CRIMES PRATICADOS PELO ADVOGADO CONTRA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

02/02/2015 às 13:30
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O ARTIGO DISCUTE ALGUNS CRIMES QUE PODEM SER PRATICADOS PELO ADVOGADO CONTRA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

CRIMES PRATICADOS PELO ADVOGADO CONTRA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

ROGÉRIO TADEU ROMANO

Procurador Regional da República aposentado

I –PATROCÍNIO  INFIEL

1.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS E OBJETIVIDADE JURÍDICA

O artigo 355 do Código Penal prescreve que é crime:

 Trair, na qualidade de advogado ou procurador, o dever profissional, prejudicando interesse, cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado:

Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa.

Patrocínio simultâneo ou tergiversação

Parágrafo único - Incorre na pena deste artigo o advogado ou procurador judicial que defende na mesma causa, simultânea ou sucessivamente, partes contrárias.

 O Código Imperial não tratou da matéria, mas o Código de 1890 o previa conjuntamente com a prevaricação(artigo 209),seguindo tradição do direito antigo, que chegou ao Código Italiano(artigo 380).

O delito é tratado no Código de 1940 como  crime contra a administração  da justiça.

Assim a norma tutela diretamente o interesse público ao normal funcionamento da atividade judiciária, mais que o interesse privado da parte traída.

Daí Paulo José da Costa Jr.(Comentários ao código penal, volume III, 1989, pág. 599)  trazer a lição de Lauretta Durigato, no sentido de que a ratio da norma acha-se na necessidade de garantir, para que haja um regular funcionamento da administração de justiça, um mínimo de correção e de lealdade por parte do patrocinador, quando chamado a colaborar com os órgãos judiciais.

É sabido que os advogados e procuradores desempenham, em suas atividades profissionais, em juízo, função pública, constituindo com juízes e membros do Ministério Público, elementos indispensáveis à Administração da Justiça. Como bem lembrou Júlio Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, volume III, 22ª edição, pág. 444), o advogado e o procurador judicial não são funcionários públicos, mas exercem um serviço de necessidade pública e a conduta lesa a administração da justiça quando traem o interesse privado em juízo e violam o dever profissional. O defensor não é um funcionário público, mas um particular exercendo um serviço de necessidade pública, não sendo um órgão do Estado, pois não age em seu nome e por sua conta, mas em nome próprio e no próprio interesse profissional.

A Constituição de 1988, em seu artigo 133, acentua que o advogado é indispensável a Administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Tal posição foi realçada  pelos termos do atual Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – Lei 8.906/94, que veio reforçar a disposição constitucional e assegurar garantias e prerrogativas à profissão de advogado, que, na correta ilação de Caio Mário da Silva Pereira(Problemas atuais da advocacia, in Revista Forense, volume 255, pág. 471 a 474) é “o artesão da vitória do direito contra o arbítrio  da injustiça”.

A par da responsabilidade que lhe é preceituada nas leis civis, no Estatuto da Ordem dos Advogados, no Código de Ética Profissional, dir-se-á que os advogados, como disse Genéviève VIney(Droit Civil sob direção de Jacques Ghestin, Les Obligations, Responsabilité Civile, nº 599), são responsáveis por toda a espécie de negligência na conduta dos negócios que lhe são confiados.

Já dizia Aguiar Dias(Responsabilidade civil, volume I, n.123) que o exercício da advocacia é considerado um múnus público, exercendo o profissional  uma profissão liberal e, nessa conformidade, o advogado não obedece senão a sua consciência e tem a faculdade de decidir se recebe o mandato, sob a inspiração de suas convicções e em função dos impedimentos pessoais que possa ter.

Pinto Ferreira(Comentários à Constituição brasileira, São Paulo, Saraiva, 1992, pág. 177)  acentuava que “o advogado exerce uma nobilitante função social, facilitando a obra do juiz e a aplicação da justiça”, pois o causídico está intrinsecamente ligado à organização judicial, intermediando a relação entre o juiz-Estado – e a parte, na busca de uma prestação jurisdicional que seja justa para aqueles envolvidos no caso concreto. Sendo assim, repita-se, o advogado é indispensável à organização da justiça.

