SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. O DISCURSO UNIVERSALISTA; 1.1. A proteção internacional do ser humano; 1.2. As objeções ao universalismo e a construção de um diálogo; 2. O SABER LOCAL E A DIVERSIDADE; 2.1. A autodeterminação dos povos; 2.2. O saber local e as diferentes sensibilidades jurídicas; 3. CASO “COMUNIDADE INDÍGENA XÁKMOK KÁSEK”; 3.1. Breve relato do caso; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
O debate acerca dos direitos humanos tem chamado a atenção das mais diversas áreas do conhecimento e ocupado um espaço central nas agendas dos Estados. Ocorre que novos desafios surgem, o que exige um entendimento mais amplo do significado do ser humano enquanto portador de certos direitos apenas e tão-somente por ostentar esta condição, independentemente de determinadas características, como etnia, gênero, idade e classe social.
Com efeito, a ideia de que o ser humano enquanto tal tem direitos que ninguém pode lhe subtrair e que nem ele pode alienar nasceu como teoria filosófica. Posteriormente, tal teoria foi acolhida pelo legislador e moldou uma nova concepção de Estado: estes direitos são o ponto de partida para a instituição de um autêntico sistema de direitos que limitam o Estado – o que se ganhou em concretude foi perdido em universalidade, já que cabe a cada Estado reconhecer estes direitos. Por último, para BOBBIO (1992, pp. 28-30), há o movimento de internacionalização e de universalização dos Direitos Humanos, que ganhou força em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
A universalização dos direitos humanos é, em muitos casos, apresentada como oposta ao relativismo cultural. As objeções podem ser resumidas em três argumentos centrais: a falta de adesão formal aos tratados internacionais; a falta de interesse prático na implementação dos direitos previstos nos tratados aos quais se aderiu; e a pretensa uniformidade na interpretação dos dispositivos contidos nos diplomas internacionais, como se houvesse uma única percepção valorativa do mundo ou como se todas as culturas fossem semelhantes. Um exemplo ilustra as duas primeiras objeções: a Declaração Universal de Direitos Humanos foi aprovada por somente quarenta e oito Estados e contou com oito abstenções – o que dificilmente poderia lhe conferir o adjetivo de “universal”, no sentido de todos os Estados do mundo a endossarem ou terem colaborado com a sua confecção. Sem olvidar que nesse período algumas potências ocidentais, que aprovaram a referida declaração, possuíam colônias e territórios sob seu domínio, outras viviam em ambiente de ditaduras, ou ainda impunham normas internas segregadoras de minorias – demonstrando a falta de interesse em concretizar os dispositivos contidos em documentos internacionais sobre direitos humanos ou que o motivo determinante para a adesão formal é econômico ou político.
A uniformidade na interpretação é criticada tendo em vista que determinados direitos, como o direito de propriedade, têm contornos diferenciados em sociedades que não possuem características burguesas ocidentais ou que adotam regime de produção de bens distinto do capitalista ou de economia de mercado (CERQUEIRA, 2006, p. 329).
O que não se deve perder de vista é que a universalização dos direitos não precisa ser compreendida como uma postura ou tese em conflito com o relativismo cultural. Essa possibilidade de conciliar duas visões tradicionalmente divergentes é a proposta a ser defendida no presente trabalho, dividida em três etapas.
Num primeiro momento será apresentada a importância do discurso universalista na proteção de direitos humanos. De uma forma geral, a universalização dos direitos humanos começa na titularidade, ainda que não se resuma a este aspecto. A partir do momento em que se reconhece que todo ser humano é titular de direitos, e que compete (principalmente) ao Estado a sua observância e garantia, este não se torna legítimo quando não protege estes direitos.
O desenvolvimento de sensibilidades jurídicas diferenciadas será estudado em seguida, com a finalidade de relativizar a compreensão ocidental-liberal de direitos humanos. Mas é importante ressaltar que este movimento de relativização não precisa ser identificado como uma ausência de padrões, em que tudo é legítimo ou que qualquer conduta é permitida dentro da cultura. O mundo contemporâneo tem se mostrado rico em diversidade e com tendência à aproximação (geográfica) de visões de mundo (diametralmente) opostas, em que o desafio é saber como interpretar essa diferença e como viver com ela, ao invés de tentar eliminar aquilo que não se compreende. As distintas atribuições de sentido podem ensinar mais do que assustar, depois que as pessoas se propõem a entender o outro sem julgá-lo, mesmo que aquele que faz isso não abra mão das suas convicções.
Posteriormente, será analisada uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o caso “Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs Paraguai”. Nesse julgado, o Paraguai foi considerado responsável pela violação ao direito de propriedade, à vida e a integridade pessoal, à proteção e garantia judicial, entre outras transgressões, em desfavor da comunidade indígena Xákmok Kásek.
Ao final, serão apresentadas as conclusões da pesquisa. Para viabilizar o trabalho, foi usada uma abordagem de natureza teórica. Para a operacionalização deste método foram utilizadas as técnicas metodológicas de pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e fichamento de textos.
1. O DISCURSO UNIVERSALISTA
1.1. A proteção internacional do ser humano
É comum que a linguagem adotada nos diplomas internacionais acerca de direitos humanos seja universalista. Um exemplo é a DUDH de 1948 que, seja no seu preâmbulo, seja em seus artigos, reitera que todos os homens nascem livres e iguais, com direito à vida, à liberdade, dentre outros direitos. O mesmo se nota na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (DADDH) de 1948 e na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena, em 1993. Não se deve esquecer que a história da proteção internacional dos direitos humanos não começou em 1948 com a DUDH ou com a DADDH, ou em 1945 com a Carta de São Francisco. Pode-se citar como antecedentes a criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919, a proibição da escravidão e as convenções sobre a proteção de feridos e enfermos em tempo de guerra de Genebra (RAMOS, 2012, p. 49).
