A participação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos julgamentos criminais nos Tribunais

04/03/2015 às 17:03
Leia nesta página:

O desequilíbrio entre acusação e defesa nos julgamentos criminais. A mitigação do princípio da paridade de armas e da ampla defesa.

Resumo

 

Este artigo abordará o desequilíbrio entre acusação e defesa nos processos criminais, uma vez que o Ministério Público pode emitir parecer nos tribunais e a Defensoria Pública, não.

Procura-se solucionar a questão, possibilitando ao órgão da defesa também emitir sua opinião.

 

Introdução

 

A Constituição Federal de 1988 garantiu direitos para todos aqueles que se encontrarem em posição de acusado em uma demanda judicial de natureza criminal.

Se é verdade que a Carta da República erigiu o Ministério Público à condição de um quase quarto poder, também é verdade que consagrou o princípio do contraditório como um dos basilares para a obtenção plena do estado de direito.

A forma atual é vista como antidemocrática, uma vez que somente o órgão da acusação pode lançar mão de um instrumento tão poderoso como o parecer, ficando os acusados em posição de relevante desvantagem.

Os artigos que contemplam esse desequilíbrio (610 e 613 do Código de Processo Penal) são dispositivos de uma época em que o estado brasileiro se ufanava por acolher como dogma o fascismo italiano.

No estágio atual da sociedade brasileira a impossibilidade de um dos sujeitos da relação processual ficar impedido de se manifestar na segunda instância fere violentamente princípios que garantem o justo julgar.

Alguns pontos sobre a Constituição de 1988

 

 

Em 31 de março de 1964, o Marechal Olímpio Mourão rumou com sua tropa de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, lançando o país na página mais infeliz de toda a sua história.

Estava dado o golpe.

A frágil democracia brasileira, que sobrevivera à ditadura da “Era Vargas”, recebia agora seu golpe mais duro.

O governo de João Goulart, que havia assumido o cargo com a renúncia de Jânio Quadros, esfacelara-se naquela manhã.

Três anos depois, em 1967, foi promulgada uma nova Constituição, com ares próprios para aquele período cinzento.

Os generais se revezavam no poder. A Emenda de 1969, francamente inspirada nos Atos Institucionais, em especial ao Ato Institucional nº 5 (AI5), ceifara qualquer resquício de democracia.

Não se podia mais votar para presidente da República, o Congresso Nacional foi fechado e a tortura, institucionalizada.

O Decreto-Lei foi a forma mais ordinária de se fazer direito.

Muitos foram os que pagaram com a vida por pensar diferente. Os porões do regime viram pessoas sendo “suicidadas”.

Natural que uma constituição daquele período representasse o chamado estado de não-direito.

Um parêntese: na seara criminal, o processo de fascistização iniciou-se com a constituição “polaca” e foi incrementado com o Código de Processo Penal de 1941, o famigerado “Código Rocco”, do totalitarismo italiano.

Nos anos de chumbo houve o recrudescimento das garantias penais. Se o sistema já era fascista, a ditadura escancarou o atropelo de mínimas garantias do cidadão.

Esgotado o modelo ditatorial, convocou-se finalmente uma assembleia constituinte para a elaboração de uma nova Carta, uma vez que já recuperado o status de democracia.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de outubro de 1988, precisou representar uma cisão com o ordenamento jurídico anterior, sendo muito mais arejada e erigindo alguns órgãos a condições antes inimagináveis.

Foi assim com o Poder Judiciário e a criação do Superior Tribunal de Justiça, devido à possibilidade de interposição do chamado Recurso Especial, que antes era conhecido e processado pelo Supremo Tribunal Federal com o nome de Recurso Extraordinário, nomenclatura que até hoje permanece para a salvaguarda de questões constitucionais.

A Advocacia-Geral da União também foi contemplada pela Carta da República. Criada pela Lei Complementar de 1973, a AGU é considerada como órgão essencial à justiça e com atribuição de centralizar questões atinentes à União federal, tendo já atuado em 20 milhões de processos.

A Emenda Constitucional nº 45 criou o Conselho Nacional de Justiça, hoje funcionando a plenos pulmões, com a participação de diversos outros órgãos.

