Epidemias, Humanização e Tratamento médico

28/11/2014 às 17:28
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Hodiernamente, muito em razão da disseminação em grande escala do vírus ebola na África e, em casos esparsos nos demais continentes, verificamos um terreno fértil para a discussão acerca do tema apontado.

2. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

2.1. As Três Vertentes da Proteção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana

De proêmio, para que possamos confeccionar entendimento racional acerca do tema, faz-se necessário introduzirmos o tema da proteção internacional do direito à saúde. Em continuidade, é mister fazer uma rápida incursão pela proteção internacional dos direitos humanos, temática geral na qual se insere o direito à saúde, compreendendo assim os casos de epidemias no âmbito internacional. Tal direito se encontra internacionalmente protegido tanto nas declarações de direitos sociais (compreendidas no Direito Internacional dos Direitos Humanos) quanto nos atos internacionais que tratam do Direito Internacional Humanitário, sendo que também os refugiados têm esse direito assegurado pelas convenções.

A visão compartimentada das três grandes vertentes da proteção internacional da pessoa humana encontra-se hoje definitivamente superada. A doutrina e a prática contemporâneas admitem, por exemplo, a aplicação simultânea ou concomitante de normas de proteção, seja do Direito Internacional dos Direitos Humanos, do Direito Internacional dos Refugiados ou do Direito Internacional Humanitário. Verifica-se atualmente uma convergência entre esses três ramos do Direito Internacional, que é alimentada pela identidade de propósitos entre eles.

Nesse sentido, o Direito Internacional dos Direitos Humanos afirma-se como ramo autônomo da ciência jurídica contemporânea, dotado de especificidade própria. É, essencialmente, direito de proteção, voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos, e não dos Estados. Destarte, é dotado de uma multiplicidade de instrumentos internacionais de proteção, de natureza e efeitos jurídicos variáveis (tratados e resoluções), que são aplicados tanto no plano global (Nações Unidas), quanto no plano regional.

Para que sejam aplicados tais instrumentos, o conjunto deve ser interpretado de modo a realizar seu propósito. Ademais, no plano operacional, conta com uma série de mecanismos de supervisão e controle (petições, denúncias, relatórios, investigações), destinados a assegurar a proteção do ser humano nacional e internacionalmente, em qualquer circunstância.

Essa convergência nos planos normativo, hermenêutico e operacional, entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados, serve para ampliar a proteção da pessoa humana. Essas três vertentes de proteção internacional encontram-se reforçadas pelo ciclo de Conferências Mundiais das Nações Unidas na década de 90: Meio Ambiente, Rio de Janeiro, 1992; Direitos Humanos, Viena, 1993; População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; Desenvolvimento Social, Copenhague, 1995; Mulher, Beijing, 1995; Assentamentos Humanos, Istambul, 1996. Todas essas reuniões tiveram em comum o fato de demonstrar uma legítima preocupação de toda a comunidade internacional com as condições de vida das pessoas em todos os países.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos supera dogmas do passado ao sustentar a justiciabilidade das distintas categorias de direitos. Desta forma, direitos como os econômicos e sociais, incluído aqui o direito à saúde, anteriormente colocados à margem do pronunciamento dos tribunais, passam a ser “justiciáveis”, com base no reconhecimento do direito do ser humano de pleiteá-los.

Outro dogma derrubado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos é a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado. Tal dualidade não persiste quando há necessidade de se proteger, por exemplo, a criança da violência doméstica ou quando se pensa no direito do consumidor contra a atuação de conglomerados econômicos, caso em que o Estado permanece responsável por omissão, ao não tomar as medidas positivas de proteção.

Desse modo, hodiernamente temos proteção erga omnes e integral dos direitos humanos (sejam eles políticos, civis, econômicos, sociais, culturais). No plano operacional há necessidade de um monitoramento constante da situação em todos os países, feito conforme os mesmos critérios, com especial atenção tanto para as medidas de prevenção como de seguimento.