Para CANÇADO TRINDADE (2008, pp. 18-21) a experiência internacional em matéria de proteção dos direitos humanos tem revelado o consenso quanto à sua universalidade, concebendo tais direitos como inerentes à pessoa humana, independente da forma de organização política ou social. Isso se constata com a DUDH de 1948, a adoção de dois Pactos de Direitos Humanos em 1966, a proliferação de instrumentos internacionais nos planos global e regional que visam proteger o ser humano. A “unidade conceitual dos direitos humanos veio a transcender as formulações distintas dos direitos consagrados em diversos instrumentos”.
Os direitos humanos seriam, nessa linha de raciocínio, um conjunto mínimo imprescindível de direitos para que um indivíduo possa viver com dignidade. O seu exercício e a sua titularidade ficam condicionados à qualidade de ser humano, sendo indiferentes outros fatores, como etnia, gênero ou domicílio. Incumbe ao Estado assegurar a proteção todos os direitos humanos, independentemente da forma de organização política, econômica e cultural que seja adotada.
RAMOS (2012, pp. 56-62) explana porque um Estado aceita se obrigar diante dos seus cidadãos (conferindo a estes uma gama de direitos) e perante a sociedade internacional, sem que haja uma contrapartida evidente, visto que um tratado internacional de direitos humanos somente contém deveres (aos Estados). Existem seis grandes motivos, ainda que nem todos exerçam influência da mesma forma e na mesma intensidade, que são a: 1) necessidade de um arcabouço normativo internacional na defesa de direitos humanos; 2) o anseio em adquirir legitimidade política na arena internacional; 3) a possibilidade de se estabelecer um diálogo ético entre os povos; 4) a motivação econômica, exigida para resguardar direitos mínimos dos investidores (defendida por países desenvolvidos) e para modificar normas comerciais e econômicas desfavoráveis à garantia de direitos (pleiteada por países em desenvolvimento). O quinto motivo se subdivide em dois, correspondente à atuação da sociedade civil organizada, em que uma é aquela que visa à proteção não encontrada no plano interno (5) e a outra é a ação desempenhada, em particular por organizações não governamentais de países desenvolvidos, com a finalidade de inserir na agenda política de outros Estados algum tema de direitos humanos (6).
Há a “construção de uma cultura universal de observância dos direitos humanos”, que se depara com antigos e novos desafios. Persiste a dificuldade de não se ter conseguido a “ratificação universal” dos principais tratados internacionais de direitos humanos, bem como há dificuldade no plano operacional, em que o Estado deve adequar o seu ordenamento jurídico interno ao disposto nos instrumentos internacionais e a utilização de alguns institutos de Direito Internacional incompatíveis com o sistema de proteção dos direitos humanos, como as reservas (CANÇADO TRINDADE, 2008, pp. 32, 36, 40).
Tradicionalmente, os direitos humanos são considerados direitos morais da mais alta ordem, transformados em direitos legais na esfera internacional. É por isso que a alegação da violação de direitos humanos traz consigo, constantemente, um paradoxo: a sua invocação é acompanhada da busca pela modificação de seu ordenamento jurídico interno. Ao se afirmar que todos têm direito a alguma prestação ou direito, é o mesmo que dizer que o Estado tem o dever de garantir a prestação ou direito (DONNELLY, 2003, pp. 11-2, 34). Daí advém a incoerência acima, em que um Estado somente é legítimo quando protege estes direitos, mas se nega a ratificar tratados internacionais sobre a matéria ou quando o fazem não mudam seu sistema jurídico interno.
A proteção de direitos humanos é considerada, por muitos, um princípio geral do Direito Internacional (e, portanto, uma fonte do Direito), de maneira que todos os Estados devem cumprir essas normas, independentemente de terem ratificado ou não todos os tratados que as estabelecem. Todavia, como não há consenso em torno desta obrigatoriedade e nem se todos os direitos humanos seriam princípios gerais de Direito Internacional, há a preferência pela utilização de tratados internacionais, que também vêm acompanhados de mecanismos de aferição de responsabilidade dos Estados. Mas e quando há a negativa na assinatura de um tratado? Sendo a proteção dos direitos humanos uma obrigação erga omnes (“gerando como consequência o direito por parte de todos os Estados da comunidade internacional de exigir seu respeito”), ou que pelo menos alguns direitos possuem a qualidade de jus cogens (“normas imperativas” de valores essenciais da sociedade internacional, hierarquicamente superiores formal e materialmente) seria desnecessário exigir o seu consentimento para que ele seja obrigado a respeitar estes direitos (RAMOS, 2012, pp. 55, 64, 68, 138).
No mesmo sentido, alguns institutos tradicionais de Direito Internacional, como as reservas ou as denúncias são incompatíveis com o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. As reservas podem ser definidas como uma declaração unilateral estatal, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de uma ou mais disposições do tratado em relação ao mesmo. Assim, o Estado pode informar aos demais que não se vincula a uma ou mais disposições, e/ou considera que certas disposições lhe são aplicáveis de outra maneira. A denúncia ocorre após a ratificação quando o Estado não quer permanecer sujeito ao tratado e se retira através de notificação por escrito. Em um tratado de direitos humanos a reserva ou a denúncia vai inviabiliza a própria meta do instrumento: a proteção do individuo. É difícil aceitar como obstáculo a diversidade neste ponto, pois em muitos casos, a linguagem utilizada já confere certa margem de liberdade para interpretar e para compatibilizar as diversas concepções de direitos humanos.