Tiago Nóbrega Tavares, em interessante síntese(O advogado e sua responsabilização), fazendo análise sobre os deveres profissionais do advogado apresenta diretrizes básicas:

“Antes de qualquer coisa, o advogado deve ser probo (honrado, incorruptível, virtuoso). A diligência tem que ser sua preocupação habitual, utilizando-se dos mecanismos adequados e dos meios jurídicos ao seu alcance para que venha a realizar as providências necessárias para o sucesso da causa em que esteja trabalhando. A prudência (cautela, prevenção, vigilância) não pode deixar de ser observada em todos os passos que tomar no decorrer do processo, seguindo as instruções que lhe foram transmitidas por seu constituinte, jamais se excedendo ou esquecendo delas, ou usando-as de forma a causar prejuízos. Não concordando com as orientações dadas, poderá o advogado renunciar à causa, desde que notifique o cliente, persistindo na tarefa por mais 10 dias (art. 45 do CPC).

lealdade e a independência para com o constituinte são muito importantes na defesa da profissão. Ser leal à causa e aos interesses do contratante, demonstrando independência ao agir apenas de acordo com a lei, desafeto a influências.

O advogado tem a função de aconselhar seu cliente, podendo ser civilmente responsabilizado caso o faça erroneamente ou simplesmente o deixe de fazer no momento oportuno.  Além disso, em um mandato ou consulta, a doutrina majoritária aponta que o profissional será dito culpado quando o conselho estiver em óbvio desacordo com a lei ou com a jurisprudência, e até com a doutrina específica. No tocante a pareceres, se ele se destinar a orientar o cliente sobre seu direito, o advogado responde pelo erro que cometa, mas se é emitido na condição de jurisconsulto, com finalidade de que seja apresentado em juízo como reforço de argumentação, este não poderá ser responsabilizado pela opinião contrária à jurisprudência ou doutrina dominantes que tenha externado.

informação é outro dever inerente ao advogado, tendo este que esclarecer o cliente, em linguagem acessível e no tempo correto, sobre o andamento do processo, acontecimentos, chances, riscos e possibilidade ou viabilidade das medidas que virão a ser tomadas. O art. 8º do Código de Ética e Disciplina diz que “o advogado deve informar o cliente de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das conseqüências que poderão advir da demanda”. Nessa mesma linha, o CDC, o Código de Ética e Disciplina nos arts. 28 a 34, e o Provimento 94/2000 do Conselho Federal da OAB. Em suma, não deve o advogado conduzir seu cliente numa aventura judicial (art. 2º, inciso VII, do Código de Ética e Disciplina), seja por puro despreparo ou por visar intenções mercantilistas, prolongando a ação ou usando caminhos desnecessários e mais custosos, sob pena de responsabilizar-se pelos prejuízos advindos. A própria promessa de resultado cairia no art. 20 do CDC, caracterizando vício do serviço, impondo ressarcimento, independente da existência de culpa do advogado, afinal, a advocacia encerra obrigação de meio, desde que não haja disposição contratual em contrário”.

Estabelece o artigo 2º do Estatuto do Advogado, dentre as regras deontológicas(ética do dever) e fundamentais:

- preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo seu caráter de essencialidade e indispensabilidade;

II - atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé;

III - velar por sua reputação pessoal e profissional;

IV - empenhar-se, permanentemente, em seu aperfeiçoamento pessoal e profissional;

V - contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis;

VI - estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios;

VII - aconselhar o cliente a não ingressar em aventura judicial;

VIII - abster-se de:

a) utilizar de influência indevida, em seu benefício ou do cliente;

b) patrocinar interesses ligados a outras atividades estranhas à advocacia, em que também atue;

c) vincular o seu nome a empreendimentos de cunho manifestamente duvidoso;

d) emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana;

e) entender-se diretamente com a parte adversa que tenha patrono constituído, sem o assentimento deste.

IX - pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos seus direitos individuais, coletivos e difusos, no âmbito da comunidade.

Recebendo a procuração tem o advogado o dever de acompanhar o processo em todas as suas fases, observando os prazos e cumprindo as imposições do seu patrocínio, falando nas oportunidades devidas, comparecer às audiências, apresentar provas cabíveis, agir na defesa do cliente, e no cumprimento de legítimas instruções recebidas. Sabe-se que a falta de exação do advogado no cumprimento dos deveres, além de expor o advogado às sanções disciplinares, sujeita-o a indenizar os prejuízos que venha a causar.

O primeiro dever do advogado é a diligência, acompanhando a causa com zelo e eficiência. Para isso, a observância dos prazos é fundamental, respondendo o advogado se deixar de observá-los, isso porque tem o dever de conhecê-los, sejam dilatórios ou peremptórios.