Cabe ainda observar que não há mais que falar em “gerações de direitos”, pois os direitos humanos não se “sucedem” nem se “substituem” uns aos outros, mas se acumulam, se expandem, se fortalecem, interagindo os direitos individuais e os sociais. O entendimento dessa questão é fundamental para que possam ser protegidos os direitos econômicos e os sociais, p. ex., cuja proteção, sob o pretexto da “sucessão geracional”, sempre foi postergada pelos poderosos.

Os direitos humanos, conforme colocado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, têm unidade, sendo indivisíveis. Quanto aos seus destinatários, sustenta-se que os direitos humanos devem ser impostos igualmente a todos os países, consoante os mesmos critérios, não se admitindo que sejam “escolhidos” determinados direitos para serem promovidos em detrimento de outros, adiando sua implementação.

Há que se observar que o Direito Internacional dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais, mas opera para defender, ostensivamente, os mais fracos; busca remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades na medida em que tais fatores prejudicam os direitos humanos; atua na defesa da ordre public, para a realização da justiça.

Grande parte da evolução histórica deve-se à mobilização civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão. Os mecanismos internacionais operam quando os instrumentos protetores de direito interno já se mostram insuficientes ou inadequados para assegurar a devida proteção.

Atualmente, ao serem interpretados os tratados internacionais de direitos humanos, o caráter objetivo das obrigações convencionais se sobrepõe à identificação das intenções subjetivas das partes. Deve ser restritiva a interpretação das limitações e derrogações permissíveis em relação ao exercício dos direitos protegidos, não cabendo limitações implícitas. Na interpretação dos tratados internacionais de direitos humanos deve primar o interesse público, comum e superior.

É por esse motivo que alguns mecanismos de direito internacional, como, por exemplo, os instrumentos de solução amistosa, operam de modo distinto: enquanto no direito internacional geral a solução pacífica de controvérsias tem se mostrado vulnerável ao voluntarismo estatal, no âmbito dos direitos humanos, os Estados não podem contar com o mesmo grau de discricionariedade, devendo se pautar pela fiel observância dos direitos humanos.

O Direito dos Refugiados é o ramo do Direito Internacional Público que cuida de proteger as supostas vítimas de conflitos ou situações de risco que buscam asilo ou refúgio em outros Estados, conforme a Convenção de Genebra de 1951 e seu Protocolo de 1967. No que concerne à sua aproximação ou convergência com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, essa se manifesta, por exemplo, na nova estratégia do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), cujos pilares básicos são: proteção, prevenção e solução. Dentro dessa evolução, o critério subjetivo de qualificação dos indivíduos que buscam refúgio cede lugar ao critério objetivo, concentrado nas necessidades de proteção, que passam a abarcar um número cada vez mais amplo de pessoas. Essa dimensão preventiva da classificação é denominador comum com o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

2.2 A Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Conforme o exposto na seção anterior, a visão compartimentada dos direitos humanos pertence ao passado, não mais cabendo falar nas “gerações de direitos”. O agravamento das disparidades sócio-econômicas entre os países, e entre as camadas sociais dentro de cada país, provocou uma profunda reavaliação das premissas da divisão dos direitos em categorias. Hoje se observa uma expansão dos direitos, sua cumulação e fortalecimento, consoante uma visão integrada, tecnicamente denominadas dimensões. O empobrecimento a que vêm sendo submetidos amplos e crescentes segmentos das populações dos países endividados, constitui grave atentado aos direitos humanos. Entretanto, é inegável que houve avanços tanto no plano doutrinário como na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Os continentes europeu e americano têm optado por soluções distintas na busca de uma implementação mais eficaz daqueles direitos, como será visto mais adiante.

A experiência na promoção e proteção dos direitos humanos não tem se confinado à satisfação das necessidades humanas básicas, mas tem vislumbrado horizonte mais amplo, através da capacitação em matéria de direitos humanos, do exercício do pleno direito de participação em todos os domínios da atividade humana. Os mecanismos internacionais de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais pouco poderão mudar da atual realidade se não houver profundas modificações no seio das sociedades nacionais, estabelecidas pelo parâmetro da justiça social, para que todos possam se beneficiar do progresso social. A pessoa humana deve ser situada no centro do processo de desenvolvimento, o que requer uma maior solidariedade e consciência nacionais.