Estes obstáculos demonstram que ainda falta um longo caminho a ser trilhado com vistas à defesa do ser humano, sem esquecer as conquistas já alcançadas. KILLANDER (2010, pp. 150-5, 168) ensina que devido à linguagem imprecisa de muitos tratados internacionais de direitos humanos, os tribunais internacionais e órgãos quase judiciais estabelecem regras de interpretação. Por isso, estes têm ressaltado a importância do contexto de um tratado, que nessa matéria exige a efetividade de seus dispositivos, bem como a interpretação mais favorável ao ser humano (princípio pro homine) e dos documentos internacionais como instrumentos vivos, cujos termos têm significado dinâmico. Ou seja, os tribunais têm interpretado de forma extensiva os tratados internacionais, para garantir a mais abrangente proteção dos direitos humanos.
1.2. As objeções ao universalismo e a construção de um diálogo
Entretanto, a reiteração da universalidade não é suficiente para superar os problemas decorrentes da interpretação e aplicação dos tratados internacionais. Para RAMOS (2008, pp. 75-80) os principais óbices podem ser organizados em cinco grupos principais – são os argumentos filosófico, da falta de adesão dos Estados, geopolítico, cultural e desenvolvimentista.
O argumento filosófico se baseia na existência de diversas percepções valorativas do mundo, na qual nada é universal. A forma como os direitos humanos foram desenvolvidos, especialmente no ocidente, funda-se na visão antropocêntrica do mundo com cunho ideológico liberal, o que a faz destoar de visões com diferente fundamento. Nesse sentido, haveria diferentes concepções de direitos humanos, de individuo, de pessoa e de valores.
A falta de adesão dos Estados como objeção ao universalismo consiste na falta de adesão formal ou na falta de engajamento prático, em que a adesão serve apenas como discurso ou para efeito publicitário. A história da DUDH de 1948 demonstra isso, seja pelo inexpressivo número aprovações, seja pela distância entre o que se afirma e o que se pratica – em que alguns Estados que aprovaram a resolução não se preocuparam em concretizar os direitos humanos dentro de seu território ou por manterem colônias sob seu domínio. Haveria, então, o engajamento apenas para fins de política externa. A omissão ou a incoerência nas ações estatais, com fulcro em seu interesse econômico e político é outra dificuldade à tese universalista. Há semelhanças com o segundo argumento, todavia, o viés aqui é econômico.
O quarto obstáculo é a diferença existente entre as culturas. Alguns povos colocam a comunidade e seus direitos como superiores aos direitos individuais, em oposição à visão tradicionalmente apresentada de direitos humanos (em que há oposição entre individuo-sociedade, devendo aquele prevalecer). A última objeção é a de que os direitos humanos exigem algum grau de desenvolvimento para que sejam adequadamente protegidos. Aqui, em especial os direitos sociais são infringidos.
Independentemente da veracidade ou força das proposições, é possível concluir que a universalidade assumida como evidente por alguns é contestada. A questão que se levanta aqui é até que ponto estas afirmações lançam por terra o universalismo.
Desde o começo, a universalidade defendida aqui foi aquela que entende que todo ser humano é dotado de alguns direitos, sem os quais não consegue ter uma vida digna. Ainda que existam grandes diferenças entre o que se concebe por justiça, direito, ser humano, dentre outros conceitos, é possível afirmar que qualquer sociedade possui discussões acerca desses temas e das suas implicações. A dificuldade filosófica ou valorativa, portanto, pode ser mais a respeito do significado de direitos humanos e quais as consequências, do que a negação de sua existência.
Os direitos humanos foram construídos historicamente, por isso, o seu significado tem se modificado com o tempo e lugar. Quando se coloca a discussão nesse viés, como uma conquista que leva a reflexões, sem a tentativa de impor ou acabar com alguma cultura diferente, já é possível iniciar um diálogo. Nesse passo, o reconhecimento de direitos às pessoas, pode funcionar como um empoderamento ou emancipação destas, que podem optar por continuar ou não com as suas respectivas práticas culturais.
O argumento geopolítico, desenvolvimentista e a falta de adesão dos Estados também não são argumentos tão consistentes quanto podem parecer à primeira vista. Para RAMOS (2008, pp. 83-4), o uso político dos direitos humanos não difere do uso seletivo de outros temas de Direito Internacional, geralmente orientado política e economicamente. A crítica deveria ser dirigida à sociedade internacional e aos seus atores, os Estados (que são “produtores, destinatários e aplicadores da norma internacional”). Já o raciocínio baseado na relação riqueza-proteção de direitos humanos (que alega que somente é possível proteger direitos humanos quando se está em grau avançado de desenvolvimento) é desmentido pela história, em que muitos países ricos são marcados por exclusão social e por desrespeito aos direitos humanos.
As objeções ao universalismo têm o mérito de mostrar determinadas falhas nesta tese e de possibilitar o seu aprimoramento. SANTOS (2001, pp. 15-20; 2009, pp. 14-7) afirma que enquanto os direitos humanos forem construídos de “cima-para-baixo” haverá conflitos, em especial, porque o universalismo usualmente defendido carrega consigo forte carga ocidental-liberal incompatível com muitos valores presentes em outras sociedades e pela sua utilização política. Por isso, propõe a superação do debate universalismo contra relativismo, pautada no diálogo intercultural que reconhece a existência de incompletudes mútuas nas mais diversas culturas.