É certo que há pontos delicados nessa missão do advogado. Um deles diz respeito à interposição de recursos. Para Aguiar Dias(Responsabilidade civil, n.129) se o advogado deixa de recorrer, não obstante o desejo de seu cliente, incorre em responsabilidade. Isso porque o advogado é responsável pela perda da chance, na perda do prazo, independente da indagação do resultado se positivo ou negativo do recurso, pois  o dano residiria na perda do direito, o de ver a causa julgada na instância superior.

Para Caio Mário da Silva Pereira(Responsabilidade civil, 1994, pág. 163), a questão deve ser estudada consoante a natureza dos recursos. Assim o recurso ordinário é um direito da parte, pois se o advogado aceitou a causa, tem de empenhar-se na solução que seja a melhor para o constituinte. Assim vindo a sentença a lhe ser desfavorável, cumpre-lhe recorrer, porque é seu dever esgotar os meios normais de defender o direito a ele confiado. Já com relação ao recurso extraordinário, e diria ao recurso especial, o mesmo não ocorre devido ao caráter de cabimento restrito e técnico.

A obrigação do advogado é obrigação de meios, não de resultado.

O crime de patrocínio infiel, previsto no artigo 355 do Código Penal, encontra a sua objetividade jurídica, portanto, não em interesses privados ou profissionais, que se relacionem com a atuação de advogados ou de procuradores(que são tutelados indiretamente), mas, no interesse do Estado, e da perfeita administração da justiça.

1.2  – SUJEITOS

Trata-se de crime próprio. Sendo assim o sujeito ativo será o advogado ou procurador. Advogado é o bacharel habilitado pela Inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil a defender interesses em Juízo. O procurador judicial é aquele a quem também é permitido tal atividade(provisionado, solicitador, estagiário ou pessoa leiga ou bacharel em direito não inscrito na OAB nomeado como patrono dativo). Sendo assim será indiferente que se trate de mandato oneroso ou gratuito ou que o agente tenha sido constituído pela parte, nomeado pelo juiz, designado ou indicado pelos órgãos competentes(Procuradorias, Ordem dos Advogados do Brasil, Defensorias Públicas). Não estão incluídos no dispositivo os promotores ou procuradores de justiça que não são considerados advogados ou procuradores judiciais. Poderão eles praticar crimes inseridos nos artigos 317 , 319 do Código Penal, como exemplo.

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Já o sujeito passivo do crime é o Estado, que é titular da atividade regular da Justiça, bem como aquele que é lesado pela conduta do sujeito ativo.

1.3 – CONDUTA

Na lição sempre presente de Heleno Cláudio Fragoso(Patrocínio infiel, in Revista brasileira de criminologia e direito penal, 10:96, 1965), “ a ação incriminada consiste em trair dever profissional, prejudicando interesse cujo patrocínio em juízo tenha sido confiado ao agente. Tem-se em vista o dever profissional do agente e não a pretensão da parte ao outorgar-lhe o mandato. Isso é particularmente importante, pois pode haver crime sem que haja violação do mandato, se o agente transgredir dever profissional. Nesse caso, é irrelevante o consentimento do cliente”.

Bem disse Paulo José da Costa Jr.(obra citada, pág. 601) que se trate de interesse legítimo, pois se for ilegítimo, não se apresenta o crime.

A conduta poderá ser praticada em juízo civil, penal, trabalhista, eleitoral, pois a atuação do profissional extrajudicialmente não configura crime.