Quanto à justiciabilidade desses direitos, vem sendo empreendidos consideráveis esforços doutrinários para que possam ser exigidos em juízo. Eles têm sido reconhecidos como de aplicabilidade imediata e se tem identificado as distintas

obrigações mínimas relativas aos mesmos. Tem-se ainda entendido que é vedada discriminação também no caso desses direitos.

No que concerne ao futuro dos mecanismos de proteção internacional, é de se esperar que os projetos, ora em curso, de protocolos que cuidam desses direitos, sejam adotados e entrem imediatamente em vigor, a fim de se estabelecer, no âmbito dos tratados de direitos humanos das Nações Unidas, um sistema de petições ou reclamações ou denúncias em relação a determinados direitos econômicos, sociais e culturais. Só assim se reduzirão as disparidades atualmente existentes entre os procedimentos de implementação internacional desses direitos e os direitos civis e políticos.

Cumpre ainda observar que as Nações Unidas vêm procurando avançar no aperfeiçoamento do sistema de relatórios sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, e da designação de relatores especiais para examinar ou investigar aspectos desses direitos. Se concretizadas tais medidas, haverá maior equilíbrio em sua implementação.

2.3 Da Recepção dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pelo Direito Brasileiro

2.3.1 A Interação entre o Direito Internacional e o Direito Interno na Proteção dos Direitos Humanos

O Direito Internacional dos Direitos Humanos enfoca de forma peculiar as relações entre o direito internacional e o direito interno, colocado exaustivamente pela doutrina tradicional como polêmica entre os dualistas e monistas.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos, sustenta que o ser humano é sujeito tanto ao direito interno quanto ao internacional, e em ambos dotado de personalidade e capacidade jurídicas próprias. Assim, o direito internacional e o direito interno, em lugar de se contraporem ou serem fragmentados, operam em constante

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interação, a fim de garantir a proteção da pessoa humana. Não cabe mais discutir a primazia das normas de direito internacional ou de direito interno: o primado é sempre da norma que melhor proteja os direitos humanos. Ou seja : o Direito Internacional dos Direitos Humanos consagra o critério da norma mais favorável às vítimas.

Em verdade, para o cumprimento das obrigações internacionais de proteção é necessária a atuação dos órgãos internos dos Estados para que apliquem as normas internacionais. Da adoção e aperfeiçoamento de medidas nacionais eficazes depende hoje, em grande parte, a evolução da própria proteção internacional dos direitos humanos. Em outras palavras, o direito internacional e o direito interno devem formar um todo harmônico para que se efetive a proteção.

A incorporação da normativa internacional de proteção no direito interno dos Estados constitui prioridade em nossos dias: é da ação e aperfeiçoamento de medidas nacionais de implementação que depende, em grande parte, o futuro da própria proteção internacional dos direitos humanos. Ambos devem apontar na mesma direção, formando um ordenamento jurídico de proteção.

Nas últimas décadas, a operação regular dos tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos tem demonstrado que eles podem beneficiar os indivíduos. Esses instrumentos, ao criarem obrigações para os Estados em relação aos seres humanos sob sua jurisdição, têm normas que se aplicam não só na ação conjunta dos Estados Partes na realização do propósito comum de proteção, mas também são aplicáveis no ordenamento jurídico interno de cada um deles, nas relações entre o poder público e os indivíduos.

Diversas constituições contemporâneas, referindo-se expressamente aos tratados de direitos humanos, concedem um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos humanos internacionalmente consagrados. Os tratados de direitos humanos indicam vias de compatibilização dos dispositivos convencionais com os de direito interno, de modo a prevenir conflitos entre 

as jurisdições internacional e nacional. Eles impõem aos Estados Partes o dever de provimento de recursos de direito interno eficazes e, por vezes, a possibilidade de “recurso judicial”, além de preverem a adoção pelos Estados Partes de medidas legislativas, judiciais, administrativas ou outras para a realização de seu objeto e propósito. Enfim, contam com o concurso dos órgãos e procedimentos de direito público interno, promovendo uma interpenetração nos dois segmentos jurídicos.