No tocante à necessidade de certo patamar de desenvolvimento econômico para proteger direitos humanos, em especial os direitos sociais, EIDE (2001, pp. 11-21) explica que existem resistências das mais diversas culturas e ideologias aos direitos sociais como direitos humanos. A indivisibilidade e integração entre as diferentes espécies de direitos têm sido afirmada reiteradamente por documentos internacionais, mesmo que continue encontrando resistência. No plano internacional, os direitos sociais e culturais foram aceitos antes dos direitos civis e políticos, servindo como um padrão mínimo necessário para que uma pessoa possa viver com dignidade, independência e liberdade. Mesmo as ideias de que direitos civis e políticos não têm custo, diferentemente dos direitos sociais e culturais que seriam caros, têm sido rebatidas por diversos autores (AMARAL, 2001). Logo, esperar que um Estado fique rico ou tenha recursos não pode servir de argumento contrário à normatividade dos direitos humanos e nem contra a sua indivisibilidade.
Desta forma, a proposta para começar o diálogo é defender que todo ser humano é dotado de um conjunto mínimo de direitos imprescindível para que um indivíduo possa viver com dignidade. A partir daí, permite-se a realização de novas reflexões sobre o tema para adquirir legitimidade local. Os direitos humanos carregam consigo a força de resistir à vontade da maioria e aos abusos estatais, por isso é importante diferenciar práticas culturais de posturas ditatoriais ou regimes totalitários sem legitimidade.
Como dito alhures, os direitos humanos não são um dado, mas antes, constituem uma conquista política sujeita às novas leituras. Logo, a participação da população e dos movimentos sociais é importante na construção do significado dessas normas, como emancipação dos indivíduos e não imposição de uma única visão de mundo. A dificuldade que decorre aqui é o caminho para estabelecer o colóquio e identificar o significado do direito para a população. Para isso, será apresentada uma proposta que tem fulcro no relativismo cultural, não como aquele geralmente atacado, que aceita toda e qualquer prática que tenha fundamento na cultura, e sim, como saber local legítimo.
2. O SABER LOCAL E A DIVERSIDADE
2.1. A autodeterminação dos povos
Um dos documentos que reforça a tese universalista, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 1º, item 1º, reconhece que todos os povos têm direito à autodeterminação. Este dispositivo endossa que a escolha dos princípios norteadores de qualquer sociedade compete à mesma, o que exige respeito pelas demais, mesmo que estas não os adotem.
Por isso, não se deve exigir que apenas se respeite as diferentes culturas que antes tenham assimilado e implementado aquilo que se entende por direitos humanos na visão ocidental-liberal, por não haver este pré-requisito (BARBOSA, 2003). O respeito deve existir mesmo por aquilo que, inicialmente, não se compreende.
Sem respeito é difícil iniciar a conversa, na medida em que não haverá o reconhecimento da diferença e sim, como é comum, haverá a declaração da superioridade de uma cultura (geralmente a ocidental) sobre as demais (que não assimilem seus valores).
Este caminho teria o mérito de descontruir paradigmas, como o da luta do bem contra o mal, sendo o bem representado pelos países ocidentais, sem alternativas válidas. Um exemplo dado por CERQUEIRA (2006, pp. 331, 334-54) se refere à proteção constitucional indiana de direitos humanos, que sofreu influência dos instrumentos internacionais. Existem diferenças procedimentais, em que os direitos humanos não são protegidos como cláusulas pétreas e nem têm limitações formais qualificada, diferentemente do sistema de repartição de poderes indiano, que é mais difícil de ser modificado. Depois, existem disparidades materiais, correspondentes ao que se diz “a mais” (referente à liberdade de religião), “diferente” (no tocante à igualdade, mesmo que mantenha um sistema de castas; abolição do sacrifício de esposas, dentre outras especificações) e “a menos” (não há proteção contra a tortura) do que se diz nos documentos internacionais e constituições ocidentais. A grande maioria das mudanças legislativas somente encontrou eco na sociedade após a ocorrência de amplo debate. A discussão permitiu a mudança, a rejeição e a adoção de novas práticas efetivas, prescindindo de importação de fórmulas prontas ou imposição de condutas ocidentais (o silencia normativo sobre tortura e a aceitação social desta são os exemplos mais eloquentes).
Tudo o que está se tentando evidenciar é que o respeito ao “outro” exige que, pelo menos, se tente compreendê-lo como diferente, sem tentar impor um modelo do que seria “normal” ou “aceitável”. Para isso, mister se faz entender a diversidade norteada pelo saber local.
2.2. O saber local e as diferentes sensibilidades jurídicas
A questão a ser levantada não é se é possível adentrar em outros sistemas jurídicos, mas saber se é possível trazer outras percepções para entender o julgamento a ser feito. Um exemplo seria indagar, ao se deparar com a diferença, em qual sistema jurídico tal conduta se baseava quando foi praticada. Ou ainda, o que é justiça e Direito para outras culturas?
Isto requer a análise de argumentos, sem olvidar da perspectiva universal, que indica o caminho: a proteção do ser humano. O problema da aplicação pode ser materializado, quando se alega a defesa do individuo, porém, este sente que foi violado ou desrespeitado, por não ter havido o debate com a perspectiva local e, nesse diapasão, carece de legitimidade aos olhos de quem está sendo (des)protegido.
