Posse irregular de animais silvestres

A lei e suas consequências, nem sempre tão benéficas

28/11/2014 às 18:19
Leia nesta página:

A posse de animais silvestres deve sempre ser considerada crime? Há um contexto de situações a ser analisado, antes do juiz determinar a apreensão dos animais.


      Há algum tempo atrás fui procurada por uma amiga que adotou uma criança excepcional. Um dia, pousou no quintal dela um papagaio. Percebia-se que a ave era egressa de cativeiro, pois não se espantava com a presença humana. Assim alimentação e carinho foram direcionados ao pássaro, que se apegou à criança. Foi, de imediato providenciado um puleiro coberto, porém aberto, com todas as comodidades: bacia para banho, cumbucas de comida e bebedouro e colocado num alpendre nos fundos da casa, de onde ele podia voar para qualquer lugar que quisesse. E o papagaio foi ficando por ali, preparou um belo ninho e desse relacionamento segui-se um desenvolvimento sem igual daquela criança limitada, calada,introspectiva, que não falava. Ela tornou-se sociável e perguntava frequentemente onde estava o “Zé Carioca”, apelido dado ao papagaio pelos membros da família. A psiquiatra que a atende na APAE, achou fantástica o que a companhia do papagaio estava fazendo no progresso psicomotor do moleque. Até sua fala havia melhorado! Sem contar os passos, frouxos até então, que haviam se firmado, para acompanhar o papagaio.
     Um dia, no entanto, minha amiga foi surpreendida com uma citação  de ação do Ibama, na qual era acusada de posse regular de animal silvestre. E teve o papagaio, que então era a alegria do filho excepcional, confiscado pelos fiscais do Ibama, a mando judicial. A criança voltou a ser introspectiva, já não falava, voltou-se para dentro de si e chorava, chorava muito!
     Foi dada entrada então com um processo baseado no art. 1º da Lei 5.197/1967 que reza:
Art. 1º- Os animais silvestres de quaisquer espécies, em qualquer fase de seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.”
Também foi usado o art. 25 da Lei 9605/1998 que traz em seu bojo:
“Verificada a infração, serão apreendidos os produtos e os instrumentos, lavrando-se os respectivos autos”.
     A arguição foi a de que a aplicação desses dois artigos, ao pé da Lei, equivaleria à negação da sua finalidade, que não é decorrência do princípio da legalidade, mas uma inerência dele. A legislação deve ter por objetivo a busca efetiva da proteção dos animais. Assim, seria desarrazoado determinar a apreensão dos animais para uma duvidosa reintegração ao seu habitat (do qual notava-se que estava distante há anos e teria uma reintrodução difícil e uma sobrevivência não garantida) e seria difícil identificar qualquer vantagem em transferir a posse para um órgão da Administração Pública. Além disso, no âmbito criminal, o art.28, §2º da Lei 9605/1998 prevê expressamente que:
“No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena”.
   Esse foi um precedente aberto pela Segunda Turma, REsp 1.084.347-RS,publicado no DJE de 30/9/2010.Também o REsp 1.425.943-RN,que teve por relator o Min. Herman Benjamin, julgado em 2/9/2014,e que seguiu a mesma linha.
     O juiz do caso julgou que:
     “O particular que, por mais de vinte anos, manteve adequadamente, sem indício de maus-tratos, aves silvestres em ambiente doméstico pode permanecer na posse dos animais.”
     E com isso, o Zé Carioca pode continuar com a família, fazendo a alegria daquele menino limítrofe. Assim, ele continua todo feliz em seu puleiro, tendo a companhia de seu amigo,em cujo ombro passa a maior parte do tempo. E mais recentemente a família foi a uma loja de pássaros e comprou uma fêmea para o papagaio. No momento eles curtem os dois filhotes que nasceram em liberdade e que, para desespero de dona Elisa, insistem em bicar todos os mamões e goiabas e tomates que nascem em no pomar e na horta carinhosamente mantidos em seu quintal...
Às vezes, a lei não tem que ser rígida, levada ao pé da letra. Deve contemplar um contexto de situações e decidir o que é melhor para o bem de todos os envolvidos. Foi isso que foi feito nesse caso.
 

Sobre a autora
Maria Luísa Duarte Simões

Formada em jornalismo pela Universidade Metodista do Estado de São Paulo, onde também cursei Publicidade e Propaganda e Teologia. Mais tarde, depois de ganhar 3 Prêmios Esso, 1 Prêmio Telesp, 1 Prêmio Remington e 1 Prêmio Status de contos, resolvi me dedicar à carreira jurídica. Para tanto fiz a Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, onde me formei em 1985. Fiz pós graduação em Direito Penal na Faculdade do Largo São Francisco, sob a supervisão do prof. Dr. Miguel Reale Júnior. Hoje dedico-me a criticar as coisas erradas, elogiar as certas e ironizar aquelas que se travestem de corretas, mesmo sendo corruptas. Sou sua vigilante diária das traquinagens governamentais e da sociedade em geral. Sou comprometida com a verdade, o que muitas vezes vai me fazer dizer aquilo que você não que ouvir.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

A lei, embora feita para ser seguida, deve ser interpretada dentro do contexto geral apresentado. É disso que trata esse artigo: de se levar em consideração condições especiais para devolver um animal silvestre confiscado de uma criança limítrofe.

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