Os órgãos internos dos Estados são chamados a aplicar as normas internacionais. Este é o traço distintivo dos tratados de direitos humanos, dotados de especificidade própria e que requerem uma interpretação própria, guiada pelos valores comuns superiores que abrigam, diferentemente dos tratados clássicos que se limitavam a regular a atuação entre as partes.

Nesse sistema integrado, os atos internos dos Estados estão sujeitos à supervisão dos órgãos internacionais de proteção quando, no exame de casos concretos, se trata de verificar sua conformidade com as obrigações contraídas internacionalmente. As normas internacionais que consagram e definem claramente um direito individual, passível de vindicação ante um tribunal ou juiz nacional, são diretamente aplicáveis. Além disso, os próprios tratados de direitos humanos significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável às vítimas, seja ela de direito internacional ou de direito interno.

As obrigações internacionais de proteção têm amplo alcance e vinculam diretamente os poderes do Estado, além de comportarem o dever de se adequar o direito interno às normas convencionais de proteção. O descumprimento dessas obrigações leva à responsabilidade internacional do Estado, por atos ou omissões, seja do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário. Falta mais vontade por parte do poder público que avanços jurídicos para se promover e assegurar a proteção de direitos. Isso, porém, só será possível pela conscientização das sociedades, não pela imposição pela força.

2.3.2 A Recepção dos Atos Internacionais pela Constituição Federal de 1988

No Brasil, a recepção dos atos internacionais se efetiva quando a adesão ou ratificação do tratado entra em vigor. Suas normas passam então a ser normas de direito positivo nacional. Para que o ato internacional entre em vigor no território nacional, entretanto, é necessária a observância de procedimento específico, muito embora seja desnecessária lei especial para conferir-lhe validade.

Conforme o direito brasileiro, o Executivo Federal tem a iniciativa da negociação e decisão final sobre a conclusão de tratados. Assim, o Presidente da República, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, determina como serão assumidos os compromissos internacionais formais. O Ministério das Relações Exteriores, através da Divisão de Atos Internacionais, é responsável pela coordenação dos estudos relativos aos aspectos formais do processo, bem como pela preparação dos instrumentos escritos no que se refere à aprovação parlamentar, à ratificação, à promulgação e à publicação do tratado. Essa documentação segue em forma de proposta formal para o Legislativo, com uma Exposição de Motivos para a assinatura do tratado, através de Mensagem Presidencial, acompanhada de uma tradução do tratado para o português, se necessário.

Na realidade, o que determina a necessidade da aprovação legislativa do tratado é seu conteúdo, não sua forma, estando tal matéria disciplinada na Constituição Federal e nos Regimentos Internos das Casas do Congresso Nacional. O Presidente da República não está obrigado, porém, a ratificar os tratados depois da aprovação legislativa, e não compete ao Legislativo interferir em sua negociação e assinatura1. A aprovação do Congresso resulta da ação conjunta de ambas as Casas legislativas e se dá depois da assinatura do tratado pelo Chefe do Executivo. A competência do Congresso se resume a aprovação ou rejeição do texto no curso do processo legislativo,

não podendo ele próprio fazer emendas, pois nesse caso, cabe ao Executivo decidir se pretende reabrir negociações com as outras partes do ato internacional. Tampouco pode o Legislativo renunciar às reservas constantes do tratado, pois tal ação é exclusiva do Executivo.

Em outras palavras, na prática brasileira, os acordos são, via de regra, executivos, sem contestação do Legislativo no que se refere à sua conclusão, promulgação e publicação.

