visa apresentar características referentes às principais questões envolvendo o imóvel rural e sua função social, abordando desde aspectos históricos, conceitos e determinações legais, como também o ato da proteção possessória exercida pe

Resumo: O presente trabalho visa apresentar características referentes às principais questões envolvendo o imóvel rural e sua função social, abordando desde aspectos históricos, conceitos e determinações legais, como também o ato da proteção possessória exercida pelo possuidor até chegar à desapropriação como meio principal de efetivação da Reforma Agrária tanto almejada e discutida no país.

Palavras-chave: Imóvel Rural. Função Social. Desapropriação. Reforma Agrária. Proteção Possessória.

NOTAS INTRODUTÓRIAS        

            As teorias que buscam explicar o surgimento da sociedade civil já nos impulsiona a reflexões quando a situação em que os indivíduos existiam isoladamente em estado de natureza na famosa “guerra de todos contra todos” tendo a propriedade privada como desencadeadora. Hobbes, no século XVII, dizia que, em tal estado, o medo constante da morte violenta fazia com que os indivíduos tentassem se proteger inventando armas e cercando a terra que ocupava, logo, isto gerava tamanha desconfiança no outro que os levava a tomar a iniciativa na agressão como meio de evita-la a si. Não havia nenhuma garantia de vida, a posse não existia e a lei era a de poder conquistar tudo que possa conservar, sem limites. Já Rousseau[2], século XVIII, defendia que o homem nascia bom, desconhecia a luta e era um ser dócil, mas apenas até o momento em que se passou a tentar conquistar e determinar áreas. Fora o surgimento da propriedade privada que levou o homem ao estado hobbesiano da lei do mais forte. O mundo tinha liberdade, mas era muito inseguro. Diante de um pacto firmado entre todos garantiriam os direitos e as relações entre as pessoas, decidindo assim, entregar a sua liberdade em detrimento de mais segurança. Criaram o leviatã, ou o Estado, o qual teria o poder de punir todos que não sigam as regras sociais.

              Os embates envolvendo a propriedade continuam em alta mesmo diante da evolução da sociedade, ainda mais no contexto brasileiro marcado desde logo pela exclusão e criação de grandes proprietários em desarmonia total com o restante da sociedade. É facilmente notável a enorme discrepância na divisão de terras entre os latifundiários e os pequenos trabalhadores ou até mesmo aqueles chamados “sem terra”. Os embates judiciais colocam de um lado os trabalhadores sem terra e as ONG’s e do outro os grandes fazendeiros que têm seus terrenos ameaçados, turbados ou esbulhados. Tais questões incorporam diretamente a tese da denominada Teoria da Posse Agrária, mais especificamente ao efetivo cumprimento da função social da posse, esta prevista nos artigos 184 e 186, I a IV, da Constituição Federal de 1988, além da desapropriação para fins de Reforma Agrária e dos meios de defesa da propriedade frente às possibilidades previstas na legislação.

             

1 - POSSE E PROPRIEDADE

              A origem da posse traz é bastante controversa, admitindo alguns que o seu desenvolvimento se deu em Roma. O seu estudo traz diversas teorias, mas é possível reduzi-lo em duas principais: subjetiva, sustentada por Friedrich Karl Von Savigny, e a objetiva, defendida por Rudolf Von Ihering.