Pode o crime ser praticado por ação(apresenta alegações contrárias ao legítimo interesse da parte, provoca nulidade no processo) ou omissão, desde que haja um efetivo e relevante prejuízo a interesse do cliente, o que constitui o momento consumativo do crime. Já o prejuízo poderá ser moral ou patrimonial, sendo a tentativa admissível, na forma comissiva, e se não vier a ocorrer um prejuízo por circunstâncias alheias a vontade do agente. Não basta o dano potencial(RT 464/373, 730/665; contra: RT 788/703), necessário o dano efetivo,  sendo indispensável um nexo causal entre o comportamento infiel do advogado e o prejuízo concreto que venha a padecer o cliente. São exemplos do crime: fazer acordo lesivo, ainda que usando de poderes especiais e expressos, causando prejuízos(RT 521/500, 522/314), desistir do recurso que importe consequências danosas pela ocorrência da coisa julgada(JTACrSP 67/425), exigir, como defensor dativo, honorários de familiares de réu pobre, sob ameaças de não produzir a defesa a contento(RJTJESP 85/809; RT 510/443, 520/494; RF 264/285 etc). Neste último caso, cita-se decisão em sentido contrário: RT 534/321. Mas os casos que determinam ao advogado a imposição de multa, prevista no artigo 265 do CPP,  não se incluem no crime em discussão, quando do  abandono do processo criminal(RT 464/373). Não se considerou crime o abandonar processo criminal após receber procuração e numerário para o início da ação judicial, sendo ainda inabilitado para o exercício profissional da advocacia por falta de inscrição na OAB(JTACrSP 30/191). Sendo assim consuma-se o crime com o efetivo prejuízo, não excluindo o delito se a lesão é sanada posteriormente.

Exige-se para a caracterização do crime, que da ação ou omissão resulte dano efetivo a pessoa. Se a conduta não produziu nenhum efeito de direito, nem poderia produzir, não ocorre o ilícito penal.

O crime poderá se apresentar pela deliberada perda de prazos processuais, pela falta de contestação ou produção de provas, pela revelação de segredos(caso em que ocorre o concurso material com o crime previsto no artigo 154 do CP). De toda sorte, não basta o simples prejuízo, devendo haver infringência a um dever profissional.

Dir-se-á que  a infidelidade deve ser valorada enquanto infração ao dever profissional, determinada diante da lei e do Código de  Ética Profissional, mas não como encargo do cliente. O patrocinador que lesar o imputado com o consentimento deste pratica de forma igual o crime.

 A antijuricidade da ação pode ser excluída pelo consentimento do interessado, desde que o prejuízo diga respeito a bens juridicamente disponíveis, como explicita Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, volume III, 5ª edição, pág. 553).

O crime somente se configura quando o interesse da parte ocorre no curso do processo e não quando o ato é praticado depois de cumprido integralmente o mandato que foi confiado ao procurador(RT 586/366).

O interesse a que se refere a lei será patrimonial ou moral, que é objeto de providência judicial. Não haverá crime se envolver interesse em parecer ou atividade extrajudicial, como já manifestado.

Por fim, importante lembrar que o processo administrativo no órgão corporativo de índole ética e disciplinar não é prejudicial para discussão da conduta no campo penal.

1.4. TIPO SUBJETIVO

O tipo penal exige o dolo que é a vontade dirigida à traição do dever profissional, sabendo o agente que está a prejudicar o seu cliente(RT 556/325), sendo indiferente o fim ou motivo do agente ou que deseje este  causar um prejuízo. Mas o erro profissional ou a culpa, que se traduza em imprudência, negligência ou imperícia, não bastam para configurar o crime(RT 464/373, 556/325). Anote-se que já se entendeu que havendo precipitação ou exorbitância em acordo que não foi aceito pelo cliente, pode-se reconhecer o dolo, ao menos eventual(RT 521/500, 522/314).

1.5 – PATROCÍNIO SIMULTÃNEO OU TERGIVERSAÇÃO

Diz o parágrafo único do artigo 355 do CP:

Incorre na pena deste artigo o advogado ou procurador judicial que defende na mesma causa, simultânea ou sucessivamente, partes contrárias.

Trata-se de uma modalidade de patrocínio infiel prevista no Código anterior(artigo 209,II) e que constitui o tipo tradicional de prevaricação, configurado no direito penal italiano, como crime(artigo 361).

Duas são as modalidades previstas: patrocínio simultâneo e patrocínio sucessivo de partes contrárias, devendo se tratar de processo judicial e que o  pressuposto do ilícito  se trate de fato atinente à mesma causa. Na lição de Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume IX, 522), ´´ causa não deve ser interpretado em sentido demasiadamente restrito. Assim, se um indivíduo intenta, com fundamento na mesma relação jurídica ou formulando a mesma causa petendi em torno do mesmo fato, várias ações contra pessoas diversas, o seu advogado, em qualquer delas, não pode ser, ao mesmo tempo ou sucessivamente, advogado do algum réu em qualquer das outras, pois, no fundo, trata-se da mesma causa”. Assim é indiferente, pois, a unidade ou pluralidade de processos: uma ação penal e outra ação civil podem constituir a mesma causa.

