Judicialização da saúde e ativismo judicial: atuação positiva do estado-juiz na concretização das garantias fundamentais

05/12/2014 às 11:34
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O presente artigo dispõe-se a analisar sobre algumas bases para compreensão do que venha a ser o fenômeno denominado Judicialização da Saúde ressaltando ainda, a posição ativista do Poder Judiciário nesse contexto.

Com o reconhecimento em Magna Carta de que todo brasileiro tem acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, houve a positivação do Direito à saúde. A Constituição de 1988 trouxe essa normatividade como também seus instrumentos para pleiteá-la, tais como o Mandado de Segurando e Ação Civil Pública.

Outro fundamental acontecimento ocorreu com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), como já mencionado, foi de fundamental importância para a consagração do direito à saúde no ordenamento pátrio, bem como na consubstanciação do dever do Estado em prestá-la. Expressamente dito no art. 2º da lei nº 8.080: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício[1]”.

A partir de então, se inaugurou no Brasil a fase de prestação dos serviços sanitários. O legislador constituinte ao disciplinar no art. 196 e seguintes da CF/88, que o acesso à saúde fundamenta-se nos princípios da universidade, da equidade e da integralidade certamente almejava um sistema que funcionasse de forma horizontal[2].

Contudo o SUS vislumbrado constitucionalmente ainda está longe de ser realidade social. Sobre essa assertiva, a doutrora e Defensora Pública Angelita Marder[3] aduz que há um descompasso entre a teoria formal e a prática (material), pois a proteção de alguns direitos fundamentais ainda é privilégio de uma minoritária parcela da população. Como consequência, o cidadão necessitado, recorre às vias judiciais. Esse é o contexto da judicialização no Brasil.

Explica Barroso que judicialização significa que questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas pelos órgãos do Poder Judiciário, e não pelas autoridades originalmente competentes. Sendo assim, ocorre a transferência de poder para os juízes e tribunais e consequentemente, há uma significativa mudança no modo de participação da sociedade[4].

Atualmente, uma das maiores problemáticas enfrentadas pelo Sistema Único de Saúde é a intervenção do Judiciário no fornecimento de medicamentos ou tratamento médicos à população sem observância dos limites traçados pelas políticas públicas desenvolvidas pelo Ministério da Saúde. Esse é o chamado fenômeno que a doutrina denomina “Judicialização do SUS”[5].

Como causa de tal fenômeno, podemos apontar como já mencionado, a positivação do direito à saúde pela Constituição de 1988. Barroso aduz que houve uma redemocratização no país que culminou na atual Lei Maior, e consequentemente, concedeu ao Judiciário um poder político capaz de concretizar as leis[6].

Ademais, o movimento de redemocratização também reavivou o sentimento de cidadania, dando maior consciência de direitos a diversos segmentos da população, os quais passaram a buscar a proteção de seus direitos[7].

Nesse sentido, redemocratização diz respeito simultaneamente ao modo de atuação da sociedade, ao passo que, além de conhecer seus direitos possui meios normativos para pleiteá-lo.

Também cita Barroso[8], como segunda causa do fenômeno da judicialização o constitucionalismo mais abrangente. A CF/88 ao disciplinar minuciosamente os direitos nela inseridos, transforma-os essa normas em potencial à pretensão jurídica, ou seja, podem ser convertidos em ações judiciais.

Nesse sentido, conclui-se que o processo de judicialização é resultado das constituições analíticas, ou seja, a constituição que descreve minuciosamente os direitos nela abordados, dando então amparo legal para pretensão judicial de quem se sentir lesado em seu direito.

Por fim, Barroso, cita como terceira causa da judicialização o sistema brasileiro de constitucionalidade. Considerado hibrido, é o mais abrangente do mundo. Sob esse aspecto, pode o juiz ou Tribunal deixar de aplicar a lei no caso concreto (Controle Difuso) ou levar controvérsias diretamente ao Supremo (Controle Concentrado)[9].

Nesse prisma, pode tanto o juiz de primeiro grau, dos Tribunais Colegiados com os dos Tribunais Superiores, aplicarem ou não determinada norma, sob o argumento da mesma não possuir afinidade com o Magno Texto. Consequentemente, o Judiciário, juntamente com a sociedade civil, por meio de suas ações individuais e coletivas, adquire maior intervenção de outros Poderes.