              Para Savigny, a posse é caracterizada por dois elementos, um de natureza objetiva, o corpus, e outro de natureza subjetiva, o animus. O primeiro é a detenção física da coisa e o segundo se apresenta com a intenção de tê-la como sua. Tais elementos são indispensáveis, pois sem o corpus não há posse e sem o animus haverá mera detenção. Esta prevista no artigo 1.198 do CC: “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”. É notável, entretanto, que tal conceito se baseou na teoria objetiva, como veremos a seguir. Para a teoria objetiva de Ihering, o animus não tem tanta importância em referência à intenção do agente, exigindo somente a presença do corpus. “Com relação à posse, a vontade desempenha simplesmente o papel de um representante que quer ter a coisa não para si, mas para o proprietário”.[3]Para ele, o corpus é a visibilidade de propriedade, ou seja, é possuidor aquele que age como tal. Diferente da teoria subjetiva, nesta o corpus não significa a detenção física da coisa, mas sim a conduta de dono. Desta maneira, “chamar a posse de exterioridade ou visibilidade do domínio é resumir, numa frase, toda a teoria possessória”[4]. O nosso Código Civil adota em regra a teoria objetiva, como é perceptível em alguns artigos, como nos artigos. 1.196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”; 1.204: “Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”; e 1.223: “Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196”. Se divide ainda em posse direta, aquele que exerce diretamente sobre a coisa os poderes de proprietário, e indireta, daquele que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal ou real previstos nos artigos 1.196 e 1.197. Há ainda teorias sociológicas que são consideradas importantes por sua profundidade filosófica e autonomia dada a posse. Nesse sentido Carlos Roberto Gonçalves explica que a teoria da apropriação econômica de Saleilles preconiza a independência da posse em relação ao direito real, tendo em vista que ela se manifesta pelo juízo de valor segundo a consciência social considerada economicamente. O critério para distinguir a posse da detenção não é o da intervenção direta do legislador para dizer em que casos não há posse, como entende Ihering, mas sim o de observação dos fatos sociais: há posse onde há relação de fato suficiente para estabelecer a independência econômica do possuidor.[5]

              Não se pode falar em posse omitindo-se sobre a detenção, logo, é a dificuldade em distinção do estado de fato que se configura cada uma. Para Ihering, ambas possuem os mesmos elementos: corpus e animus, no entanto, é tida como uma posse degenerada, que em consonância com a lei se transforma em detenção. Ocorre quando outra pessoa exerce a posse em nome de outrem, subordinado a tais ordens ou instruções devido a uma relação existente entre ambos, como prevê o art. 1.198 do Código Civil. A grande diferença se mostra na possibilidade dos efeitos jurídicos pertinentes a cada um, pois apenas o possuidor pode conferir direitos e pretensões possessórias em nome próprio.

               No que se refere à propriedade, o art. 1.228 do Código Civil não apresenta diretamente uma definição, mas expressa os poderes que possui o proprietário, tendo este à faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. É um direito real elencado no artigo 1.225, inc. I do CC, garantindo ao seu titular um poder direto e imediato sobre a coisa, sobretudo, o direito de sequela, além de possuir efeito “erga omnes”. Outros ainda defendem ser um direito sui generis, por possuir regulamento próprio. Além do mais, a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário (art. 1.231).

              Vale lembrar que, como leciona Carlos Roberto Gonçalves, o fundamento jurídico da propriedade é algo altamente controverso, existindo várias teorias a respeito, como: a teoria da ocupação, remonta aos romanos sustentando o fundamento na ocupação das coisas, quando não pertenciam a ninguém; teoria da especificação, diz respeito ao trabalho, isto é, para justificar o direito de propriedade deve-se ter o trabalho humano transformando a natureza e a matéria bruta; teoria da lei, defendida por Montesquieu, dizendo que a sociedade existe porque a lei a criou e a garante; e teoria da natureza humana, a mais aceita entre todas, se referindo a propriedade como algo inerente à natureza humana para nutrir suas necessidades. O direito e uso da propriedade está ligada a uma série de requisitos, reza o artigo 1.228, § 1º do Código Civil de 2002, por exemplo, que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”, além de que “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (§ 2º). Importante lembrar que se pode dizer que a propriedade também é perpétua, logo, não é extinta sem o uso, mas somente quando ocorrer algum dos modos de perda previsto em lei previsto no artigo 1.275, como a alienação, a renúncia, a desapropriação, o perecimento etc.

2 - ASPECTOS HISTÓRICOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

              No que se refere ao surgimento e evolução da função social da propriedade, este se mostra muito antigo, encontra-se dado pelos fisiocratas o conceito de economia rural. Benedito Ferreira Marques[6]sustenta que foi Aristóteles, filósofo grego, o primeiro a se manifestar dizendo que aos bens se devia dar uma destinação social. Este pensamento, a partir de Santo Tómas de Aquino, ganhou mais impulso com a Igreja Católica, a qual propagou o sentido do bem comum, estando o homem livre para adquirir bens, mas submetido ao bem estar social, ao dever de satisfazer também a coletividade. Foi com o Código de Napoleão que a propriedade ganhou caráter de direito absoluto, influenciando então outros códigos, inclusive o do Brasil. Alguns autores ainda apontam o Código de Hamurábi, 1690 a.C., como o primeiro diploma que, em 65 dos seus 280 dispositivos, tratava sobre o Direito Agrário, além da abordagem também feita na Lei das XII Tábuas, em 450 a.C..

