Responsabilidade objetiva pela não coletivização do dano.

Lei anticorrupção: a 4ª geração da responsabilidade social

23/02/2015 às 12:04
Leia nesta página:

Compliance. Integridade Corporativa. Lei Anticorrupção. Responsabilidade civil. Probidade Empresarial. Probidade Corporativa.



INTRODUÇÃO

O tema anticorrupção remonta à década de 70, sendo que foi a partir de 1996, por meio da Organização dos Estados Americanos - OEA, na Convenção Interamericana Contra a Corrupção, que o tema ganha destaque nas pautas dos organismos internacionais.

Legitimada na temática, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE ingressa no debate no ano de 1997, inaugurando a Convenção sobre o combate ao suborno de oficiais públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais.

No ano de 2003 é a vez da Organização das Nações Unidas - ONU realizar sua Convenção sobre a temática da Corrupção.

O Brasil, que sempre aspirou a uma maior participação junto aos organismos internacionais, faz-se signatário de acordos internacionais (1997) que pressionam os Estados no agir repressivo às más práticas negociais.

Em maio do ano de 2014, na vigésima terceira Sessão da Comissão de Prevenção ao Crime e Justiça Criminal do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, o Brasil, por meio da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), partícipe da reunião, ratifica sua Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla).

Desde o ano de 2010 o Brasil já esboçava Projeto de Lei (PL 6.826), voltado às práticas repressoras da corrupção. No entanto, foi a partir do ano de 2013, pressionado pelas manifestações populares, que, em regime de urgência o PL 39/13 foi aprovado, dando origem à Lei 12.846, sancionada em 01/08/2013, com vigência a partir de 2014.

Por força dos acordos internacionais travados e da Lei 12.846 (Lei Anticorrupção), ingressamos em um novo plano, tanto conceitual quanto prático, que inaugura a quarta geração da responsabilidade social.

Notadamente, o primeiro e mais importante desiderato da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) é o de instituir a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas no âmbito administrativo e civil, no que tange às relações entre os setores público e privado para execução de serviços ou fornecimento de produtos à administração pública, ou em seu interesse.

Trata-se de resguardo aos direitos difusos.

A Lei 12.846/2013 foi essencialmente inspirada nas leis britânica (UK Bribery Act - 2010) e norte-americana (FCPA – Lei de Práticas de Corrupção Estrangeira).

Observa-se uma metodologia peculiar na Lei em comento, com doses de bom senso, e alguns pecados técnicos, encobertos pela salutariedade da providência legislativa, como veremos a seguir, através do cotejamento de suas disposições.

DO OBJETO DA LEI

A temática é nova e o avanço legislativo, em que pese opiniões discordantes quanto à figura da responsabilização objetiva face às empresas, a partir de fundamentações extraídas, principalmente, da seara penal, inaugura importante praticidade no desincentivo às práticas ilícitas no meio empresarial.

Abrindo-se um aparte, temos que parcela dos penalistas entendem pela inviabilidade da responsabilização objetiva das pessoas jurídicas, fulcrados no moderno entendimento de que o direito penal não pode prescindir da análise da culpa, vez que fato não se presume, e que não se pode punir alguém por fato de terceiros.

Contudo, o entendimento acima esposado, data venia, vem na contramão de uma tendência internacional, onde a responsabilização objetiva ganhou relevo frente à necessidade de se frenar a corrupção.

E aqui, não se está defendendo uma atecnia jurídica em prol de uma necessidade fática, mas sim, a sobreposição da Justiça em relação ao Direito entendido em seus aspectos mais formais, muito embora existam normativas positivadas que amparem a tese da responsabilidade objetiva empresarial, como é o caso do Capítulo IX do Código Civil.

Considerando que se está diante de um instituto que responsabiliza administrativamente e civilmente a pessoa jurídica, entendemos que o conceito da responsabilidade objetiva insculpido pela Lei 12.846/2013 possui origem civilista, disponível do Código Civil Brasileiro, a partir do art. 927:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Cumulando os dispositivos supracitados aos arts. 931 – 935 a seguir transcritos na ordem lógica da responsabilidade civil constata-se que a Lei em comento transversalizou o permissivo do código civil com a necessidade de uma responsabilização efetiva e eficaz, recriando um mecanismo legal contra a corrupção:

Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

[...]