Para que seja aplicável no território nacional o tratado deve ser publicado, primeiramente, no Diário Oficial e no Diário do Congresso, após sua aprovação por decreto legislativo e assinatura da promulgação pelo Presidente do Senado; e depois há nova publicação, após a troca de instrumentos de ratificação. A entrada em vigor, como lei interna, se dá dentro de 45 dias (Lei de Introdução ao Código Civil). O término da validade dos tratados é decidido pelo Executivo, que pode denunciá-lo ou deixar que expire, quando for o caso.2

Cumpre ainda observar que no Brasil não há o controle prévio de constitucionalidade dos tratados, como ocorre em outros países, como, por exemplo, a Espanha. Tal fato pode gerar situações muito desconfortáveis, pois compete ao Supremo Tribunal Federal decidir, em última instância, sobre a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (Constituição Federal de 1988, artigo 102, III, alínea b). Se tal decisão é proferida depois da ratificação final, o tratado é obviamente incompatível com a ordem constitucional, pois não pode prevalecer sobre a Constituição, devendo ser expurgado do ordenamento jurídico e, portanto, denunciado no plano internacional.

Finalmente, vale ressaltar que os tratados internacionais de direitos humanos receberam por parte do constituinte brasileiro um tratamento especial, pois por força do artigo 5º, §2º da Constituição Federal de 1988, os direitos e garantias expressos no texto 

constitucional não excluirão outros decorrentes dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte, o que significa que as normas protetoras de direitos que sejam recepcionadas pelo Estado brasileiro terão status de legislação constitucional.

Destarte, o direito à saúde, consagrado em instrumentos internacionais de que participe o Brasil e que tenham sido ratificados, pode ser invocado internamente por ter suporte jurídico constitucional.

3. DO DIREITO À SAÚDE NO ÂMBITO INTERNACIONAL

3.1 Dos Instrumentos Internacionais de Proteção à Saúde

Quando se fala da proteção internacional à saúde, é interessante observar tanto o lado preventivo da atividade internacional, politicamente implementado, desde as perspectivas global e regional, através de declarações relativas aos direitos sociais; quanto desde a perspectiva do direito internacional humanitário, fundamental para se garantir a assistência médica em casos de conflitos armados, sejam nacionais ou internacionais. Neste trabalho faremos breve comentário sobre essas duas vertentes desenvolvidas internacionalmente.

3.2 A Dimensão Preventiva da Proteção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana

A dimensão preventiva tem por objeto particular a proteção de vítimas potenciais. Tal dimensão preventiva pode ser notada tanto na fase legislativa (trabalhos preparatórios e textos resultantes) como na fase de implementação (interpretação e aplicação) dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Em termos legislativos, a Compilação de Instrumentos Internacionais de Direitos Humanos, preparada pela ONU contém treze instrumentos internacionais voltados à prevenção da discriminação de distintos tipos: três Convenções contra a Tortura (Européia, 1987; Interamericana, 1985; e a das Nações Unidas, 1984) têm

natureza preventiva, assim como a definição de refugiado prevista na Convenção de Genebra de 1951, que traz conceito temporal daquela figura. Também seu Protocolo de 1967 consagra o critério do “fundado temor de ser perseguido” para possibilitar a acolhida do refugiado. No plano global, o direito à saúde está regulamentado no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, artigo 12.

Encontra-se igualmente a dimensão preventiva na fase de implementação dos instrumentos de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Cada vez mais se vem formando uma jurisprudência voltada para a proteção das vítimas potenciais. Em dois casos de 1981 o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas decidiu que “o risco de a suposta vítima ser afetada era mais que uma possibilidade teórica”. No plano regional, no continente americano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em pareceres de 1988/89, sustentou a tese de que é dever dos Estados prestar as “devidas diligências para prevenir violações de direitos humanos protegidos”. Na Europa, a prática da Comissão Européia de Direitos Humanos tem consagrado a noção de vítimas potenciais, ou prospectivas futuras, desde o início da década de 70. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em decisão de 1989, por exemplo, sustentou que era dever do Estado avaliar o risco do demandante ser condenado à morte caso fosse extraditado para os Estados Unidos, aceitando assim a “natureza antecipatória” da potencial violação da Convenção Européia por parte do Reino Unido.

