A publicização do direito privado e a privatização do direito público

23/12/2014 às 11:58
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O presente trabalho trará um abordagem acerca dos fenômenos da publicização do direito público bem como da privatização do direito privado, suas origens e seus efeitos no ordenamento jurídico. Para tanto, far-se-á, a título elucidativo, uma retrospectiva

Resumo:O presente trabalho trará um abordagem acerca dos fenômenos da publicização do direito público bem como da privatização do direito privado, suas origens e seus efeitos no ordenamento jurídico. Para tanto, far-se-á, a título elucidativo, uma retrospectiva histórica da dicotomia entre direito público e direito privado, partindo-se do seu nascedouro, qual seja, o Direito Romano.


          Palavras-Chave: Direito público. Direito privado. Constituição. Publicização. Privatização.


Introdução:


 A divisão do direito em público e privado remonta ao Direito Romano, onde o direito público era aquele concernente ao estado dos negócios romanos, enquanto que o direito privado correspondia à disciplina dos interesses dos particulares.
 Todavia, a doutrina sempre divergiu quanto aos fundamentos dessa divisão, sendo inclusive muito contestada a possibilidade de divisão do direito em tais termos, ante a complexidade e comutatividade entre esses dois ramos do direito.
 Dessa forma, hodiernamente, verifica-se a tendência de publicização do direito privado, com a crescente ingerência do Estado naquelas matérias historicamente reguladas pelo direito privado. Em igual sentido, sofre o direito público forte influência do direito privado, num fenômeno que pode ser interpretado como privatização do direito público, onde cada vez mais as normas antes aplicadas somente entre particulares são estendidas ao Estado, transformando substancialmente as relações entre Estado e particulares.
 A análise de tais fenômenos, que tiveram suas conseqüências acentuadas com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que redimensionou o ordenamento jurídico pátrio, será objeto do presente trabalho, devendo-se primeiramente analisar as razões históricas da dicotomia entre direito público e privado, para a sua posterior individualização.


1. A dicotomia entre direito público e direito privado:


 Foi no Direito Romano que começou a distinguir-se direito público de direito privado, considerando-se a natureza dos valores tutelados como premissa para esta divisão. Conforme o entendimento daquela época, o direito público é aquele que diz respeito ao estado ou coisa romana, enquanto o direito privado trata tão somente dos interesses dos particulares.
 Como podemos perceber, nessa lógica, seria direito público tudo aquilo que versasse sobre a proteção dos interesses da coletividade, abstratamente considerada e, quando o assunto interessasse somente a particulares, estar-se-ia configurado o direito privado.
 A utilização desse critério para a separação do direito demonstrou-se falho, sendo alvo de críticas pela doutrina, que alega que nem sempre é possível se verificar qual o interesse predominante, pois há situações em que Estado e particular compartilham do mesmo interesse sobre um determinado caso, além disso, algumas regras que são manifestadamente do interesse de particulares sofre regulamentação do Estado, como por exemplo, aquelas disciplinadoras do direito de família.
 Vários foram os doutrinadores que se ocuparam de reformular os fundamentos da divisão  do direito entre direito público e privado, em face das incongruências apresentadas pela fundamentação encontrada no Direito Romano. Todavia, inobstante a existência de gramdes teses acerca do assunto, todas convergem em um determinado ponto, qual seja, a idéia de existir um interesse predominante. Por conseguinte, será de direito público a regra que tem em vista o interesse preponderante do Estado, ainda que vise também ao interesse particular , será de direito privado a que visar , predominantemente, ao interesse particular.
 Outras tentativas feitas para redefinir o critério da divisão do direito detiveram-se no conteúdo patrimonial, sendo que onde houvesse interesse patrimonial, estaria o direito privado, do contrario, inexistindo interesse patrimonial, estaria o direito público. Esse critério é equivocado, pois desconsidera que o Estado também atua, em determinados casos, com interesse patrimonial, como no caso da arrecadação de tributos.
 Embora  a dicotomia direito público e direito privado remonte ao Direito Romano, percebe-se que os fundamentos desta divisão nunca foram totalmente pacificados, encontrando-se na doutrina as mais diversas tentativas de fundamentação, cada uma com méritos e deméritos.
 Acontece que hodiernamente a distinção entre direito público e direito privado é exercício cada vez mais difícil, quiçá impraticável, pois é inconcebível a idéia de antagonismo entre estes ramos do direito, que cada vez mais compartilham entre si seus institutos, com as devidas adaptações a suas particularidades, culminando nos fenômenos da publicização do direito privado e privatização do direito público.