A mesma Emenda Constitucional 45, socorrendo a Constituição Federal, deu mais garantias ao Ministério Público, ampliando as prerrogativas de seus membros.

A advocacia como um todo também foi colocada como indispensável no estado de direito. Hoje não se pensa mais em democracia sem a participação do advogado: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”{C}[1]{C}.

A Defensoria Pública também mereceu destaque na Carta da República. Em seu art. 134, afirma: A Defensoria Pública é instituição essencial à função do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”[2]{C}.

A Defensoria Pública – seja estadual, seja federal - tem hoje autonomia funcional e administrativa, com todos os direitos e deveres consagrados pelo parágrafo 2º.

Conhecida a posição ontológica que hoje possui a Defensoria Pública, passa-se agora ao questionamento sobre a viabilidade de poder, ou não, emitir parecer nos julgamentos em segundo grau de jurisdição, nos recursos de apelação, em sentido estrito, agravo em execução, bem como em ações autônomas de impugnação, como o habeas corpus e a revisão criminal.

O Ministério Público, a Defensoria Pública e o Parecer.

 

O Ministério Público oficia em todas as etapas do processo criminal. Ele oferece a denúncia, participa da oitiva das testemunhas, faz alegações finais.

Ao depois, elabora as razões ou contrarrazões do recurso, assim como a defesa.

Até aí é tudo igual.

A mudança começa quando da elaboração do parecer. O parquet elabora um parecer; a defesa, não.

Diz-se que a atuação do Ministério Público em segundo grau de jurisdição é na condição somente de fiscal da lei, ao contrário do promotor de Justiça e do procurador da República que atuam como verdadeira parte.

Não parece, todavia, a melhor solução.

O professor ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ leciona: “Em verdade, o Ministério Público continua, no Tribunal de Justiça, a possuir o mesmo código genético que caracteriza o exercício de suas atribuições no âmbito da Justiça Criminal. Age como parte formal – sujeito da ação e não da lide – buscando a verdade material e o atingimento da Justiça, seja ela contrária ou favorável aos interesses do acusado”[3]{C}.

Como bem explicitado acima, o procurador de Justiça e o promotor de Justiça (no caso das demandas estaduais) têm o mesmo código genético.

A carreira é a mesma, sendo certo que o procurador de segunda instância atuou um dia na primeira.

Mais uma vez, importante citar o entendimento do citado doutrinador: “O fato de emitir parecer e de, em sua conclusão, ‘opinar’ pelo provimento ou não do recurso, não significa que deixou o Ministério Público de agir como parte. Conclusão diversa levaria a conceber-se um processo com apenas uma parte – o acusado – o que nos parece um verdadeiro absurdo, notadamente diante do princípio acusatório que norteia a persecução penal pátria”[4]{C}.

Como o procurador é um representante do Ministério Público, não raro se percebem pareceres com carga repressiva muito maior do que o trabalho realizado pelo Ministério Público em primeiro grau.

Demais disso, fica a indagação: que tipo de contraditório é possível em uma situação como essa, em que uma das partes se coloca numa posição tão vantajosa, a ponto de lançar um parecer? Portanto, fica o princípio da paridade de armas absolutamente mitigado.

Como se pode depreender, se não se têm iguais oportunidades de influir no curso da ação, não há falar em paridade.

JOSÉ FREDERICO MARQUES naquela época já pontuava: “Segundo nos parece, o texto mencionado só se afina com os princípios de nosso processo penal se for entendido em termos restritos. O procurador-geral deve ter vistas dos autos não para nele oficiar, e sim para tomar conhecimento da causa e acompanhar seus trâmites no Juízo ad quem{C}[5]{C} (grifei).

Como bem enfatizou o professor FREDERICO MARQUES, o Ministério Público deveria ter vistas dos autos do processo para tomar ciência e fazer o correto acompanhamento, uma vez que o parecer emitido por somente um dos órgãos fere o princípio do contraditório e o princípio da paridade de armas.