Existem vários motivos que justificam isso. GEERTZ (2001, pp. 48-53) explica que não tem fundamento dizer que quem pensa diferente tem a visão inversa ou não tem nenhuma. Não foi a teoria antropológica, por vezes acusada de relativista, a culpada por produzir argumentos contrários ao absolutismo no pensamento. Ao revés, foram os dados antropológicos e a história que fizeram isso. Portanto, o medo de que essa postura implique na ausência de opinião sobre o que é certo, é verdadeiro ou é bom padece de ausência de fundamento, porquanto as pessoas, mesmo diante da diversidade, continuam comprometidas com seus valores, em geral, provincianos. A discussão entra mais em foco, quando a pergunta passa a ser como viver com a diversidade, com mais compromisso em entender o “outro” ao explicar suas práticas, sem ter pressa em julgar.
Um mundo culturalmente universal com pequenas variações não só é um objetivo inatingível, como este teria que pagar como preço a impossibilidade de construção da alteridade. Frisa-se: não se quer defender que a monogamia é mais natural ou melhor que a poligamia ou vice-versa, ou ainda que a propriedade privada é melhor que a propriedade comunitária ou o contrário. O fato é que sociedades com diferentes arranjos familiares e de produção existem. Uma única perspectiva se inclina a não enxergar a variedade de cores existentes.
Além disso, existem pelo menos outras duas razões para privilegiar, no momento da aplicação/compreensão/interpretação, o diálogo com a visão local. A primeira consiste na refutação do etnocentrismo e a segunda é o aumento da diversidade (em oposição à alegada uniformização ou homogeneização do mundo). O etnocentrismo, entendido como “a fidelidade a um certo conjunto de valores [que] faz com que, inevitavelmente, as pessoas fiquem ‘parcial ou totalmente insensíveis a outros valores’”, coloca o seu estilo de vida ou o seu modo de pensar acima do dos outros, como uma espécie da “narcisismo moral”. O aumento da diversidade rejeita o consenso universal ou acordos essenciais sobre assuntos normativos ou questões fundamentais, ao mesmo tempo em que, diante do avanço tecnológico, traz o pensamento diametralmente oposto para morar ao lado, como um vizinho, uma família ou até bairros inteiros constituídos de imigrantes com costumes diversos (GEERTZ, 2001, pp. 69-73).
O etnocentrismo cerceia a possibilidade da mudança de opinião após a reflexão acerca do que um indivíduo faz e pensa em contraste com o que os outros fazem e dizem. As fronteiras geográficas e a distância como limites à diversidade cultural têm cada vez menos importância e há aumento desta diversidade dentro da mesma sociedade Por isso:
A história de qualquer povo em separado e a de todos os povos em conjunto, como também, a rigor, a história de cada pessoa tomada individualmente, tem sido a história dessa mudança de ideias, em geral devagar, às vezes mais depressa; [...] Essas mudanças não se deram necessariamente para melhor, talvez nem mesmo em caráter normal. Tampouco levaram a uma convergência das opiniões, mas a uma mistura delas. [...] Em termos mais concretos, as questões morais provenientes da diversidade cultural (que, é claro, estão longe de ser todas as questões morais que existem), as quais, se é que chegavam a surgir, surgiam sobretudo entre sociedades [...], surgem agora, cada vez mais, dentro delas. As fronteiras sociais e culturais têm uma coincidência cada vez menor – há japoneses no Brasil, turcos às margens do Main e nativos das Índias Ocidentais e Orientais encontrando-se nas ruas de Birmingham –, num processo de baralhamento que já vem acontecendo há um bom tempo, é claro [...], mas que, em nossos dias, aproxima-se de proporções extremas e quase universais. (GEERTZ, 2001. Pp. 76-7).
Com efeito, a pluralidade presenta nas sociedades contemporâneas constitui um desafio para se pensar em dignidade humana ou direitos humanos. O sistema jurídico descreve o “mundo” e é influenciado por ele, fazendo com que as instituições legais traduzam a linguagem (da imaginação para a da decisão), o que cria um sentido de justiça. Daí é necessário representar fatos em linguagem de consequências específicas, visto que as sensibilidades variam em graus de definição, no poder que exercem sobre a vida social, frente a outras formas de pensar, nos meios que utilizam para apresentar eventos judicialmente e nos estilos e conteúdos. Toda sociedade tem a sua visão de mundo, dispondo os seus componentes em categorias distintas e aquilo que não está incluído nestas perturba a estrutura e deve ser corrigido. Nesse passo, quando se está diante do que é diferente, a pergunta a ser feita, como dito alhures, é em que sistema jurídico aquele ato estava fundamentado? A bússola que guia o raciocínio é o significado atribuído ao que é praticado, com vistas às estruturas mais amplas de significação, de forma que seja mantida organizada. Um sistema jurídico é distinto, e por isso tem outras concepções de pessoa, dignidade e justiça, porque enxerga o mundo de maneira distinta.
As formas diferentes de saber local permitem a compreensão de outras sensibilidades jurídicas e ilumina melhor a sensibilidade de quem está avaliando. Não se trata de um relativismo que endossa a validade de qualquer comportamento ou que diz que não é possível ter opinião sobre o que é certo ou bom. A respeito do tema, GEERTZ (1997, pp. 272-4) entende que:
[É] um relativismo que funde processos de autoconhecimento, autopercepção e autoentendimento com processos de conhecimento, percepção e entendimento do outro, que identifica, ou quase, organizando o que somos e entre quem estamos. Dessa forma, consegue contribuir para que nos libertemos de representações errôneas de nossa maneira de apresentar assuntos judicatórios (a dissociação radical entre fatos e leis, por exemplo) e obrigar que nossas consciências relutantes aceitem visões discordantes de como essas representações devem ser feitas (como, por exemplo, a visão dos balineses), visões essas que não são menos dogmáticas que as nossas, e tampouco menos lógicas. [...] Nada disso faz o mundo sair de foco, pelo contrário, torna-o mais visível.