              Karl Marx considerava a propriedade privada a maior causa das injustiças sociais. O pensamento marxista se preocupou muito com os acontecimentos diversos da sua época. Influenciado pelas ideias da filosofia de Hegel, partiu do pressuposto básico da dialética sendo a história um processo contraditório e em permanente modificação. Idealizava uma sociedade justa e equilibrada por meio da forte crítica ao capitalismo. Desta forma, junto com o revolucionário alemão Friedrich Engels, defendeu o socialismo científico, também conhecido como comunismo, o qual seria caracterizado pela superação da propriedade privada dos meios de produção e por promover a diminuição da desigualdade social. No entanto, fora com Pierre Marie Nicolas Léon Duguit, jurista francês especializado em direito público, que a função social obteve seu grande impulso a partir de uma palestra proferida em 1911 na Faculdade de Direito de Buenos Aires, na Argentina. Duguit foi inspirado pelo positivismo de Augusto Comte e defendia que o governo poderia intervir de forma legítima se o proprietário não atendesse aos requisitos de cumprimento da função social.

              No direito brasileiro, desde a concessão das Sesmarias no período colonial em 1375 continuando com as Ordenações do Reino – Afonsinas em 1494, Manuelinas em 1512 e Filipinas em 1603 – já havia certa preocupação com o cumprimento da função social, logo, uma das obrigações impostas aos sesmeiros era de cultivar a terra impondo sentido de aproveitamento econômico. Ressalta Silvia e Oswaldo Opitz que “a finalidade da Lei das Sesmarias era aumentar a produção, pois, se todas as terras que haviam no Reino fossem cultivadas, haveria pão de sobejo para toda a gente, e não seria necessário trazê-lo de fora”.[7]No chamado “império da posse”, de 1822 a 1850, o único jeito de se demonstrar domínio de certa porção territorial de propriedade imobiliária era a posse, sendo que em 1850, com a Lei 601, foi vedada a ocupação das terras devolutas, as quais foram passadas aos estados diante da Constituição Republicana de 1891. Em 1934 estava prevista a expressão bem-estar social no texto da Constituição, tratando ainda da usucapião, da proteção ao trabalhador e da colonização. Apresentou-se com nova força na de 1946, a qual ainda trouxe a desapropriação por interesse social e por necessidade ou utilidade pública, não perdendo assim mais seu lugar na nossa Carta Magna e tendo a expressão função social integrada ao ordenamento por meio do Estatuto da Terra. Hoje, o mencionado princípio está solidificado na nossa Lei Maior nos artigos 5º, inc. XXIII e 170, inc. III, além de se referir diretamente ao imóvel rural em seu artigo 186 como já se apresentava no artigo 2º caput e § 1º do Estatuto da Terra, Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964.

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3 - O IMÓVEL RURAL E SUA FUNÇÃO SOCIAL

              Oito meses após o Golpe Militar, em novembro de 1964, o governo aprovou a lei 4.504, na tentativa de diminuir problemas no meio rural existentes até hoje. Como bem relata Eduardo Scolese[8],

no papel, o Estatuto da Terra foi algo de primeira qualidade, inclusive com definições usadas até hoje para latifúndio, por exemplo. Hoje, quando o MST invade uma propriedade rural, ele o faz com base em artigo do Estatuto que aponta as terras improdutivas como passíveis de desapropriação para a reforma agrária. Com o texto em mãos, os trabalhadores rurais passaram então “apenas” a cobrar o seu cumprimento, pois a base legal eles já tinha.

              O ET determina para efeitos legais o que é o imóvel rural em seu artigo 4º, inciso I, como o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine a exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através da iniciativa privada. Ressalta também quando será cumprida a função social comm base em requisitos, vejamos: Art. 2º É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista em lei. § 1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) Favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam.

              Diante do elevado índice de concentração de terras nãos mãos de poucos sem o exigido cumprimento da função social, há uma real necessidade de reforma agrária no país, podendo a própria União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social mediante prévia e justa indenização, é o que reza o artigo 184 da CF/88. Benedito Ferreira Marques[9]explica que, com certo exagero, alguns estudiosos do tema chegam a afirmar que a propriedade é a própria função social, sendo que não deveria existir a indenização em favor do proprietário em caso de desapropriação, logo, não estaria fazendo a terra cumprir o seu papel como bem de produção e o direito a propriedade garantida está condicionada ao cumprimento de tal função. Desta maneira, a indenização se mostraria como um enriquecimento sem causa para o expropriado.