A questão reveste-se de tamanha importância que o professor português JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES, ao se manifestar sobre a questão na Europa, fez a seguinte abordagem: “Relativamente à tramitação do recurso, o Código mantém a vista inicial ao Ministério Público no tribunal (art. 416). A possibilidade de o Ministério Público emitir parecer no tribunal superior foi objecto de recente apreciação pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade. Por acórdão de 6 de maio p.p. (1987), o Tribunal considerou inconstitucional o artigo 664º do Código de Processo Penal (de 1929, que continha a mesma redação do atual art. 416º). Se bem compreendemos, na decisão deste Alto Tribunal, aliás excelentemente fundamentada, a linha-força da argumentação reside mais na violação do contraditório que do princípio de igualdade de armas. Qualquer que seja o rigor da decisão, ela parece ter ido além da intenção do Tribunal. Não se afigura passível de censura constitucional o Ministério Público ter vista do processo. É uma via processual legítima de transmissão dos autos. A outra (notificação e confiança do processo) é estranha à posição do Ministério Público como órgão de justiça. Mesmo a aceitar-se a argumentação expendida, é de perguntar ser uma interpretação conforme à Constituição levaria à inconstitucionalização do artigo, ou antes à sua leitura num sentido alternativo: de que a vista é um mero acto de transmissão dos autos (limitando-se o Ministério Público a apôr o ‘visto’) ou de que é admissível o parecer mas deve conceder-se à outra parte o direito de resposta” [6]{C} (grifei).

É justamente nesse ponto que encontramos o maior ferimento ao princípio do contraditório.

O Ministério Público, órgão da acusação, se manifesta também em segundo grau de jurisdição.

O parquet acompanha o inquérito, oferece a denúncia, colhe depoimentos de testemunhas e do acusado, fala em alegações finais, tem a possibilidade de arrazoar seus recursos e – ao final – ainda emite parecer.

Emite o parecer não só nos recursos, mas também nas ações autônomas de impugnação, como no caso do habeas corpus.

Aliás, no caso do habeas corpus a questão ainda é mais grave!

O rito do remédio heroico é célere, devendo ser julgado o writ após uma rápida instrução, com o pedido de informações para a autoridade tida como coatora, e a volta dos autos conclusos ao desembargador ou ministro relator.

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A demora deve-se, fundamentalmente, aos dias em que o Ministério Público demora para firmar seu parecer.

Por oportuno, é bom frisar que muitas das impetrações de habeas corpus se devem à decretação de prisão preventiva requerida pelo parquet, em que a defesa não se manifesta!

Parece nítido que o parecer ofertado pelo órgão da acusação viola não somente o princípio da paridade de armas (o que já seria grave), mas vai além, ao vulnerar o próprio princípio do contraditório.

Nessa marcha, o melhor entendimento seria o de oportunizar à defesa a possibilidade de também emitir o seu parecer nos recursos.

Tal ato acabaria com questionamentos sobre a posição hierárquica inferior da defesa nos processos criminais.

A Defensoria Pública, organizada em quase todos os Estados e também na União, deve ser o órgão legitimado para se manifestar junto aos tribunais, tanto nos recursos interpostos nos tribunais de justiça e tribunais regionais federais, quanto nos tribunais superiores, onde o Ministério Público continua a lançar seus pareceres.

Como dito no capítulo anterior, a Constituição Federal e a Emenda Constitucional 74 aumentaram as funções da Defensoria Pública, incrementando sua participação na vida da República.

Faz tempo que a Defensoria já atua de algum modo nos tribunais, mas não foi ainda elevada à condição de emitir peça tão importante para o deslinde da causa, como é o parecer.

Os problemas práticos que se apresentam em função da participação maior do Ministério Público nas demandas nos tribunais são inúmeros.

Pense-se em um caso de vítima abastada, com situação financeira extremamente favorável, e no réu, por sua vez, hipossuficiente (tão comum na nossa sociedade).

A vítima ou sua família se habilitam como assistente de acusação, contratando advogado, ao passo que o acusado, pobre, não tem condições financeiras para arcar com os honorários de advogado.

Em primeiro grau, já existe um promotor para acusar, juntamente com o assistente de acusação.

O réu se defende com seu competente e combativo defensor.

Em caso de condenação, o acusado recorre. O processo desce para contrarrazões do Ministério Público e depois do assistente de acusação.

Quando retorna para a segunda instância, receberá um parecer de um procurador de Justiça ou de um procurador regional da República, que possuem, como já dito, o mesmo DNA daquele que atuou na primeira instância.