2. Aspectos da publicização do direito privado:


 Com o advento da Constituição Federal de 1988, que lançou as diretrizes para a implantação de um Estado Democrático de Direito, verificou-se o crescimento do fenômeno da publicização do direito privado.
 É certo que até mesmo antes da Carta de 1988 já se verificava uma crescente ascendência do direito público sobre os ramos considerados de direito privado, todavia, ainda era latente no direito positivo o individualismo, a liberdade ilimitada de contratar entre os particulares, assim como outras normas que ressaltavam a idéia do Estado Liberal, onde a vontade dos particulares era quase que ilimitada.
 Por publicização do direito privado compreende-se o fenômeno onde o Estado regula interesses particulares, disciplinando limites e regras para o exercício de direito dos particulares, como forma de garantir um interesse maior, qual seja, a segurança jurídica e a paz social. Nesse fenômeno, as normas constitucional ganham especial relevo, pois servem de regras gerais norteadoras da legislação infraconstitucional, estipulando limites ao particular, bem como resguardando interesses considerados fundamentais ao cidadão e a coletividade.
 Nesse sentido, destaca-se o magistério de ROBERTO WAGNER MARQUESI

Mercê desse fenômeno, ganham força o dirigismo contratual, a função social do contrato e a funcionalização do direito de propriedade. As titularidades jurídicas já não são vistas apenas como bens de interesse individual, porém como detentora de uma potencialidade social.

 A visão social das relações privadas impõe uma nova postura do poder público, devendo o Estado ser garantidor do equilíbrio e da igualdade formal e material na ordem privada. A constitucionalização do direito privado é o instrumento hábil à ensejar esse equilíbrio; decorrência disto, temos que a Constituição Federal de 1988 se deteve em temas antes não regulamentados pelas constituições anteriores, como contrato, propriedade, família e empresa.
 O Direito Civil, que historicamente ocupou a posição central no direito privado, vem sofrendo uma desregulamentação, fruto da crescente interferência do Estado no direito privado, caracterizado pela criação dos chamados micro sistemas jurídicos, onde uma determinada matéria, ainda que regulada em linhas gerais pelo Código Civil, passa a ser disciplinada em separado, pormenorizada por uma legislação específica. É o caso do direito do consumidor, do inquilinato, do divórcio, da família etc.
 O fenômeno da publicização do direito público é corolário do Estado Democrático de Direito, não podendo o Estado declinar da sua função constitucionalmente delimitada, principalmente do objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, inc. I). Logo, cada vez mais o Estado interferirá na esfera privada, regulamentando-a, estipulando limites ao agir do particular.
 Ressalta-se que a publicização do direito privado não deve ser interpretada como a volta do autoritarismo estatal, pois a aludida interferência não retira do particular a sua liberdade de escolha, apenas a limita, evitando a disparidade nas relações entre particulares, bem como o uso abusivo dos direito a eles garantidos.