Também se pode perceber a dimensão temporal nas condições de exercício das normas de proteção dos direitos humanos, como nos casos de emergência pública, em que haja ameaça “à vida da nação” (Convenção Européia, art. 15). Conforme a Comissão Européia, o elemento de perigo público iminente do artigo 15 compreende caráter excepcional, além de suas repercussões sobre a nação e ameaça à vida nela organizada.

Em suma, a dimensão preventiva da proteção da pessoa humana, apesar de haver sido insuficientemente considerada no passado, constitui hoje ponto de interesse

especial na defesa dos direitos, consagrada nos instrumentos internacionais e consolidada na jurisprudência dos órgãos internacionais de supervisão dos direitos humanos.

2.4 Da Proteção Jurídica à Saúde no Âmbito Global

São normas relativas ao direito à saúde, em termos de profilaxia, as contidas no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. O artigo 12 determina que “os Estados Partes reconhecem o direito de toda pessoa a desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental”, e descrimina as medidas a serem adotadas para que tal direito se efetive:

diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil;

desenvolvimento das crianças;

melhoria da higiene do trabalho;

melhoria do meio ambiente;

prevenção e tratamento de doenças endêmicas, epidêmicas, profissionais e outras;

luta contra as doenças;

criação de condições para assegurar assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

Dentro do mesmo espírito, o Pacto ressalta que os Estados partes reconhecem às pessoas o direito à alimentação, moradia e vestimentas adequadas, bem como à melhoria das condições de vida (artigo 11). Para tanto, insta os Estados a adotarem medidas contra a fome, mediante cooperação internacional e projetos concretos, como a difusão de princípios de educação nutricional, reforma dos regimes agrários e repartição eqüitativa de recursos alimentícios mundiais.

Para o bom cumprimento dessas normas internacionais, entretanto, não basta seu enunciado em atos internacionais ou mesmo a ratificação dos mesmos por parte 

dos Estados Partes. É absolutamente necessário que as partes contratantes empreendam políticas externas e internas que visem à consecução dos objetivos contidos no Pacto.

Vale ressaltar que tais políticas públicas não prosperam se perpetradas de forma isolada ou desconectadas da realidade social de cada país. Por exemplo, permitir o cultivo de plantas transgênicas, assunto tão atual e polêmico, relacionado diretamente com questões de desenvolvimento tecnológico; ou realizar obras de saneamento básico em centros urbanos, são políticas públicas cuja oportunidade e necessidade se relacionam diretamente tanto com o configurado no Pacto no que concerne à saúde, quanto com a aplicação de regulamentos sanitários internos. Ou seja, não há como fazer a separação em compartimentos estanques entre o que é de interesse sanitário ou simplesmente de interesse econômico e político.

Para garantir seu funcionamento, o próprio instrumento prevê que os Estados deverão apresentar relatórios sobre as medidas que tenham adotado e o progresso realizado. Tais relatórios deverão ser encaminhados ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas que, por sua vez os encaminhará ao Conselho Econômico e Social e às agências especializadas, a fim de que façam, se cabível, as devidas recomendações e tomem decisões. Pode ainda o Conselho Econômico e Social apresentar ao Conselho de Direitos Humanos, para fins de estudo e recomendação de ordem geral, ou para informação, relatórios que digam respeito a violações dos direitos configurados no Pacto.

Quaisquer questões suscitadas nos relatórios que se relacionem com a assistência técnica prestadas pelas agências especializadas podem ensejar o pronunciamento das mesmas para ajudar na solução de problemas. Conforme o próprio Pacto, entretanto, as medidas de ordem internacional se limitam a concluir convenções, adotar recomendações, prestar assistência técnica e organizar, em conjunto com o governo interessado, consultas e estudos, reuniões regionais e técnicas.

No caso do direito à saúde, a agência especializada para realizar tal tarefa, no âmbito das Nações Unidas, é a Organização Mundial da Saúde (OMS), da qual nos ocuparemos adiante.