O direito, para o autor, é saber local, como um complexo de caracterizações e suposições, histórias sobre acontecimentos, apresentadas por meio de imagens relacionadas a princípios abstratos. Portanto, o desafio contemporâneo para os direitos humanos guarda mais relação com o gerenciamento da diferença, já que o assunto tem sido mais invocado justamente onde e quando menos funciona ou onde e quando há mais conflitos. Isso não é um problema em si, porque (é exatamente essa controvérsia que) tem levado a novas reflexões, mudanças de opinião e mais consciência acerca do que se acredita e defende. O direito, ao lado de outras formações, como arte, história e tecnologia, influência e é influenciado pela sociedade, o que permite que sejam construídos e que construa novos paradigmas. A importação de leis nem sempre anda em consonância com a sociedade à qual se destina, na medida em que pode não haver compreensão da sensibilidade jurídica existente e pelo fato de outras formações culturais também exercerem influência e serem influenciadas pela comunidade, como a arte, a história e a tecnologia.
3. CASO “COMUNIDADE INDÍGENA XÁKMOK KÁSEK”
Para ilustrar que o reconhecimento da diversidade não é o mesmo que abrir mão da proteção dos direitos humanos, será apresentada uma sucinta descrição de um julgado da CIDH.
3.1. Breve relato do caso
A CIDH decidiu em agosto de 2010, o caso “Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai”. Em julho de 2009 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou, com fulcro na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), uma demanda contra o Paraguai, que deu origem ao processo. A petição inicial foi apresentada perante a Comissão em maio de 2001, admitida em fevereiro de 2003, gerando recomendações ao Estado em julho de 2008. Após a comunicação das recomendações ao Paraguai e da sua resposta, na qual se entendeu que as recomendações não foram atendidas, o caso foi submetido à CIDH.
Foi alegada a responsabilidade internacional do Estado pela falta de garantia do direito de propriedade ancestral da comunidade indígena Xákmok Kásek e de seus membros, contando hoje com 66 famílias, que desde 1990 reivindica seu território. Houve também, em decorrência da impossibilidade de ter acesso à terra, a configuração de vulnerabilidade alimentícia, médica e sanitária, ameaçando a sobrevivência e a integridade dos membros da comunidade. Na região objeto de disputa foi notada a presença de 17 etnias diferentes com 5 famílias linguísticas. A comunidade Xákmok Kásek, se originou de membros das aldeias Sanapaná e Enxet, que utilizavam o território em questão desde a primeira metade do século XX. Todavia, o Estado vendeu terrenos para financiar dívidas oriundas de guerra, sem consultar a população.
Desde então, as terras tem sido transferidas para proprietários privados e fracionadas progressivamente em estâncias, o que obrigou as comunidades indígenas que residiam na região a se concentrarem nestas. Ocorre que muitas limitações foram impostas às comunidades, que no caso da Xákmok Kásek residia na Estância Salazar, como a proibição de atividades tradicionais de subsistência e restrição à sua mobilidade, a ponto de terem sido contratados seguranças particulares para controlar entradas e saídas da propriedade.
No final de 2002, parte do território reivindicado foi adquirido pela Cooperativa Menonita e em 2008, 12.450 hectares da Estancia Salazar foram declarados como Área Silvestre Protegida sem consultar os membros da comunidade nem considerar sua reclamação, mesmo que 4.175 hectares da reserva formem parte de suas terras, requeridas desde 1990. A área reclamada tem 10.700 hectares de extensão, em que parte fica localizada na Estância Salazar e nos arredores de uma zona denominada “Retiro Primero” ou Mompey Sensap.
A Comissão solicitou a declaração da responsabilidade por violação a diversos direitos previstos na CADH, a saber, ao direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, direito à vida, garantia judicial e proteção judicial, direitos da criança, direito à propriedade privada, e desrespeito aos deveres estatais, como as obrigações de respeitar tais direitos e dever de adotar disposições de direito interno. A Comissão solicitou à CIDH que ordene o Estado a adotar certas medidas de reparação.
Os representantes da comunidade apresentaram por escrito suas solicitações, argumentos e provas, aderindo à demanda da Comissão e requereram a declaração da responsabilidade estatal por violação ao direito à integridade pessoal e solicitaram medidas de reparação. O Paraguai contestou e rebateu as pretensões da Comissão e dos membros da comunidade. As partes foram convocadas para uma audiência pública, de forma que pudessem ser ouvidas e apresentarem seus argumentos finais sobre as questões a serem decididas. A CIDH usou provas documentais e depoimentos para fundamentar sua decisão.
O Estado do Paraguai propôs a resolução amistosa do feito, reconhecendo a transgressão ao direito de propriedade da comunidade, ainda que não se considere imputável e requereu a suspensão do processo em face das contradições na denominação étnica da comunidade, o que poderia impossibilitar a titulação da propriedade. A Corte rejeitou os dois pedidos, visto que se quisesse, já teria resolvido amigavelmente a lide há muito tempo e nunca agiu concretamente nesse sentido. Depois, faz parte da história da comunidade essa diversidade étnica, não competindo à CIDH ou ao Estado determinar a identidade étnica ou nome da comunidade, não se constituindo em obstáculo para regularizar a situação da propriedade. A composição multiétnica da comunidade é um fato acreditado e o Estado o conhecia ou devia conhecer previamente. Não havendo razão para suspender ou extinguir processo.