Ora, nada mais ignominioso, aviltante e antidemocrático.

A posição desse acusado é amplamente inferior ao do órgão da acusação.

Se é assim, não parece haver motivos que justifiquem que o parquet elabore o seu parecer e a defesa, não.

Convém ressaltar que não só os assistidos fazem jus ao trabalho de emissão de parecer nos tribunais, mas os réus que possuem advogados particulares também têm o mesmo direito.

Quanto ao acusado que tem advogado, é a Defensoria Pública também a legitimada para elaborar o parecer técnico.

Pensar de outra forma seria vilipendiar o direito daqueles que possuem advogado, e que continuarão a fazer seu trabalho arrazoando recursos, impetrando habeas corpus e etc. O parecer é que seria firmado pela Defensoria.

Seria o parecer da defesa neutro? Não. Mas o parecer do Ministério Público também não é neutro.

Aliás, em sede de Ciências Humanas, não há falar em neutralidade, uma vez que a atividade de hermenêutica jamais será neutra. A função do intérprete decorre de diversos elementos, sendo impossível a neutralidade.

Conclusão

 

A luta para se chegar ao estado democrático de direito é árdua.

O Brasil foi Colônia, tornou-se Império, logrou atingir independência.

Em 1889 houve o golpe que proclamou a República, mas o país continuou profundamente atrasado, com problemas sociais imensos e um legado de escravidão daquele século.

Em 1930 o país começa a se industrializar, todavia o governo de Getúlio Vargas promulga uma Constituição largamente inspirada no regime totalitário fascista italiano. É nítido o viés antidemocrático, a começar pela presença de Francisco Campos como seu Ministro da Justiça.

Os anos se passam e o arremedo de democracia é desfeito com o golpe militar de 1964, que aniquila com os hoje chamados “direitos fundamentais”.

Com a volta da democracia e a promulgação da Constituição da República de 1988, há forte tentativa de garantir aos cidadãos – em especial para aqueles que se encontram na condição de acusados em processos criminais – condição de igualdade nos julgamentos.

Nesse sentido, alguns órgãos assumiram grande relevo, como no caso do Judiciário com a criação do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça.

O Ministério Público e a Defensoria Pública também foram agraciados com o incremento de suas prerrogativas e funções.

Portanto, não é crível que haja descompasso entre um órgão e outro. Mais que isso: desequilíbrio entre acusação e defesa.

Não oportunizar o parecer técnico para a defesa e oportunizar para a acusação importa em descredenciar o princípio da igualdade das partes.

Mais que isso, o princípio do contraditório se resta hostilizado.

Como afirmado no decorrer deste ensaio, o DNA do órgão da acusação que atua em primeiro grau de jurisdição é o mesmo DNA daquele que representa o Ministério Público nos tribunais.

Nesse passo do garantismo penal, é intolerável que a defesa fique em posição tão desfavorável em um processo no qual a mais aguda e penetrante intervenção estatal poderia se fiar, a saber, a intervenção criminal.

Como cediço, o Direito Penal é a ultima ratio, a última trincheira do aparelhamento judiciário, tanto que não se pode lançar mão da seara criminal, a não ser se impossível a utilização de qualquer outro ramo do direito.

Assim, conclui-se que a Defensoria Pública deve emitir parecer técnico como imperativo em um Estado que se quer constitucional e democrático.

Referências bibliográficas

 

CRUZ, Rogério Schietti Machado. Revista dos Tribunais, março de 1997.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, Vol. IV. Forense, 1965.

RODRIGUES, José Narciso da Cunha, apud CRUZ, Rogério Schietti Machado, op. cit.

{C}[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Cap. IV, Seção III, Art. 133. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

{C}[2] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Cap. IV, Seção III, Art. 134. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

[3]{C} CRUZ, Rogério Schietti Machado, Revista dos Tribunais, março de 1997.

[4]{C} CRUZ, Rogério Schietti Machado, op. cit.

[5] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, Vol. IV, p. 220. Forense, 1965.

[6] Recursos, in: Jornadas de Direito Processual Penal, apud Rogerio Schietti, op. cit.

Sobre o autor
Wallace Martins

Advogado criminal. Professor dos cursos de Pós-Graduação da Universidade Cândido Mendes

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