Sobre essa atuação do judiciário cumpre esclarecer o que se diz hoje por ativismo judicial. Retomando ao entendimento do jurista Luis Roberto Barroso, o ativismo judicial é a atitude proativa e expansiva de interpretação da Constituição a fim de expandir sua acepção e alcance. De tal maneira. Potencializa o alcance das normas[10]. Está associado à participação mais ampla e intensa do Judiciário. Por conseguinte, preceitua:

A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas[11].

Pode-se vislumbrar no atual contexto brasileiro que tem sido interpretados pelos Tribunais os dis.s constitucionais como normas de aplicabilidade imediata e eficácia plena, não meramente pragmáticas, como já mencionado anteriormente. Essa posição do Judiciário possibilita o acesso aos cidadãos por meio dos remédios constitucionais, com o objetivo de proteção do direito à saúde, tornando-o em direito público oponível ao Estado. Sobre os instrumentos judiciais, será mais bem visto em momento oportuno.

Ressalte-se, por oportuno, que judicialização e o ativismo são fenômenos semelhantes e presentes no atual âmbito jurídico brasileiro, porém são distintos. A judicialização decorre da forma que a Constituição disciplina seus preceitos analiticamente e do sistema de controles de constitucionalidade difuso e concentrado adotados no Brasil[12], conforme já mencionado.

De tal forma, doutrina Barroso que a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte, pois traçou analiticamente a Constituição, de tal forma que possibilita discussão, por meio de ações judiciais, em sentido político e moral. Por sua vez, o ativismo encontra-se na interpretação principiológica do Texto Legal, a fim de conferir-lhe plena eficácia e aplicabilidade.

Ao magistrado, na qualidade de guardião da aplicabilidade dos preceitos constitucionais, cabe extrair da norma constitucional sua máxima eficácia jurídica observando os limites que lhes são impostos. Não é demasiado citar que, conforme depreende o art. 102 da Constituição Federal[13] compete ao Supremo Tribunal Federal, a função precipuamente da guarda da Constituição. Sobre o tema já sólido o entendimento jurisprudencial, conforme vê-se abaixo:

[...] A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos. Ao STF incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada.” (ADI 293-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 6-6-1990, Plenário, DJ de 16-4-1993.)

"A força normativa da CR e o monopólio da última palavra, pelo STF, em matéria de interpretação constitucional. O exercício da jurisdição constitucional – que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição – põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do STF, pois, no processo de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder. No poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação constitucional, a significar, portanto, que ‘A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la’. Doutrina. Precedentes. A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo STF – a quem se atribuiu a função eminente de ‘guarda da Constituição’ (CF, art. 102, caput) – assume papel de essencial importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político-jurídico vigente em nosso País confere, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental." (ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-8-2005, Plenário, DJE de 20-8-2010.) No mesmo sentido: AI 733.387, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 16-12-2008, Segunda Turma, DJE de 1º-2-2013; RE 132.747, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-1992, Plenário, DJ de 7-12-1995. Vide:HC 91.361, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-9-2008, Segunda Turma,DJE de 6-2-2009; RE 227.001-ED, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 18-9-2007, Segunda Turma, DJ de 5-10-2007[14].

Cabe ainda elucidar que o Estado-Juiz é, segundo Sarlet[15], o Poder Judiciário no exercício de suas funções e competências agindo através de seu agente (político): o magistrado. Logo, trata-se da atuação do próprio Estado soberano na plena concretização dos objetivos constitucionais e afirmação dos direitos fundamentais na sua dimensão individual e social, esta última, expressão máxima dos objetivos constitucionais.

Somente neste sentido, o magistrado, ao expressar e exercer a Jurisdição se confunde com o Poder soberano do Estado. Vislumbra-se, nesse sentido, uma dimensão política do Judiciário, haja vista ser indispensável ao Estado-Juiz. Como também, afirma Sartet[16], que tal dimensão pode ser ampliada a medida em que se reduziu a “legitimidade representativa” dos agentes políticos propriamente ditos. Sob esse prisma, o termo judicialização da política torna-se preconceituoso, pois o Judiciário também participa da política em seu sentido teórico.