Apesar da legislação paraguaia reconhecer e garantir o direito de propriedade aos povos indígenas, até o momento do julgamento não havia uma solução definitiva e nem foram adotada medidas adequadas para restituir o território ou conceder outras de igual qualidade e extensão. O Tribunal considerou a história da região, desde a sua colonização, para melhor situar os fatos atuais, sem pretensão de atribuir responsabilidade internacional para o período anterior ao da submissão à jurisdição da CIDH. Nesse passo, considerou que as vendas das terras foram realizadas ao arrepio das populações tradicionais. A expansão da agropecuária, o extermínio de animais e as limitações ao acesso do território por parte de proprietários particulares reduziram a mobilidade dos indígenas que ali habitavam e os transformou em mão-de-obra barata, dificultando o desenvolvimento de suas atividades tradicionais. Com fulcro nas provas e laudos periciais apresentados, a CIDH decidiu que o pedido feito pela comunidade era idôneo, com respaldo na história de ocupação daquele espaço.
O Tribunal considerou que o Estado não levou em consideração o requerimento indígena, ao tomar decisões sobre o território objeto de disputa sem assegurar a efetiva participação dos membros da comunidade. Como resultado, a Corte declarou o Estado responsável pelo descumprimento a diversos dispositivos da Convenção, ainda que de forma não unânime em alguns pontos.
A CIDH interpretou o art. 21.1. da Convenção, que trata da propriedade privada, reconhecendo a necessidade de proteção da propriedade, porém, com outra leitura, em que esta se concentra na comunidade ou grupo e não em um único indivíduo. Para as comunidades indígenas a relação com a terra não se restringe à posse, configurando um elemento material e espiritual do qual devem gozar plenamente. Logo, não há uma única forma de usar e dispor dos bens, defender o contrário significa tornar inócua a proteção da Convenção para milhões de pessoas. O reconhecimento de direitos específicos que definem o alcance e conteúdo da proteção dos direitos humanos.
O vínculo que enseja a possibilidade de (comunidades indígenas de) reivindicar a propriedade e posse de terras, mesmo que estejam sob domínio público ou privado, é a relação mantida com a terra. Enquanto houver a conexão, há o direito de pleitear o território, sendo que aquela pode se expressar de diferentes maneiras, conforme o povo indígena e seus costumes. Nesse sentido, a própria relação com a terra afeta a cultura desses povos e da sua forma de ser, ver e atuar no mundo, constituindo sua identidade.
O direito à vida foi desrespeitado pela omissão do estado em não garantir o mínimo de condições de vida digna, ao não restituir a propriedade da comunidade, que ameaçou a própria existência de seus membros. Quanto à garantia e proteção judicial, a conclusão foi que houve demora injustificada no procedimento administrativo de anos e até a ação judicial estava sem decisão há dois anos – o que configura a omissão estatal injustificada –, que não existia meio efetivo e com real possibilidade de recuperar a propriedade das terras.
A comunidade pediu que houvesse o reconhecimento do direito à integridade pessoal e cultural, individual e coletiva. Para a Corte, a integridade cultural guarda relação com o direito à vida, em que já foi reconhecida a ofensa e por isso não seria analisada novamente. Já a integridade pessoal foi caracterizada pelo sentimento produzido pela falta de acesso às terras tradicionais, a perda paulatina da cultura, a longa espera pela resposta do Estado e as condições miseráveis de vida. Assim, esse pedido foi procedente.
Quanto ao reconhecimento da personalidade jurídica, a CIDH entendeu que o Estado, ainda que não tenha sido completamente omisso, não garantiu acesso aos procedimentos de registro civil adequados à situação vivenciada pelos membros da comunidade. O direito das crianças foi ofendido pela condição de vulnerabilidade em que estas foram colocadas, pois muitas pessoas que morreram da comunidade eram crianças e as causas de morte podiam ser evitadas, ao mesmo tempo em que a língua tradicional e os ritos de iniciação masculina e feminina foram prejudicados, atingindo, em especial, o desenvolvimento e a identidade das crianças.
Ocorreu ofensa ao dever de não discriminação, visto a situação em que faltava recursos efetivos e instituições públicas para proteger os direitos da comunidade. A ausência de participação dos membros da comunidade em decisões que afetaram seu território e a prevalência da interpretação do direito de propriedade que privilegia os proprietários privadas também concretizaram essa infração.
Foram tomadas medidas de restituição, de reabilitação, garantias de não repetição e fixadas indenizações por danos materiais e morais.
A CIDH decidiu, por unanimidade, que o pedido de suspensão do processo devia ser rejeitado, que o Estado violou o direito à integridade pessoal, o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica e o direito das crianças. O tribunal, por maioria (voto dissidente do juiz Augusto Fogel Pedrozo), entendeu que o Estado violou o direito à propriedade comunitária, as garantias e a proteção judicial, o direito à vida, o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica para alguns membros e o dever de não discriminação.
CONCLUSÃO
O debate sobre direitos humanos tem amadurecido a partir de novos desafios, novas perguntas e novas perspectivas. Desta forma, o presente trabalho buscou, a partir da indagação sobre a relação entre universalismo e relativismo cultural, demonstrar que não é necessário que exista um conflito entre as duas visões.