 

3.1 – A PROTEÇÃO POSSESSÓRIA EXERCIDA PELO POSSUIDOR

              É rotineiramente noticiado casos em que alguns indivíduos invadem terras com diversas finalidades, algumas amparadas por ONG’s através de movimentos sociais como o MST. É dada como o principal efeito da posse a possibilidade de defesa direta da mesma, segundo o que preceitua o art. 1.210, § 1º do Código Civil: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. No que se refere aos atos de defesa direta, se diferem a legítima defesa e desforço imediato. Este se apresenta quando o possuidor esbulhado (já perdeu a posse) reage logo que lhe seja possível, podendo fazer justiça com as próprias mãos, estando limitado ao indispensável para retomar a posse. Já a legítima defesa se apresenta na possibilidade de repelir enquanto a turbação (continua na posse da coisa) começar ou continuar. Mesmo podendo ser auxiliado por outras pessoas ou empregados, deverá agir com suas próprias forças fazendo uso de meios proporcionais, logo, o excesso poderá se transformar numa indenização contra danos causados a terceiro. Quando se fala em interditos possessórios fica demonstrado ações em que o proprietário poderá usufruir para a defesa da posse frente a ordens judiciais, estas sendo a manutenção, a reintegração e o interdito proibitório. Esta se refere a quando há ameaça que se configure num justo receio de turbação ou esbulho, isto é, tem caráter preventivo. A manutenção, como o próprio nome já diz, é um meio de manter a posse frente à turbação que se apresenta, enquanto que a reintegração tem como finalidade a recuperação da posse já perdida em razão do esbulho. Vale ressaltar que é licito ao autor cumular ao pedido possessório o de condenação em perdas e danos, cominação de pena para caso de nova turbação ou esbulho, e desfazimento de construção ou plantação feita em detrimento de sua posse (art. 921 do Código de Processo Civil).

3.2 – A DESAPROPRIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DA REFORMA AGRÁRIA

              Pode-se afirmar que a desapropriação no direito brasileiro teve sua inclusão diante de grande influência portuguesa. A Constituição Imperial de 1824 expressava em seu art. 179, nº 22, que “É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará regras para se determinar a indenização”. Dois anos depois, uma lei em 9 de setembro determinou a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, além das formalidades do processo. Já na Carta de 1891 trouxe grande avanço, “o direito de propriedade se mantém em toda a sua plenitude, salvo desapropriação por necessidade ou utilização pública, mediante indenização prévia”. Em contrapartida, a Constituição de 1937 restaurou estes institutos anteriormente citados e retirou dos Estados à competência de legislar a respeito. As mudanças não pararam de ocorrer, e a Constituição de 1946 inovou. Esta impôs que o pagamento fosse a dinheiro, além de ligar o uso da propriedade ao bem-estar social e instaurou outro motivo para a desapropriação: o interesse social.

              A Constituição Federal de 1988 exige, em seu artigo 186, que a propriedade rural apresente, simultaneamente, aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos seus trabalhadores. No caso de descumprimento de algum desses requisitos, de acordo com o artigo 184 da CF/88, o imóvel ficará sujeito à desapropriação por interesse social mediante prévia e justa indenização, ou seja, o imóvel que não cumpre tal função perde a proteção constitucional. É assim que o Estado aplica a reforma agrária visando uma melhor distribuição da terra improdutiva atendendo aos princípios da justiça social e ao aumento da produtividade. Como bem lembra Silvia e Oswaldo Opitz, “a desapropriação não é limite ao direito de propriedade, mas uma forma de sua aquisição originária, de um lado, e de perda, do outro”[10]. A venda da propriedade é forçada sempre que tiver que realizar a justiça social, mas necessita de justificativa e deve ser mediante a indenização devida, haja vista o respeito ao princípio que garante o direito de propriedade (art. 5º, inc. XXII).

