A prisão para averiguação

18/02/2015 às 15:33
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Análise baseada na legislação, na jurisprudência, na doutrina e no direito comparado no que se refere à prisão para averiguação.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXI, da Constituição Federal preceitua dever ocorrer a prisão somente em decorrência de flagrante e por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária.

Nessa mesma linha, a Lei 12.403/11, norma infraconstitucional, ao dar redação atual ao artigo 283 do Código de Processo Penal determina que "ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso de investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.".

Ao estudar a prisão provisória, que é aquela efetuada no transcorrer da persecução penal, precedentemente ao proferimento de sentença definitiva, Rogério Lauria Tucci (Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, 4ª edição, pág. 203) diz que excetuadas as hipóteses de transgressão ou de prática de infração de natureza militar, prescritas na legislação em vigor: a) indivíduo somente poderá ser preso quando estiver cometendo crime; b) ou em decorrência de ordem escrita e devidamente motivada de autoridade judiciária competente. Ainda assim, somente será levado à prisão ou nela mantido, quando não tiver direito à liberdade provisória com ou sem prestação da fiança.

No sistema processual penal brasileiro não há que falar na figura da execução provisória de julgado penal condenatório, como disse Sidnei Agustinho Beneti (Execução Penal, pág. 88 e 89), pois não há como admitir, no Brasil, que suporte o acusado a execução penal enquanto não declarada, com certeza, que ele cometeu a infração penal.

Por sua vez, a verdade, no processo penal, há de ser perseguida de tal forma a se falar em inquisitividade ínsita à persecução penal, de forma que pode se orientar  numa inquisitividade dirigida à apuração da verdade material ou atingível.

A chamada prisão para averiguação não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Aponto como uma exceção a possibilidade de tal detenção nos casos de transgressões disciplinares, no âmbito militar, ou quando houver uma suspensão momentânea das garantias constitucionais por força de estado de defesa ou estado de sítio, na correta lição do Ministro Celso de Mello e ainda de Celso Bastos (Comentários à constituição do Brasil, volume II, pág. 292).

Correta a conclusão de Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 609) quando diz que a prisão para averiguação é um procedimento policial desgastado pelo tempo e que foi sepultado desde a vigência da Constituição de 1988.

Não há cabimento em admitir que a polícia civil ou militar detenha pessoas na via pública, para averiguá-las, levando-as presas ao distrito policial.

Considero que a efetivação da prisão para averiguação leva a crime de abuso de autoridade, do que se lê do artigo 4º, d, da Lei 4.898/65.

Colho jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná (JUTACRIM 24/305) ao registrar que a chamada prisão para averiguações, prática usual em tempos de ditadura, constitui-se numa grande ilegalidade, após a Constituição de 1988, num flagrante abuso de poder.

Notável em sua substância e dimensão, a sentença emanada pela Juíza Federal Shira Scheindin, considerando inconstitucional a prática procedimental  do stop and frisk (pare e reviste) existente na cidade de Nova York. Com os números mostrando que 87% das 533.042 pessoas paradas para averiguação no ano passado eram negras ou de origem hispânica, constatou-se uma violação da Constituição e da chamada "listagem racial indireta" de milhares de nova-iorquinos, lembrando que a maioria dos suspeitos é de homens jovens e inocentes, numa abordagem discriminatória e desproporcional de milhares de negros e hispânicos com a conivência de altos oficiais da polícia.

A decisão historiada constatou flagrante violação sistemática, sobretudo, dos artigos 4º (que protege o cidadão contra buscas e apreensões injustificadas do governo) e ainda do 14º (que garante a proteção igualitária).

Por aqui, a Constituição veda à lei estabelecer desigualdades entre os homens, por serem humanos. Por sua vez, as medidas cautelares de busca e apreensão devem ser regidas nos estritos termos das garantias e liberdades individuais estabelecidas na Constituição, moldadas no princípio da proporcionalidade.