Para tanto, é importante não abrir mão de algumas ideias de cada uma dessas posturas sem necessariamente incorrer em algumas conclusões mais comuns. A construção histórica do tema permitiu avanços que não devem ser abandonados. De todos, um dos mais relevantes é a importância da proteção do ser humano, independente de características pessoais. Nessa seara, o sistema internacional de proteção de direitos humanos deu e dá grandes contribuições. Uma delas foi o papel atribuído ao Estado, que é em muitos casos o principal infrator e o principal protetor dos direitos humanos, o que faz com que ele seja responsável internacionalmente por ambos: seja na mudança de sua estrutura para não ser omisso, seja para não agir de maneira excessiva.
Num segundo momento, não se deve esquecer que mesmo no plano internacional, que adota o discurso universalista de direitos humanos, há uma proliferação de instrumentos específicos, que permitem concluir, que mesmo que todos mereçam proteção, isso não significa que a atuação estatal tem que ser a mesma para todos. Pode ser que um determinado grupo, como crianças, idosos e deficientes, necessite do desenvolvimento de políticas específicas para atender as suas necessidades. Essa é, inclusive, uma das razões pela qual universalidade não é sinônimo de uniformidade.
Daí, para desenvolver maior sensibilidade à proteção de determinados grupos, o relativismo, não como ausência de posição sobre o que é certo ou que diz que tudo é legítimo dentro da cultura, pode ser um grande aliado enquanto demonstra o que é o saber local. Em outras palavras, ele relativiza a concepção ocidental-liberal dos direitos humanos ao ensinar que existem diferentes formas de elaborar essa proteção e de que o direito, como saber local, existe nas mais diversas sociedades. Portanto, muitas vezes a primeira pergunta não é como melhorar aquele povo ou ajuda-lo a se desenvolver, e sim em que sistema determinada população se baseia quando age – por mais estranho que seja o comportamento num contato inicial.
Para corroborar esse pensamento, trouxe à baila o caso da comunidade Xákmok Kásek, julgado pela CIDH, que interpretou os documentos internacionais para proteger o ser humano, independentemente de outras características, e foi sensível em sua decisão para reconhecer que existem direitos específicos para grupos específicos. O posicionamento contrário esvaziaria o sentido dos instrumentos internacionais particulares.
Nessa decisão, dois pontos merecem destaque, o primeiro é a interpretação conferida ao direito de propriedade e a relação dos demais direitos direitos com o acesso ao território requerido. O direito à propriedade comunitária não tem previsão legal explícita, o que exigiu um esforço interpretativo e argumentativo da Corte, que inclusive citou outros precedentes com a mesma ratio decidendi.
Os demais direitos violados, o foram de maneira direta ou indireta devido à falta de acesso às terras tradicionalmente ocupadas pela comunidade. O reconhecimento da diversidade trouxe à evidência a necessidade de ouvir aquele que é titular do direito, que pode ter uma visão um pouco diferente daquela que é predominante , e das distintas formas de conceber esses direitos. Quanto à este último aspecto, perpassou por toda a decisão a ofensa à dignidade conectada com a forma de ser e ver no mundo da comunidade e de suas práticas culturais. O direito à vida digna, por exemplo, foi desrepeitado pela proteção insuficiente do Estado em diversas áreas, mas foi citado que isso decorreu da conexão daquele povo com a terra e da sua cultura.
Essa postura, que não abre mão da defesa do ser humano e exige, para alcançar o seu fim, que se desenvolva novas sensibilidades jurídicas pode não responder à todas perguntas. Todavia, ela apresenta novas perguntas e, consequentemente, novas possibilidades para tratar de direitos humanos.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
BARBOSA, Denis Borges. O universalismo como opressão. 2003. Disponível em: <http://www.denisbarbosa.addr.com/universalismo.doc>. Acesso em 09.01.2013.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. O legado da declaração universal dos direitos humanos e sua trajetória ao longo das seis últimas décadas (1948-2008). In: GIOVANNETTI, Andrea (Org.). 60 anos da declaração universal dos direitos humanos: conquistas do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009, pp. 13-46.
CERQUEIRA, Luís Eduardo Bianchi. A pretendida universalização dos direitos humanos vs. realidade cultural – o caso indiano. In: FERREIRA JUNIOR, L. P; MACEDO, P. E. V. B. (Coords.) Direitos humanos e direito internacional. Curitiba: Juruá, 2006, pp.327-55.
DONNELLY, Jack. Universal human rights in theory and practice. 2. ed. Londres: Cornell University, 2003.
EIDE, Asbjorn. Economic and social right as human rights. In: __________; KRAUSE, Catarina; ROSAS, Allan. Economic, social and cultural rights: a textbook. 2. ed. Dordrecht: London, 2001, pp. 9-36.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
__________. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.
INSTITUTO INTERAMERICANO DE DERECHOS HUMANOS. Protección internacional de los derechos económicos, sociales y culturales: sistema universal y sistema interamericano. San José: IIDH, 2008.
KILLANDER, Magnus. Interpretação dos tratados regionais de direitos humanos. Sur - Revista internacional de direitos humanos, São Paulo, vol. 7, n. 13, dezembro, 2010, pp. 149-75.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. In: COMAS, Juan et ali. Raça e ciência I. São Paulo: Perspectiva, 1960, pp. 231-70.
RAMOS, André de Carvalho. Avanços e recuos: a universalidade dos direitos humanos no século XXI. In: COSTA, P. S. W. A. Direitos humanos em concreto. Curitiba: Juruá, 2008, pp. 69-88.
_____________. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. São Paulo: Saraiva, 2012.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma concepção multicultural de direitos humanos. Contexto internacional, Rio de Janeiro, vol. 23, nº 1, jan/jul, 2001, pp. 7-34.
_____________. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista direitos humanos, Brasília, vol. 2, junho, 2009, pp. 10-8.