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As restrições existentes na celebração de tratados internacionais no Direito Tributário

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01/02/2003 às 00:00
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A problemática das competências

Haja vista a competência exclusiva outorgada pela Constituição Federal de 1988 aos Estados-membros e aos Municípios para legislar sobre determinados tributos, fica a União limitada a apenas determinar-lhes regras gerais.

Para que fique clara a competência legislativa de cada ente tributante, vale elencar os principais impostos atribuídos a cada um:

União: imposto sobre importação de produtos estrangeiros (II); imposto sobre exportação de produtos nacionais (IE); imposto sobre a renda (IR); imposto sobre produtos industrializados (IPI); imposto sobre operações financeiras (IOF); imposto sobre propriedade territorial rural (ITR).

Estados e Distrito Federal: imposto sobre transmissão causa mortis e doações (ITCMD); imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS); imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA).

Municípios: imposto sobre propriedade predial e territorial urbana (IPTU); imposto sobre transmissão inter vivos, por ato oneroso (ITBI); imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS ou ISSQN).

Ora, pelo exposto em tópicos anteriores, se a União não pode fixar normas sobre matérias que não sejam de sua competência, também não pode celebrar tratados a respeito das mesmas, sob pena de responsabilidade no âmbito interno.

Deve-se lembrar ainda que também não possuem os Estados-membros e Municípios legitimidade para firmar tais tratados, devido ao fato de os mesmos não possuírem representação internacional.

Notamos, assim, um grande conflito entre o sistema jurídico interno e o Direito Internacional, que consiste justamente na impossibilidade de o Brasil tomar parte em tratados concernentes a matérias de competência legislativa de outros entes que não a União.


Análise da doutrina de opinião oposta

Há na doutrina muitos que afirmam a possibilidade de a União firmar tratados internacionais, ainda que sobre matérias de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios. Tal posição se funda na idéia de que a União, por representar o Estado brasileiro, tem total legitimidade para firmar tais tratados, haja vista estar atuando em nome da nação. Chega-se ainda a afirmar que, por o tratado passar pela aprovação do Congresso Nacional, o qual é parcialmente formado por representantes dos Estados-membros, estes estariam, também, aprovando o tratado em questão.

Ora, tal assertiva não pode ser verdadeira. Tal posição não passa de um pretexto para violação da autonomia outorgada aos Estados-membros, Municípios e Distrito Federal, assim como ao princípio federativo, tutelado pela Carta Magna.

Se assim fosse considerado, não seria necessário um tratado para que a União interviesse na competência dos outros entes tributantes, mas bastaria uma lei ordinária federal, visto que esta também passa pela aprovação do mesmo Congresso Nacional.

Esta visão simplista ignora o complexo sistema traduzido pela Constituição Federal para a manutenção do federalismo, que, ao outorgar competências legislativas aos Estados-membros, concede-lhes total autonomia para criar leis mediante processo legislativo próprio.

Não resta dúvidas, ainda, de que ao firmar tratados internacionais a União está atuando em nome da nação. Entretanto, o mesmo se dá quando, mediante lei complementar, a União legisla sobre normas gerais de direito tributário. Mas ainda neste caso, a Constituição Federal determina a limitação da atuação da União, não sendo possível, mesmo que através de lei complementar, mesmo que em nome da nação, a violação de tal norma constitucional.

A União desempenha, sem dúvida, importante papel em um Estado Federal, mas, ainda assim, não pode violar o princípio federativo e o rígido sistema imposto pela Carta Magna, que determina a competência de cada ente público para legislar.

Os que acreditam que, por representar o Estado brasileiro no plano internacional, a União pode firmar tratados internacionais livremente, sem qualquer observância às normas constitucionais, ignoram que os tratados internacionais firmados pelo Brasil representam, no plano interno, normas jurídicas e, como tal, devem obedecer a todos os requisitos para o processo legislativo, assim como as competências determinadas pela Constituição Federal.

Ora, se a União simplesmente decidisse emitir leis ordinárias ou leis complementares tratando de matéria de competência legislativa dos Estados-membros ou dos Municípios, não haveria dúvidas quanto à inconstitucionalidade de tais atos, ainda que afirmado seu interesse nacional. Então por que tentar validar tais atos quando se trata de tratados internacionais?

O operador do Direito deve, sem dúvida, encarar o Direito como um sistema, buscando sempre uma solução para todo conflito de normas. Entretanto, não pode utilizar tal escusa para ignorar os princípios definidos pela Constituição Federal. Nota-se claramente um conflito existente entre o sistema jurídico interno e o Direito Internacional, que chega a inviabilizar, de certa forma, a integração do Brasil com outros países, mas, ainda que visando uma solução para tal dificuldade, não podemos ultrapassar os limites impostos pela Lei Maior.


Tratados Internacionais e o Direito Tributário contemporâneo

Surge uma grande dificuldade para o país em face dos outros entes de direito público externo, pois, se um tratado destes é firmado pelo Brasil, ele tem plena validade no Direito Internacional, de modo que a obrigação é licitamente assumida pelo país. No entanto, o mesmo fica impedido de cumpri-la, haja vista a inconstitucionalidade do ato jurídico interno que internalizar os preceitos previstos pelo tratado.