De forma distinta prevêem os tratados referentes à saúde em caso de conflitos armados. O Direito Internacional Humanitário tem regras específicas contidas nas Convenções de Genebra I, II, III e IV de 12 de agosto de 1949, bem como em seu Protocolo Adicional I.

As Convenções tratam de proteger as unidades sanitárias, os transportes sanitários, o pessoal sanitário, além de regulamentar a missão médica. Assim, as unidades sanitárias, civis ou militares, deverão, tanto quanto possível, ser instaladas distantes dos objetivos militares, compreendendo desde hospitais, depósitos de medicamentos e equipamento médico até unidades móveis, como locais para quarentenas, barracas e veículos. Poderão pertencer tais unidades aos países em conflito, ou a terceiros reconhecidos pelas partes em guerra (em geral as unidades da Cruz Vermelha ou colocadas à disposição por uma organização internacional de natureza humanitária).

A proteção a que têm direito as unidades sanitárias está condicionada à não realização de atos danosos aos inimigos (por exemplo: não se pode abrigar soldados inimigos não feridos ou autorizar a instalação de postos militares). Nenhum equipamento apreendido pelo exército poderá ter outra destinação que não salvar os enfermos, assim como não poderão ser requisitados se estiverem sendo destinados à proteção da população civil. Todos os bens das organizações de assistência serão considerados propriedade privada, só podendo ser requisitados em caso de urgência e conforme a necessidade dos enfermos.

Os transportes sanitários (ambulâncias, aeronaves sanitárias ou navios-hospitais) deverão ser respeitados, protegidos e utilizados exclusivamente para levar feridos e enfermos, devendo ser custodiados pelas Partes em conflito. Caso um desses

meios de transporte caia em mãos inimigas, a guarda dos feridos fica sob sua responsabilidade conforme as Convenções e Protocolos sobre a guerra. Os navios e aeronaves sanitários não podem ser atingidos nem capturados.

O pessoal sanitário (médicos, enfermeiras, padioleiros etc.), seja permanente ou temporário, deverá ser respeitado e protegido, da mesma forma que o pessoal religioso. Caso capturados pelos inimigos, podem ser retidos para prestar assistência a prisioneiros de guerra, não sendo considerados prisioneiros.

Em tempos de guerra, a ética médica deve ser respeitada da mesma forma que em tempos de paz. Conforma o Protocolo Adicional, ninguém poderá ser punido se agiu ou deixou de agir, desde que conforme as regras éticas da profissão. Há que fazer aqui uma referência ao princípio da não discriminação, pois conforme o Protocolo, todas as regras deverão ser aplicadas sem distinção de raça, nacionalidade, sexo, idade, credo ou sob qualquer outro pretexto.

Destarte, concluímos esta seção recordando que, no plano internacional, a prevenção é a palavra de ordem das Nações Unidas, exceto quando as atividades dos profissionais dessa área se destinam a situações de conflito armado, quando têm que atuar para minimizar os sofrimentos da população civil atingida.

3 DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS RELACIONADAS À SAÚDE

3.1 A Organização Mundial da Saúde

A proteção contra as epidemias apareceu no mundo mediterrâneo. As cidades marítimas, as chamadas “portas do Oriente”, foram as primeiras a tentar se defender. Veneza, em constantes relações com o Oriente próximo, estabeleceu alguns “procedimentos de saúde” para evitar o retorno da peste, e em 1403 criou um lazareto de quarentena; em 1467 o exemplo veneziano foi seguido por Gênova; em 1476, Marselha instituiu o regime dos leprosários e em 1527 se tomaram medidas em toda a 

França para evitar a peste, especialmente a quarentena nos navios que chegavam aos portos.

Mas foi a partir do século XIX, com o advento do trem de ferro, da máquina a vapor e com a abertura do Canal de Suez (1869), que o deslocamento de homens e mercadorias começou, efetivamente a servir para propagar enfermidades. As epidemias massivas vindas do Oriente, especialmente o cólera, avançavam rapidamente pela Europa. Fez-se necessário um plano internacional para combatê-las, pois as medidas nacionais já não eram suficientes3.