Partes contrárias são pessoas com interesses antagônicos na mesma relação jurídica ainda que não constituam partes no processo. O acusado e o lesado no processo penal são partes contrárias.

Como ensinou Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, volume III, 5ª edição, pág. 554), na forma de patrocínio simultâneo, o agente de forma contemporânea defende interesses opostos(por si, ou através de terceiros, que serão os coautores). No patrocínio sucessivo(tergiversação), o agente passa de um lado para o outro, assumindo o patrocínio da parte adversária. Mas se houver o consentimento válido a antijuridicidade se exclui. Sem dúvida há crime se um procurador federal ajuíza ação de cobrança, na defesa da União, e, após, contesta a ação como advogado do  réu. Não se considerou haver tergiversação na conduta de advogados que, tendo atuado em separação consensual, de há muito concluída, passam a cuidar de interesses do devedor, em questão de alimentos, o que não constituiria dois momentos da mesma causa(RJDTACRIM 12/178; RT 700/329). Ainda não se exige que seja a defesa simultânea ou sucessiva de “partes” contrárias. Entendeu-se que está descaracterizado o crime na hipótese de advogado que funciona em autos de separação consensual como defensor de ambas as partes, e, posteriormente, assume o interesse particular de uma delas contra a outra, em ação diversa(RJDTACRIM 23/439). Considerou-se que cumprido o mandato judicial recebido do cliente e liberado, portanto, o advogado de qualquer outro compromisso com ele, não pratica o crime em tela por lhe mover, posteriormente, ação de execução(RT 495/315).

O crime é formal, ao contrário da forma prevista no caput do artigo 355 do Código Penal, e se consuma quando o agente pratica qualquer ato processual relativo ao patrocínio simultâneo ou sucessivo, de partes contrárias, não bastando o simples fato de receber mandato, não se exigindo a superveniência de qualquer outro resultado.

O tipo subjetivo é o dolo genérico, que consiste na vontade consciente de patrocinar simultânea ou sucessivamente interesses contrários na mesma causa, sendo o fim de agir ou motivo irrelevante.

II – SONEGAÇÃO DE PAPEL OU OBJETO DE VALOR PROBATÓRIO

2.1 – OBJETIVIDADE JURIDICA,  CONSUMAÇÃO E ELEMENTO SUBJETIVO

Outro crime contra a Administração da Justiça  que pode ser cometido pelo advogado ou procurador está inserido no artigo 356 do Código Penal e tem o seguinte teor:

Inutilizar, total ou parcialmente, ou deixar de restituir autos, documento ou objeto de valor probatório, que recebeu na qualidade de advogado ou procurador:

Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa.

Neste crime é prevista a conduta do advogado ou procurador que, abusando de sua profissão, atenta contra a administração da justiça, inutilizando os autos recebidos ou não os devolvendo. Trata-se de crime especial em relação ao artigo 305 do Código Penal, em que o sujeito passivo é o Estado.

É certo que o Anteprojeto Hungria previa um novo tipo penal próprio do advogado, chamado de “advocacia marrom”, cuja conduta era assim definida: “prestar assistência a outrem, sem autorização legal e mediante remuneração”. É O que se conhece como exercício ilegal da advocacia.

O crime em discussão é de ação múltipla: inutilizar ou deixar de restituir.

Os conceitos de autos, documento e objeto são  dados por Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume IX, volume 523), na forma adiante descrita.

Inutilizar é tornar imprestável o que poderá fazer-se destruindo, riscando, cancelando, borrando etc. A inutilização pode ser total ou parcial.

Deixar de restituir é reter indevidamente, é não devolver os autos, o documento ou objeto de valor probatório.

Na lição de Paulo José da Costa Jr.(obra citada, pág. 607), pressuposto do fato é que os autos(conglomerado de petições, arrazoados, termos, depoimentos, despachos, decisões interlocutórias, sentença, recurso, que integram o processo) , documentos(papéis escritos  destinados a comprovar um fato juridicamente relevante) ou objetos(coisas idôneas a comprovar um fato, servindo de elemento de convicção para o magistrado) probatórios tenham sido confiados ao advogado ou procurador, em cuja posse se encontrem, não importando a forma pela qual os autos tenham sido entregues: se mediante carga, em confiança etc. Por sua vez, já se decidiu não ser objeto material desse crime “senha” de ingresso em presídio não restituído e falsificado por advogado que visitara seu constituinte(RT 464/444). Mas será necessário que o objeto material do crime tenha sido entregue ao agente em razão de sua qualidade de advogado ou procurador, mas não se exige a preexistência da ação judicial em curso(exceto no casos dos autos). Dessa forma, a entrega pode ser feita por funcionário da justiça ou por particular, titular da coisa ou mero intermediário, como ensinou Júlio Fabbrini Mirabete(obra citada, pág. 449).