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Outrossim, o raciocínio esposado ganha relevância quando associamos a ele a “Teoria do Risco Criado”, que, em última instância, e de forma sintética, fala-nos sobre a socialização do risco.

A socialização do risco, bastante defendida por Caio Mario da Silva Pereira[1], indica que o dano decorrente da atividade de risco recairá, sempre, ou no seu causador (que se beneficia do risco auferindo lucro), ou na vítima (membros da sociedade). Porém, não é justo que, dentre estas duas pessoas, a prejudicada seja aquela que não teria como evitá-lo”.

Ainda, importante distinção sobre a “Teoria do Risco Criado” também é encontrada na obra de Georges Ripert[2], ao referir que “não é por ter causado o risco que o autor é obrigado à reparação, mas sim porque o causou injustamente, o que não quer dizer contra o Direito, mas contra a justiça”.

Estamos diante, então, de norma que impõe responsabilidade objetiva contra quem causou o dano, visando, salvaguardar interesses difusos.

Admitido este entendimento, que percebe a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica em sintonia com o ordenamento pátrio, verifica-se que o cenário imposto pela nova legislação, ora cotejada, visa oferecer um cenário mais seguro à formação de relações entre público e privado.

Isto, pois, é inegável que a máquina pública necessita, vez por todas, fazer funcionar as parcerias com o setor privado. Para tanto, mister que estas parcerias sejam profícuas por todos os lados que se olhe.

A administração pública, então, necessita de parceiros privados para fazer o Estado funcionar, através de produtos e serviços a serem fornecidos pela iniciativa privada, o que desonera o Público e incentiva o empreendimento, gerando empregos e tributos, encerrando um ciclo produtivo que se reveste, em tese, de um cenário de pujança social.

Assim, o parágrafo único do art. 1º da lei em comento, estabeleceu amplo leque de abrangência, através de texto genérico que inclui empresas nacionais e estrangeiras, onde se percebe que o espírito da Lei é o de abarcar todas as pessoas jurídicas de direito privado que dialoguem com a administração pública, sem exceções.

Tem-se que o legislador ansiou dizer que a Lei é destinada às pessoas jurídicas de direito privado, excluindo, portanto, as pessoas jurídicas de direito público. No entanto, de uma rápida leitura do art. 1º e de seu parágrafo, nota-se que o rol ditado abrange personalidades que podem não se adequar integralmente ao conceito dos artigos 40 e 44 do Código Civil Brasileiro.

Ademais, foram excluídos do rol de jurisdicionados diretos, as empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI); os empresários individuais; os fundos de investimentos, quando considerados portadores de personalidade jurídica, bem como, as holdings pessoas físicas, para os adeptos de Francesco Galgano.

Antes tivesse o legislador eleito a expressão empresário, visto que tal designação é mais abrangente.

Nessa toada, tem-se que as lacunas deverão ser resolvidas casuisticamente nos tribunais, quando não encerradas na seara administrativa, o que certamente trará dificuldades na prática, já que aplicar extensivamente uma norma punitiva nunca se reveste de simplicidade.

Não obstante, deverá a norma ser interpretada no que diz respeito a responsabilidade solidária das empresas coligadas. Isto, pois, estando diante de uma norma punitiva, imagine-se solidarizar acionistas que não gerem e não possuam poder de decisão sobre quem pode ou quem não pode adquirir cotas sociais da empresa.

Tais situações, por serem tênues, trarão tormentos para análise do caso concreto, vez que, se analisarmos a letra fria da Lei, o legislador não distinguiu com precisão o que é a pessoa jurídica de direito privado, assim como, incluiu atores, na condição de solidários, quando estes não possuem o condão de viabilizar nexo causal com o dano.

DA LEI PARADIGMA (FCPA) EM RELAÇÃO ÀS COLIGADAS:

O art. 78 da FCPA, que serviu de alicerce para construção da Lei brasileira, estabelece que o acionista das empresas coligadas, de capital aberto – e poderá haver casos de coligadas das coligadas, que para efeito da lei brasileira não poderão ser consideradas coligadas da empresa responsável pelo ato ilícito, - não reponde solidariamente pelo dano ocorrido, ou seja, o papel do empresário norte-americano, por exemplo, detentor de cotas de empresas coligadas, é de meio.