Assim, em 1851, teve lugar a primeira Conferência Sanitária Internacional, sem nenhum sucesso. Entretanto, em 1892 foi adotada a Convenção Internacional Sanitária, exclusivamente para combater o cólera. Tal convenção foi seguida por outra, que tratava de medidas preventivas contra a peste.

A primeira iniciativa de se fazer uma organização internacional voltada para problemas sanitários foi em 1902 quando se criou o Comitê Sanitário Internacional4, seguido da Oficina Internacional de Higiene Pública, com um secretariado permanente e uma comissão formada por membros dos governos.

Em 1919, com a criação da Liga das Nações, foi a essa delegada a tarefa, dentre outras, de cuidar de estabelecer diretrizes para prevenir e controlar enfermidades. Destarte, a Organização da Saúde da Liga das Nações é instalada em Genebra, atuando paralelamente à Oficina Internacional de Higiene Pública.

No período entre guerras, foram realizadas três conferências internacionais para tratar de problemas sanitários5, e em 1945, por proposta do Brasil e da China, a Conferência das Nações Unidas estabeleceu uma nova e autônoma organização internacional de saúde. Finalmente, em 1946, foi aprovada em Nova Iorque a

Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que entrou em vigor em 07 de abril de 1948. Em 1951 foi adotado o texto do Novo Regulamento Sanitário Internacional.

A partir da década de setenta a OMS modificou sua política passando, devido ao Relatório Executivo, a colaborar, mais que assistir, aos Estados Membros em desenvolvimento, notadamente elaborando diretrizes práticas para os sistemas nacionais de saúde. Em 1981 foi adotada uma Estratégia Global para a Saúde para Todos no Ano 2000, processo iniciado em 1977. Tal estratégia consistia em unir esforços com outras organizações internacionais.

Da OMS participam diversas coletividades, uma vez que sua atuação é descentralizada. A organização compreende duas categorias de membros: os ordinários, que são somente Estados membros associados; e os grupos de territórios, que não têm a responsabilidade de conduzir relações internacionais. As organizações regionais, que são parte integrante da OMS, podem compreender não apenas Estados membros, mas territórios ou grupos de territórios da região. Em 1994 a OMS agrupava 189 Estados membros e dois associados (Porto Rico e Tokelau), sendo que a África do Sul passou a reintegrar a organização naquele ano.

4 Considerações Finais

Podemos afirmar, pelo exposto, que o direito à saúde vem merecendo especial atenção por parte do legislador internacional, sendo que os instrumentos internacionais sobre o tema existem para contemplar a saúde tanto em tempos de paz quanto de guerra. Verificamos até mesmo que hoje são considerados judiciáveis os direitos sociais e econômicos, sendo que compete aos Estados implementá-los e efetivá-los no plano interno. 

5 Referências Bibliográficas

BATISTA, Vanessa Oliveira. União Européia. Livre circulação de Pessoas e Direito de Asilo. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. 246 p.

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FAÚNDEZ LEDESMA, Héctor. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos. San José: IIDH, 1996. 607 p.

COLLIARD, Claud-Albert; DUBOUIS, Louis. Instituions Internationales. 10 ed. Paris: Précis-Dalloz, 1995. 532 p.

SWINARSKI, Christophe. Introdução ao Direito Internacional Humanitário. Brasília: CICV/IIDH, 1996. 74 p.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos. V.I. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. 486 p.

________. Princípios do Direito Internacional Contemporâneo. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. 268 p.

________. Direito das Organizações Internacionais. Brasília: Escopo, 1990. 521 p.

________. A Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Nacional e Internacional: perspectivas brasileiras. Brasília: Friedrich Naumann Stiftung, 1992. 357 p.

________. As Três Vertentes da Proteção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana (Direitos Humanos, Direito Humanitário, Direito dos Refugiados). San José, Costa Rica / Brasília: CICV/IIDH/ACNUR, 1996. 289 p.

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