O objeto material sobre o qual recairá a conduta  é o documento, o objeto de valor probatório, os autos.

Consuma-se o crime na primeira modalidade, com a destruição, total ou parcial do objeto, admitindo-se a tentativa.

Na modalidade de não devolução, consuma-se o crime quando vencido o prazo para restituição, ou quando o advogado não atende à intimação para proceder à devolução dos autos. Sendo espécie omissiva não se fala em tentativa.

Mas será necessária a prévia intimação do advogado para que proceda a restituição dos autos(RT 410/272, 493/311,  486/299). Sem a intimação prévia não há omissão, como disse Heleno Cláudio Fragoso, ao estudar a jurisprudência dos tribunais(Jurisprudência criminal, nº 498). Consultem-se ainda; RTJ 76/456; RT 493/311, 486/299, 410/272.

Já se entendeu que se a devolução dos autos a cartório  acontece antes do oferecimento da denúncia, não há falar no crime previsto no artigo 356 do CP(RT 403/83). Ainda não haverá tal crime, se os autos forem devolvidos no prazo da intimação, por óbvio(RT 486/299). Mas não há crime se o advogado comprovou que entregou os autos ao colega que neles funcionava com procuração, não havendo de sua parte sonegação ou retenção por superar-lhe o exercício da vontade esse fato de terceiro(RT 403/83).

Já se entendeu que para a configuração do crime, na segunda modalidade, que é omissiva, não basta que o advogado tenha retido os autos, além do prazo legal; é indispensável que não atenda à intimação do juiz para restituí-lo, caracterizando a omissão a recusa que consuma o crime(RTJ 76/456, 96/622, RT 410/271, 590/351, 668/337, 687/298, 709/348, 711/389). Mas não é necessário que a intimação seja efetuada por mandato(RJTDACRIM 14/189).Desta forma, se o advogado ou procurador, sendo notificado a devolver os autos que retém em seu poder, cumpre a determinação no prazo concedido, não há crime a punir(RT 486/299, 611/409, 616/402, 630/309). Entendeu-se que estará consumado o crime quando, notificado o advogado e decorrido o prazo legal, não se efetua a devolução. Por sua vez, registrem-se decisões onde concluiu-se que não descaracteriza o crime a devolução anterior à denúncia(RT 116/958; RT 605/409, 712/470).

O crime previsto no artigo 356 do Código Penal é formal e a consumação independe de lesão efetiva para qualquer pessoa.

O crime exige o dolo genérico, considerando a vontade consciente e deliberada de, recebendo os autos na qualidade de advogado, deixar de restituí-los ao fim do prazo legal, não importando a finalidade do agente, como se vê de registro de Alberto Silva Franco e outros(Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 2ª edição, 1987, pág. 1277). Por óbvio, não ocorre o crime em caso de caso fortuito ou força maior.

Sob o Império do antigo Regulamento da Ordem dos Advogados(Decreto nº 22.478, de 20 de fevereiro de 1933), artigo 33, autorizava-se ao juiz a suspensão do advogado, em caso de falta de restituição de autos recebidos em confiança. A Lei nº 4.215 não reproduziu essa disposição, que o Conselho Seccional entendia estar revogado pelo artigo 36, § 3º, do Código de Processo Civil, e os tribunais consideravam em vigor. Mas a Lei citada conferia o direito de vista ao advogado fora dos cartórios de autos de qualquer processo sem restrições(artigo 89, inciso XVII) e estabeleceu que “a não devolução dos autos dentro dos prazos estabelecidos autorizará o funcionário responsável pela sua guarda ou autoridade superior representar ao presidente da seção da Ordem para as sanções cabíveis”, à vista do artigo 89, inciso XIII, letra b. Por sua vez, a norma citada prescrevia que a retenção abusiva ou extravio de autos recebidos com vista ou em confiança constituía falta disciplinar(artigo 103, XX), que sujeitava o profissional à pena de suspensão(artigo 110, inciso X, imposta pelo Conselho da Ordem).