              Sabendo das dificuldades facilmente perceptíveis e falta de efetividade e cumprimento do texto constitucional, de acordo com o que sustenta José Isaac Pilati[11],

acreditar em cumprimento e aplicação efetivos da função social com o uso tão só de instrumentos de direito público administrativo, dos moldes individualistas, como a desapropriação ou então, de procedimentos do Código de Processo Civil, voltados para conflitos individuais, tem sido erro comum, que explica o fracasso do postulado constitucional. A função social somente será efetiva com o resgate institucional da dimensão participativa da CFRB/88, pois é ela que corresponde a dimensão coletiva. A função social não tem natureza de público-estatal: ela é antes de tudo espaço coletivo; carece de estrutura participativa e democrática.

              De acordo com Informativo/MIRAD, Revista Guia Abril Rural nº 3, 1988, 98% das propriedades rurais brasileiras estariam excluídas para fins de desapropriação em relação a reforma agrária, logo, como prevê o art. 185, a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, é insuscetível de desapropriação desde que seu proprietário não possua outra e a propriedade produtiva. A classificação em pequena, média ou grande propriedade rural se dá, segundo o art. 50, §3º do Estatuto da Terra, no número de módulos fiscais que é obtido dividindo-se a área aproveitável do imóvel pelo módulo fiscal do Município. O art. 4º da Lei 8.629/93 relata como a pequena propriedade aquele imóvel rural que se compreende entre 1 e 4 módulos, enquanto o médio será aquele com área superior a 4 e até 15 módulos fiscais. A referida Lei ainda traz o conceito de propriedade produtiva como “aquela que, explorada economicamente e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência da exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente”. O artigo 7º da mesma Lei traz também a impossibilidade para o imóvel que comprove estar sendo objeto de implantação de projeto técnico que atenda aos seguintes requisitos: I – seja elaborado por profissional legalmente habilitado e identificado; II – esteja cumprindo o cronograma físico-financeiro originalmente previsto, não admitidas prorrogações dos prazos; III – preveja que, no mínimo, 80% da área total aproveitável do imóvel esteja efetivamente utilizada em, no máximo, 3 anos para as culturas anuais e 5 anos para as culturas permanentes; IV – haja sido aprovado pelo órgão federal competente, na forma estabelecida em regulamento, no mínimo seis meses antes da comunicação de que tratam os §§ 2º e 3º do art. 2º. Importante lembrar que os prazos previstos no inciso III deste artigo poderão ser prorrogados em até 50% (cinquenta por cento), desde que o projeto receba, anualmente, a aprovação do órgão competente para fiscalização e tenha sua implantação iniciada no prazo de 6 (seis) meses, contado de sua aprovação (parágrafo único). Além do exposto, no que se refere à empresa rural, Silvia e Oswaldo Opitiz sustentam que não poderá ser objeto da desapropriação, logo, a regra do art. 19, §3º, b, do ET, a isenta, englobando-a desde que explore economicamente e racionalmente o imóvel rural dentro das condições de cumprimento da função social.[12]

              No que diz respeito à indenização, o pagamento é feito em títulos e dinheiro. A Constituição possibilita à lei definir a utilização dos títulos, estes resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão. A Lei 8.629/93 dita os critérios de resgate dos títulos em acordo com a área desapropriada, é o que versa o artigo 5º, sendo do segundo ao quinto ano quando a área for inferior a quarenta módulos fiscais; do segundo ao décimo, quando acima de quarta e até setenta; do segundo ao décimo quinto, quando acima de setenta e até cento e cinquenta; e do segundo ao vigésimo, quando a área for superior a cento e cinquenta módulos fiscais. Vale lembrar que, de acordo com o art. 184, § 1º, e Lei n. 8.623/93, art. 5º, § 1º, as benfeitorias necessárias e úteis serão indenizadas em dinheiro. Além do mais, é viável ressaltar o que se leva em consideração para a fixação do valor do imóvel, a saber: a localização do imóvel; aptidão agrícola; dimensão do imóvel; área ocupada e ancianidade (se refere a tempo) das posses; e a funcionalidade, tempo de uso e estado de conservação das posses.

3.3 – OBJETIVOS DA DESAPROPRIAÇÃO E SEUS BENEFICIÁRIOS

              O Estatuto da Terra, em seu art. 16, expressa que “a Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, à propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”. Considera-se a desapropriação como o instrumento mais utilizado na tentativa de promover a Reforma Agrária, tal meio por interesse social tem por objetivo final condicionar o uso da terra a sua função; promover a justa e adequada distribuição da propriedade; obrigar a exploração racional da terra; permitir a recuperação social e econômica da região; estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e assistência técnica; efetuar obras de renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais; incrementar a eletrificação e a industrialização no meio rural; e facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias (art. 18, ET).