No entanto, apesar de tudo isso, há que se registrar que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em decisão no HC 107.644, entendeu que a condução de suspeito até a presença da autoridade policial para ser inquirido sobre os fatos investigados, sem ordem judicial escrita e nem situação de flagrante delito, e ainda, mantê-lo custodiado na delegacia de polícia até a decretação de sua prisão temporária não é ilegal.

Argumentou o Ministro Ricardo Lewandowski que compete à policia buscar a elucidação de crimes e, para tanto, possui legitimidade para adotar as providências necessárias, inclusive a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos investigados. Para o Ministro Dias Toffoli, estaríamos diante de poderes implícitos que legitimariam tal atuação, anotando que o Superior Tribunal de Justiça desprovera o último recurso do réu, mediante decisão transitada em julgado.  A decisão foi tomada por maioria de votos, entendendo o Ministro Marco Aurélio, que foi voto vencido, que era inconstitucional tal atitude. 

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Naquele caso, consta que a esposa de vitima de latrocínio marcara encontro com o paciente, o qual estaria na posse de cheque que desaparecera do escritório da vítima no dia do crime. A viúva, então solicitara a presença de policial para acompanhar a conversa e, dessa forma, eventualmente, chegar-se à autoria do crime investigado. Ante a divergência das versões apresentadas por aquela e pelo paciente, durante o diálogo, todos foram conduzidos à Delegacia para prestar esclarecimentos. Neste momento, fora confessado o delito. Assentou-se que a própria Constituição assegura, no artigo 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais. Da mesma forma, o artigo 6º, II a VI, do Código de Processo Penal, estabeleceria as providências a serem tomadas pelas autoridades referidas ao terem conhecimento da ocorrência de um delito. Enfatizou-se, ainda, que os agentes policiais, sob o comando de autoridade competente (artigo 4º, CPP) possuiriam legitimidade para tomar as providências necessárias, incluindo-se a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. 

Ora, com o devido respeito, em que residiria a prisão do investigado para as investigações?

Bem responde Roberto Delmanto Júnior (Inatividade no processo penal brasileiro, pág. 166).

Para interrogá-lo (artigo 6º, V, do CPP) ou fazê-lo participar de acareação (artigo 6º, VI, do CPP)? Ora, ele tem direito ao silêncio. O poder ou até o dever da autoridade em envidar esforços para ao menos tentar realizar este ato não justifica uma prisão cautelar, ainda mais inconstitucional. 

A recusa do investigado em colaborar nem mesmo configura um crime de desobediência (artigo 330 do CP). Considero que o investigado não tem obrigação em colaborar. Ora, se há necessidade de investigação, por que não a decretação de prisão temporária, como se lê da Lei 7.960/89, levando-se em conta que o acusado tem o direito ao silêncio?

Não se pode esquecer que a condução coercitiva do indiciado para comparecer à Polícia para prestar esclarecimentos é medida de duvidosa constitucionalidade, como bem disseram Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (Curso de Direito Processual Penal, 7ª edição, pág. 323), a par de que o interrogatório é meio de defesa, prevalentemente.

Se o investigado se recusa a atender a notificação da polícia, deve a autoridade policial noticiar este fato ao juiz, pleiteando a condução coercitiva.

Considero que o acusado tem o ônus de autodefender-se, sendo tanto o seu comparecimento pessoal quanto a sua ausência, bem como a sua colaboração ou falta de cooperação quando presente, totalmente voluntários.

De outro modo, em nosso sistema acusatório, que hoje é recepcionado pela Constituição, a confissão deixou de ser a rainha das provas a sedimentar preferencialmente um juízo de mérito sobre a conduta.

A gravidade do crime em discussão não basta para açoitar direitos fundamentais que são a base de nosso moderno Estado de Direito que pavimenta e dá instrumentos ao nosso Estado Democrático.


BIBLIOGRAFIA:

BASTOS, CELSO. Comentários à constituição do Brasil, volume II, São Paulo, ed. Saraiva.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, São Paulo, ed. RT. 

DELMANTO JÚNIOR, Celso.Inatividade no processo penal brasileiro, São Paulo, Ed. RT.  

TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, São Paulo, ed. RT.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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