Devemos crer que o conflito supracitado é inaceitável em uma época em que a globalização alcançou tais níveis que já caminhamos, ainda que a passos lentos, a um mercado comum, havendo, inclusive, previsão constitucional para tanto (art. 4º):

"A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações."

No sistema adotado pela Carta de 88, a competência legislativa sobre os tributos denominados de "impostos sobre o consumo" foi outorgada aos Estados-membros e aos Municípios.

Diferente de outros países que adotaram um único imposto sobre o consumo — como é o caso dos países europeus, que possuem o Value Added Tax (ou IVA - imposto sobre valor agregado), de competência federal — no Brasil o imposto sobre consumo foi dividido em dois, quais sejam o ICMS e o ISS.

O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que incide sobre operações mercantis, serviços de transporte interestadual e intermunicipal e serviços de comunicação, é de competência legislativa dos Estados-membros; e o ISS ou ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), que incide sobre quaisquer serviços que não aqueles abrangidos pela hipótese de incidência do ICMS, é de competência legislativa dos Municípios, apenas cabendo tal competência à União no caso de existência de Territórios Federais — que integram a União, não possuindo autonomia própria —, os quais não existem nos tempos atuais.

Ora, como imposto manifestamente mais relevante ao país, o imposto sobre o consumo não pode ficar de tal forma alheio ao plano internacional. Como pode ser possível um mercado comum sem um mínimo de harmonização das normas a respeito de tal tributo?

Faz-se necessário, portanto, repensar a estrutura do atual sistema constitucional, de modo, ou a alterar a atual distribuição de competências legislativas, concentrando o "poder de tributar" nas mãos da União, ou a modificar o sistema vigente de integração dos tratados internacionais.


Conclusão

O aqui afirmado de que se devem analisar os tratados em sua dicotomia, como dois atos distintos, não pode ser considerado válido no Direito Internacional para todos os países, mas apenas para países que adotam o mesmo sistema de "integração de tratados" que o Brasil.

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O Direito Internacional, diferente das outras áreas do Direito, possui ainda conceitos muito vulneráveis, não sendo utilizados pelo seu rigor científico ou pela noção de justiça, mas sim como instrumentos de conveniência dos Estados, de tal modo que devemos crer que possui ele, até o momento, um caráter muito mais político do que jurídico.

Ademais, o DI encontra dificuldades justamente por ser demais avançado à atual visão que se tem de Estado, assim como de soberania. Por esse motivo cada Estado adota uma posição e uma maneira diferente de encarar, tanto os tratados, como as responsabilidades perante os mesmos. Segue o Brasil, assim, uma posição extremamente tradicional e arcaica em relação ao DI, a partir do momento em que iguala a força dos tratados à das leis ordinárias, ignorando completamente sua responsabilidade perante os outros Estados sobre as obrigações assumidas internacionalmente.

Dessa forma, partindo da premissa de que o Brasil segue um sistema dualista, o qual mantém em planos diferentes as regras internacionais e as normas internas, deve-se acreditar que o tratado não é um único ato visto de formas diversas no âmbito interno e no internacional, mas traduz a existência de dois atos distintos, sendo no âmbito interno não um acordo de vontades, mas uma norma jurídica, de criação da União, que como tal deve obedecer aos princípios e atribuições delineados pela Constituição Federal.

Vemos, então, apenas possível a celebração de tratados internacionais pelo Brasil de matérias que não sejam de competência legislativas da União em um cenário em que o direito interno e o DI se integrassem, onde as obrigações assumidas fossem respeitadas, o que apenas se daria após o desenvolvimento das próprias noções de DI, como se dá na União Européia, onde existe uma clara tendência a uma entidade supranacional de modo a alterar os conceitos de Teoria Geral do Estado, principalmente o de soberania nacional.

No contexto atual, portanto, somos obrigados a acreditar ser negativa a resposta à questão inicialmente formulada, afirmando ser impossível a celebração de tratados internacionais pelo Brasil cujo conteúdo seja matéria de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios, de modo que todos os argumentos utilizados para validar tal ato, ou recaem na extrajuridicidade, ou não correspondem ao sistema vigente no país.


Notas

1ATALIBA, Geraldo apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 267.

2Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 69.

3KELSEN, Hans apud COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 28.

4ob. cit. p. 65.

5Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.10.

6KELSEN, Hans apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 271.

7ob. cit. p. 287.

8CANTO, Gilberto de Ulhôa apud CASSONE, Vittorio. Lei Complementar e Lei Ordinária - Hierarquia Possível, in 8º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário. São Paulo: IOB, 1999. p. 178.


Bibliografia

CASSONE, Vittorio. Lei Complementar e Lei Ordinária - Hierarquia Possível, in 8º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário. São Paulo: IOB, 1999.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2000.

GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

MELLO, Celso D. de Albuquerque Mello. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1968.

______. Direito Constitucional Internacional: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. São Paulo: Saraiva, 2000.

SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002.

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Sobre o autor
Ivan Ozawa Ozai

acadêmico de Direito na Universidade Mackenzie, São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OZAI, Ivan Ozawa. As restrições existentes na celebração de tratados internacionais no Direito Tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3713. Acesso em: 25 abr. 2024.

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