Lembre-se ainda que o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil(Lei 8.906, de 4 de julho de 1994), ao conferir aos profissionais o direito à vista, fora do cartório, de autos de qualquer processo(artigo 7º, XV e XVI), estabelece, entretanto,sanção disciplinar, que é independente da pena pelo crime cometido, ao ato de “reter, abusivamente, ou extraviar autos recebidos com vista ou em confiança”(artigo 34, XXII), que é passível de pena de suspensão(artigo 37, I). Ademais, não há falar em que a apuração do ilícito penal pela Justiça dependa de qualquer prévia averiguação ou providência disciplinar a ser tomada pelo órgão de classe(RT 405/283).

O artigo 356 do CP é especial com relação ao crime previsto no artigo 305 do CP. Tratando-se de advogado, a destruição, supressão ou ocultação de autos ou documento probatório caracteriza aquele delito e não o previsto no capitulo das falsidades(RT 403/83, 529/310). Aplica-se o principio da especialidade.

III – EXPLORAÇÃO DE PRESTIGIO

3.1 OBJETIVIDADE JURÍDICA, SUJEITOS DO DELITO, TIPO OBJETIVO, TIPO SUBJETIVO, CONSUMAÇÃO E TIPO QUALIFICADO

Outro tipo penal dentre os  estudados, que diz respeito a crime contra a administração  da justiça,  está capitulado no artigo 357 do Código Penal.

 Solicitar ou receber dinheiro ou qualquer outra utilidade, a pretexto de influir em juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário de justiça, perito, tradutor, intérprete ou testemunha:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

O crime pode ser praticado por advogado ou procurador, ou ainda por qualquer pessoa. Sujeito passivo é o Estado, titular da regularidade da Administração da Justiça, e, como o crime é espécie de estelionato, com fraude bilateral, vítima é ainda a pessoa que, iludida pelo agente, é lesada em seu patrimônio.

Duas são as modalidades de conduta: solicitar e receber. Solicitar significa pedir, requerer, buscar, rogar, requestar, pressupondo a iniciativa do sujeito ativo e configurando-se ainda que a proposta não seja aceita pelo eventual interessado. Por sua vez, receber é ação de obter, aceitar, entrar na posse, completando-se um acordo de vontades entre o sujeito ativo e o comprador do prestígio.

Sendo assim o crime em discussão pressupõe fraude, pois o agente solicita ou recebe a vantagem a pretexto de influir no servidor da justiça, iludindo o interessado.

Já se decidiu que havendo conluio com o servidor, à qual é destinada parte da vantagem, ocorrerão crimes como corrupção passiva, corrupção ativa, sendo o intermediário, conforme as circunstâncias, coautor desses crimes.

O objeto material do ilícito é o dinheiro ou qualquer utilidade, que pode ser material ou moral.

Para tanto, é mister que o agente arrogue influência com relação ao servidor da justiça e que solicite ou receba a vantagem.

As pessoas enumeradas no artigo, junto às quais o agente arroga prestígio, são: o juiz, o jurado, o órgão do funcionário público, o perito, o funcionário da justiça, o tradutor, o intérprete.

Exige-se o dolo, vontade de obter vantagem ilícita, arrogando-se o agente influência junto ao servidor da justiça, não se exigindo que o sujeito ativo tenha consciência de que está desacreditando a administração da justiça.

Consuma-se o crime com o recebimento da vantagem ou com a simples solicitação ainda que não aceita, quando, neste último caso, será um crime formal, independentemente da consumação do resultado lesivo. É possível a tentativa, no caso do agente, a pretexto de influir no servidor da justiça, não consiga transmitir a sua solicitação, como no caso de um recado interceptado.

Há a hipótese do crime qualificado no artigo 357, parágrafo único:

As penas aumentam-se de um terço, se o agente alega ou insinua que o dinheiro ou utilidade também se destina a qualquer das pessoas referidas neste artigo.

Aqui o agente alega ou insinua que o dinheiro ou utilidade também se destina a qualquer das pessoas referenciadas no artigo. É o que acontece na conduta do advogado que recebe dinheiro a pretexto de influir na decisão do Juiz e do Promotor, seus amigos, que, segundo ele, também receberiam uma parte do numerário que solicitara do cliente. Já se entendeu que basta a insinuação de que o dinheiro ou utilidade solicitado pela parte interessada se destina a uma dessas pessoas(RT 467/333).

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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