Sarlet aponta ainda, que o Judiciário vem desempenhando papel importante na concretização do direito à saúde, haja vista a ocorrência do déficit de execução das políticas públicas. Com efeito, o Judiciário efetua a jurisdição constitucional na defesa dos direitos e garantias fundamentais ao reconhecer a aplicação absoluta das políticas públicas prestacionais.

Sob essa perspectiva, vê-se a figura do juiz social e ativista, que é aquele que incorpora em seu juízo a nova hermenêutica constitucional, inspirado nos princípios da universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos fundamentais e supremacia constitucional. Evidenciando, por sua vez, o novo caráter do judiciário brasileiro, mais ativo, com intenção de efetivar os direitos fundamentais.

Entretanto, essa atuação se feita de maneira excessiva pode incorrer na chamada politização da justiça. Para Barroso, a Constituição é, na realidade, um documento que transforma a Política planejada pelo poder constituinte em Direito através do poder constituído. Nesse diapasão, ocorre a interpretação constitucional, nada obstante, pois constitui uma tarefa jurídica, que deve ocorrer, inclusive, para evitar decisões injustas ou danosas aos direitos fundamentais.

Mas o risco da politização da justiça não pode ser eliminado. As decisões somente podem agir dentro das possibilidades e dos limites abertos pelo ordenamento jurídico[17].  Logo, o risco ocorre quando os juízes em suas sentenças excedam os limites que podem romper o equilíbrio entre os órgãos do poder.

Sendo assim, depreende-se que a atuação do Judiciário necessita de limites, sob o risco de correr, como cita Barroso em seu trabalho, judicialização excessiva, pois a forte participação do Judiciário na implementação de políticas públicas não o torna imune de críticas diversas, sobretudo sobre o atuação invasiva nos demais poderes.

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[1]  BRASIL. Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção,  proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/lei8080>. Acesso em 18 set. 2013.

[2] CORDEIRO, Maria Leiliane Xavier. Direito à saúde e a atuação do poder judiciário: breves considerações. In: NEIVA, Juliana Sahione. e GUEDES, Jefferson Carús (Coord.).Publicações da Escola da AGU: temas de direito à saúde. Brasília: Advocacia Geral da União, 2010. p. 88.

[3] MADERS, Angelita Maria. Ang: O Direito à Saúde no Estado Democrático de Direito Brasileiro. Revista do Direito UNISC. Santa Cruz do Sul, n. 33. jan-jun 2010. p. 10.

[4] BARROSO, Luís Roberto.  Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática Disponível em <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em 20 out. 2013. p.3.

[5] CORDEIRO, Maria Leiliane Xavier. Direito à saúde e a atuação do poder judiciário: breves considerações. In: NEIVA, Juliana Sahione. e GUEDES, Jefferson Carús (Coord.). Publicações da Escola da AGU: temas de direito à saúde. Brasília: Advocacia Geral da União, 2010.. p. 88.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] BARROSO, op. cit. p. 3-4.

[9] BARROSO, Luís Roberto.  Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática Disponível em <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em 20 out. 2013. p. 4.

[10] Ibid. p. 6.

[11] Ibid. p. 22.

[12] BARROSO, Luís Roberto.  Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática Disponível em <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em 20 out. 2013; p. 17.

[13]  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em 18 out. 2013.

[14]  BRASIL, Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=1079> Acesso em 10 de nov. de 2013.

[15] SARLET Ingo Wolfgang; MOLINARO, Carlos Alberto;. Democracia, separação de poderes, eficácia e efetividade do direito à saúde no judiciário brasileiro: observatório do direito à saúde. Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2010/2011p. 63.

[16] SARLET; MOLINARO;op. cit.. p..28 e 64.

[17] BARROSO, Luís Roberto.  Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática Disponível em <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf> Acesso em 20 out. 2013. p. 18.

Sobre a autora
Pâmela Vidal

Advogada, eterna estudante, ativista social e redatora de boletins informativos mensais.<br>Formada pela Faculdade Ideal, em Belém do Pará. <br>Hoje exercendo advocacia e consultoria no estado do Maranhão e no Pará. <br>Áreas de interesse: direito civil, trabalhista e previdenciário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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