              Diante de todo esse processo marcado pela exclusão, a má distribuição de terra acarreta uma série de discussões e problemas. Tal instituto jurídico procura alcançar à tão almejada reforma agrária brasileira. Ao conseguir a desapropriação da terra respeitando os limites impostos pela legislação, é de suma importância ressaltar que, de acordo com o art. 19 da Lei nº 8.629/93, há certa ordem de preferência aos beneficiários. Para o homem ou a mulher, independentemente de seu estado civil: I – o desapropriado, a quem é assegurada a preferência para a parcela na qual a sede do imóvel; II – os que trabalham no imóvel desapropriado, tais como posseiros; assalariados, parceiros e arrendatários; III – os que trabalham como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários, em outros imóveis; os agricultores cujas propriedades não alcancem a dimensão da propriedade familiar; e os agricultores cujas propriedades sejam, comprovadamente, insuficientes para o sustento próprio e de sua família. Lembrando ainda que, em tal ordem, as famílias numerosas na qual os membros irão ou se dispunham a exercer atividades agrárias terão a prioridade.

4 – NOTAS CONCLUSIVAS

              Nota-se que desde o período de colonização portuguesa no Brasil, ao dividir o território em grandes propriedades produtivas criando as capitanias hereditárias e o sistema de sesmarias, as marcas das desigualdades foram impostas e a concentração de terras nas mãos de poucos se mostrou próprio e talvez irreversível à sociedade mesmo com o passar dos séculos. As brigas por terras tem se mostrado ainda mais presentes ao cotidiano, logo, inúmeras propriedades de terras não estão cumprindo com sua função social enquanto que milhões de outros indivíduos procuram acesso às terras improdutivas.

              No que diz respeito às invasões de terras sob o fundamento de não cumprimento da função social, as ações possessórias de imóveis rurais não depende do cumprimento da Teoria da Posse Agrária. A própria jurisprudência (TJ-PA – Agravo de Instrumento nº 20083004291- 3) diz que não há necessidade do cumprimento da função social, além do mais, a concessão da liminar está condicionada à comprovação dos requisitos descritos no art. 927 do CPC, não devendo então ser apreciada a discussão acerca do cumprimento ou não da função social da propriedade. Desta forma, seria ilegal a exigência de outros aspectos senão, depois de comprovada a posse, a turbação ou esbulho praticado pelo réu; a data da turbação ou do esbulho; e a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, ou a perda da posse, na ação de reintegração.

              Desta maneira, diante dos embates frente a um jogo de interesses, é plausível que se enxergue a propriedade como um direito a todos, até mesmo como meio de efetivação dos princípios constitucionais e dos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana. No mais, apesar de previsão legal, além da reforma agrária se mostrar como excelente meio de reorganização fundiária mais justa, as dificuldades ainda são claramente expressas na prática. Os movimentos sociais como o MST ajudam na medida em que exercem pressão ao Estado para dar uma maior visibilidade e garantir o cumprimento do que reza a Constituição Federal, logo, a propriedade rural deve satisfazer aos interesses da coletividade afastando então a sua inutilidade, haja vista os princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

IHERING, Rudolf Von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2004.

MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

OPITZ, Silvia C. B. Curso completo de direito agrário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na pós-modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

SCOLESE, Eduardo. A reforma agrária. São Paulo: Pubifolha, 2005.


[2]ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

{C}[3]{C}IHERING, Rudolf Von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2004. p. 20.

[4]{C}GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 52

[5]{C}GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 57.

[6]{C}MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 35

[7]{C}OPITZ, Silvia C. B. Curso completo de direito agrário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 49

[8]{C}SCOLESE, Eduardo. A reforma agrária. São Paulo: Pubifolha, 2005. p. 37.

[9]{C}MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 34.

[10]{C}OPITZ, Silvia C. B. Curso completo de direito agrário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 201.

[11]{C}PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na pós-modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 78.

[12]{C}OPITZ, Silvia C. B. Curso completo de direito agrário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. pp. 212-213.

Sobre o autor
José Lucas Rodrigues de Oliveira

Graduando em Direito pela UniAges.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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