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3. A privatização do direito público:


 Conforme tratado anteriormente, contemporaneamente, não se vislumbra antagonismo entre o direito público e o direito privado, pelo contrário, embora ainda mantida a distinção, ambos se complementar, comutam de institutos jurídicos, invadem a esfera de atuação outrora pertencente somente a um dos ramos do direito.
 Dessa forma, assim como o direito privado sofre um movimento de publicização, o direito público também está sendo alcançado por uma movimento de privatização. Novamente, destaca-se a relevância do Estado ante a nova ordem constitucional.
 O Estado vem expandindo a sua área de atuação, tomando para si as atividades antes deixadas à discrição do particular, muitas vezes atuando em atividades antes eminentemente da alçada de particulares.
 Não se pode esquecer que o Estado contrata com particulares, executa atividade econômica, atua no mercado financeiro, é prestador de serviços. Todas essas atividades são reguladas pela lei, em obediência ao principio constitucional da legalidade, norteadora da atividade da Administração Pública. No entanto, o Estado toma para si regras de direito privado, aplicando-as as suas particularidades.
 Significa dizer que o direito público sofre a influência das normas de direito privado para regular a sua atividade, seja nas suas relações internas, assim como nas suas relações externas.
 O contrato administrativo, os regimes jurídicos dos servidores públicos, as previdências fechadas, as concessões de serviços públicos, a realização de leilões e licitações, todos são exemplos de atividades privativas do Estado, mas que possuem normas do direito privado.
 Por fim, a responsabilidade do Estado pelos danos causados no exercício de suas atividades, conforme regulada pela Constituição Federal de 1988 (art. 37, §6º), é outro viés da crescente privatização do direito público, pois submete o Estado as mesmas normas dos particulares, obrigando-o a indenizar aqueles que  forem prejudicados por seus atos, ensejando uma nova realidade, pautada na responsabilidade social do Estado.


Considerações Finais:


 A clássica divisão do direito em direito público e direito privado encontra-se mitigada. Não é mais possível vislumbrar esses dois ramos de forma estanque, como se pertencesse a mundos distintos, incomunicáveis entre si.
 O correto é realizar a sua devida interrelação, naqueles pontos onde há efetivamente intersecção, permeabilidade entre seus institutos, ou até mesmo onde um sobrepõe-se ao outro. Nesse contexto, é inegável que a Constituição Federal de 1988 veio para exercer seu papel balizador dos fenômenos de publicização do direito privado e, em menor intensidade, de privatização do direito público.
 Com advento da Carta de 1988, aprofundou-se as relações entre o Estado e a sociedade , delimitou-se as competências e prerrogativas de cada um deles, estabeleceu-se a idéia de cooperação, de atuação em conjunto, objetivando a consecução dos objetivos fundamentais da República.
 Por oportuno, cumpre ressaltar que a publicização do direito privado não é fenômeno passageiro, pelo contrário, veio ao encontro dos ditames do Estado Democrático de Direito, servindo como instrumento de regulamentação das relações antes relegadas aos particulares, sendo incabível hodiernamente deixar completamente aos jugo dos particulares assuntos que, embora não interessem diretamente ao Estado, tem suas repercussões na coletividade como um todo.
 No mesmo sentido, a privatização do direito público veio regular a discricionariedade do Estado, impondo limites no seu agir, exigindo do administrador público maior responsabilidade em seus atos, que agora são analisados por critérios objetivos, mensuráveis, tal como na iniciativa privada.
 Por derradeiro, a divisão entre direito público e direito privado continuará a existir, sendo útil ao campo didático, bem como prática a pesquisa e sistematização do direito enquanto ciência, não podendo o operador do direito desconsiderar as relações entre esses ramos, condição essencial à devida compreensão do direito.


Referências:

CARDOSO, Rodrigo Eduardo. Noção breviária sobre a Publicização do Direito Privado. On line, ht://www.periodicoedireito.com.br/index2.php?option=com_content&task=view&id. Acesso em 07/11/2009.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001

MARQUESI, Roberto Wagner. Fronteiras entre o direito público e o direito privado. On line, HTTP//jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7788. Acesso em 18/11/2009.

MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
PESSOA, Maiana Alves. O Direito Civil Constitucional. On line,

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