Talvez, e aqui apenas ad argumentandum tantum, seja esta a solução que o ator da análise do fato concreto deverá perseguir, por ser medida mais razoável e criativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Da análise, observa-se que a Lei em baila almeja a responsabilização da empresa (lato sensu), sendo que seu texto apresenta alguns deslizes conceituais quanto ao público-alvo. Arrisco dizer que dificilmente remediáveis, salvo se disciplinado em norma complementar.

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Outrossim, importa observar que a norma em comento não se limita a dispor sobre empresas, que em determinada situação de flagrante prática ilícita, estejam sob contrato junto a administração pública. Ela vai além, e nos diz sobre relacionamentos com a administração pública.

Logo, conclui-se que mesmo a empresa que não tenha contratado com o poder público, mas que exerça atividade que possa malferir os princípios da administração pública estará sujeita as penalidades aplicáveis aos ilícitos tipificados na Lei 12.846.

Por se tratar de norma que expressa forte carga punitiva, merece atenção o fato de que o avaliador deverá saber distinguir entre responsabilização e punição, naqueles casos em que, mesmo tendo havido o dano, que deve ser integralmente reposto, por vezes, não será aplicável a punição, por incabível contra quem não teria como impedir o fato.

- Tomemos, por exemplo, uma situação em que a “empresa” tenha tomado todas as precauções possíveis para evitar atos ilícitos, nos termos da Lei (programa de compliance adequado à Lei), mas que, ainda assim, por uma eventualidade de cunho personalíssimo e fortuito, um funcionário tenha lançado mão de meios corruptos para realizar algum negócio (por participar dos resultados, por exemplo).

No caso acima, consideramos que persista responsabilidade objetiva da empresa, no sentido de recompor o dano (responsabilização pela não coletivização do dano), contudo, injusto seria, ainda que sob o conceito da responsabilidade objetiva, punir (penalizar) esta empresa nos termos do art. 6º da Lei 12.846.

Porém, ainda nos termos da proposição acima, resta latente a importância da empresa não ser omissa diante do que chamo de 4ª geração da responsabilidade social. É ônus que se impõe à empresa, doravante, assim como já o era em relação às precauções nas questões ambientais, cumprir o seu papel de difusora de práticas anticorrupção, visando não ferir os princípios da administração pública, bem como, não causar danos difusos.

Isto, pois, caso aquele funcionário que praticou o ilícito não tenha recebido instruções, caso a empresa não possua código de ética adequado ou, por exemplo, na eventualidade de seus instrumentos jurídicos não estarem aptos a combater as práticas ilícitas, então, estaremos diante da possibilidade muito razoável de ver esta empresa respondendo objetivamente pelo ressarcimento do dano, sem prejuízo da incidência das penalidades do art. 6º, da Lei 12.846, sendo que, a dosimetria da sanção será majorada, pela simples omissão empresarial no sentido de adotar medidas que possam prevenir a concretização do dano.

Em vias de conclusão e adentrando de forma breve no que se refere a aplicabilidade da Lei, importa destacar que, embora não regulamentada, as sanções administrativas podem, perfeitamente, ser aplicadas pelo poder judiciário, sobretudo, através de promoção Ministerial.

Ou seja, inaugurada está a responsabilidade objetiva da empresa, no desiderato de que as empresas tomem para si a responsabilidade de recompor o dano. De outra banda, e com critérios diferentes, deverá ser apurada a punição, em face do praticante desautorizado do ilícito, quando a empresa tiver cumprido seu papel de difusora de boas práticas negocias, através de programas de compliance.

Verifica-se, portanto, que após as três linhas mestras existentes acerca da responsabilidade social – progresso econômico, justiça social e proteção ambiental –, inauguramos a quarta geração da responsabilidade social no Brasil, que se perfaz na Lei Anticorrupção, regulando as relações entre Governos e Negócios, não obstante a preservação de outras leis relacionadas ao tema (improbidade, licitações etc), as quais permanecem hígidas e aplicáveis de forma cumulativa à Lei 12.846/2013.

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 226.

[2] RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. 2ª ed. Tradução de OLIVEIRA, Osório de. Campinas: Bookseller, 2002, p. 215.

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