Democracia brasileira, eleições e dominação

Leia nesta página:

Este artigo visa chamar atenção, à luz de uma visão foucaultiana, para a dominação do eleitor brasileiro e para as perspectivas da democracia brasileira num cenário de prevalência de políticas assistenciais, tal como o Programa Bolsa Família.

Democracia brasileira, eleições e dominação.

No Brasil, a prática eleitoral tem indicado, nos últimos anos, que cada vez mais o chamado voto de opinião está escasso. Em contrapartida, é significativo o aumento do voto de permuta, aquele por meio do qual os eleitores maliciosamente vendem seu poder de decisão para políticos e partidos habilidosos.

O resultado de tal prática, por óbvio, só poderia ser desastroso: carência de políticas públicas direcionadas à educação de qualidade, saúde, assistência social, previdência, moradia, cultura, malversação orçamentária, fisiologismo político e desvio de verbas públicas, dentre outras mazelas que infelizmente dominam o cenário político brasileiro desde o período colonial.

Mas essa postura do eleitor que “vende” seu voto faz lembrar algo que Michel Foucault já alertava ao analisar o poder político na coletividade: a ideia do sujeito como objeto de manipulação ideológica, descrito em sua obra Microfísica do poder (2007).

De fato, tal tipo de cidadão determinado for forças superiores, que se comporta como mero objeto de mercadoria, representa importante perigo para a coletividade, mormente num cenário de crescente individualismo decorrente do capitalismo consumista do Século XXI.

O problema central, entretanto, reside em saber até que ponto o modelo de democracia até aqui praticado, amparado no aspecto meramente procedimental e na alienação do eleitor dominado, ainda gozará de aceitação no Brasil.

Para ilustrar, perceba-se que, no ano de 2013, quando da realização do evento Copa das Confederações pela FIFA, houve uma enorme massa de manifestantes, nas diversas capitais do país, protestando pela baixa qualidade de vida, todos revoltados com as péssimas condições na área da saúde, da educação, dos transportes públicos e dos serviços públicos em geral.

Naquele momento, criou-se um certo sentimento geral de necessidade de mudança de rumos não só nos mecanismos eleitorais, como na economia de forma geral e no tratamento mais republicano da coisa pública. Demonstrou-se, ainda, se tratar de manifestação democrática até então atípica no Brasil, sinalizando que o cidadão brasileiro estava insatisfeito com diversas práticas governamentais.

Pois bem, passado um ano dessas manifestações populares, entrou em cena as eleições de abrangência nacional, para a escolha de novo presidente, de governadores estaduais, de deputados e senadores, e com elas veio a impressão de que o povo brasileiro iria canalizar positivamente toda aquela onda de insatisfação, participando do processo democrático em busca da plena cidadania.

Eis então que, ao final do processo eleitoral, são divulgados os dados estatísticos. O mais decepcionante deles: cerca de 30.137.479 (trinta milhões, cento e trinta e sete mil, quatrocentos e setenta e nove) eleitores sequer compareceram às urnas, ou seja, praticamente 21% (vinte e um por cento) do eleitorado nacional.

Outros 1,71% dos votantes optaram pelo voto em branco, e mais 4,63% preferiram o voto nulo. Resultado disso, a candidata escolhida para ocupar, pelo segundo mandato, o cargo de Presidente da República foi votada por algo em torno de 38% (trinta e oito por cento) dos eleitores aptos a participar das eleições, o que, em termos de efetivação da democracia, representa um grande fracasso.

Melhor atenção ainda, entretanto, merece o fato de que, dentre os mais de cinquenta e quatro milhões que votaram pela reeleição presidencial, muitos são beneficiários do maior programa brasileiro de transferência direta de renda, o programa Bolsa Família, que ampara cerca de cinquenta milhões de pessoas.

Ora, é inegável que o programa Bolsa Família possui forte destaque num comparativo com as demais políticas públicas oferecidas ao povo brasileiro. Então, se de um lado a ausência de políticas públicas tem o condão de tornar cidadãos mais passivos e alienados, do outro também há o risco de gerar uma forte dependência política entre o governante e aqueles assistidos pelo Estado.

Voltando às estatísticas eleitorais, dificilmente se pode imaginar que, dentre os mais de trinta e sete milhões de eleitores ausentes e optantes por voto nulo ou em branco, um número expressivo seja beneficiário do programa Bolsa Família. Isso implica, portanto, que os assistidos de tal política pública estão concentrados entre aqueles que votaram, no segundo turno eleitoral, em algum dos dois candidatos à presidência.

Com efeito, se num universo de 105.542.273 (cento e cinco milhões, quinhentos e quarenta e dois mil e duzentos e setenta e três) de votos válidos, há possibilidade de cerca de cinquenta milhões serem de beneficiários do programa Bolsa Família, então está comprovado que a influência de tal política pública no resultado eleitoral é bem significativa.

E essa influência tende a ser mais efetiva na medida em que alguns dados apontam para a ineficiência de políticas públicas de importante contrapeso, como, por exemplo, as da área de educação, visto que 67.791.257 (sessenta e sete milhões, setecentos e noventa e um mil, duzentos e cinquenta e sete) eleitores sequer possuem o ensino fundamental completo.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

No entanto, mesmo que o raio-X das últimas eleições demonstre que o peso da democracia brasileira está diretamente concentrado nas mãos de eleitores de baixo grau de instrução e totalmente dependentes do programa Bolsa Família, ou seja, dependentes da maior política assistencial do Brasil atual, a quantidade de eleitores desinteressados é bastante expressiva, de forma que a conclusão inescapável, segundo uma visão foucaultiana, é a de que praticamente todos estão dominados pela rede de poder.

O desafio daqui em diante, no entanto, é saber se o perfil do eleitorado, independentemente do governante ou partido detentor do poder, é capaz de mudar a ponto de alcançar a representatividade necessária à efetiva participação política, buscando a plena cidadania e conquistando a verdadeira dignidade para todos.  

Sobre o autor
Marcelino José Alves Ferreira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos