Superendividamento: contornos jurídicos e sociais

07/04/2015 às 10:30
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O trabalho traz reflexão acerca do conceito de superendividamento, correlacionando-o ao direito do consumidor. Far-se-á uma breve exposição acerca do tema, abordaremos o estágio atual do processo legislativo.

1.                  Introdução

O presente trabalho tem como objetivo fazer uma breve reflexão acerca do conceito de superendividamento, correlacionando-o ao direito do consumidor.

Far-se-á uma breve exposição acerca do tema, abordaremos o estágio atual do processo legislativo e indicaremos fontes bibliográficas para melhor compreensão da da questão.

2.                  Superendividamento e relação creditícia

A multiplicação do crédito, o desejo pelo consumo, a massificação do mercado foram e são os fatores essenciais do superendividamento.

Como é cediço, crédito é a troca de uma prestação presente por uma pagamento futuro. Trata-se da possibilidade de satisfazer algo no presente por uma promessa de sua quitação posterior. É elemento essencial na economia capitalista atual (2013). No Brasil, surgiu em 1950, dinamizou-se em 1966 e universalizou-se em 1994 (Martinez, 2010) e vem se expandido no último decênio.

O consumismo refere-se à busca insessante pelo prazer obtido em adquirir e ter. É fomentado pelo marketing empresarial ou mesmo verdadeiras políticas públicas de promoção do consumo[1].

A expansão das classes D, C, B permitiu ampliar a quantidade de pessoas que acessam os créditos e desejam os bens da vida para satisfação das suas necessidades, ou mera obtenção da satisfação pelo gozo da coisa. O consumo foi associado à ascensão social e inclusão (Martinez, 2010; Silva, 2010).

Considerando estas três premissas, os autores estudados apontam algumas definições:

Assim surge o superendividamento, fenômeno econômico-social indissociável da economia de mercado, da cultura do consumo e do endividamento, decorrente da indução psicológica realizada por via de uma publicidade que propaga a aquisição de produtos e serviços sem qualquer utilidade, incutindo uma “falsa urgência”, a “solução de problemas” e a “oportunidade única” que levam, por muita das vezes, os indivíduos a dilapidarem seu patrimônio (Silva, 2010, p. 45)

 

“[...] a situação em que a pessoa física tem o seu ativo circulante (rendas) inferior aos valores devidos aos seus credores (a curto e a longo prazo), deixando um passivo a descoberto” (Santos apud Vasconcelos, 2007, p. 17)

 

“superendividamento é identificado no Estado em que o consumidor: Se vê impossibilitado, de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto de suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que não possa fazer no momento em que elas tornarem exigíveis” (Martinez, 2010, on line).



            Segundo Silva (2010), o superendividado é fenômeno que, para fins jurídicos: “se configura com a impossibilidade global do devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas de consumo (atuais, exigíveis, e as futuras) não decorrentes do exercício de atividade profissional” (Silva, 2010, p. 51).

A doutrina também indica uma classificação:

  • Endividamento ativo: deriva da volição, do abuso do crédito de forma deliberada. Alguns subdividem esta classificação em: 1) consciente – quando há deliberação de se endividar; 2) inconsciente – deriva da imprevidência do consumidor de boa-fé.
  • Endividamento passivo: deriva de fatos externos, como doenças, desemprego, etc. sendo os mais prevalentes.

 

3.                  A proteção do consumidor em relação à mercadoria crédito

O Código de Defesa do Consumidor estabelece:

“Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

...

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (grifo nosso).

          O Supremo Tribunal Federal confirmou a constitucionalidade dos dispositivos por meio da ADI 2591, 2004. O Superior Tribunal de Justiça, anteriormente, já editara o enunciado de súmula 297 “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.

            Não obstante as tutelas estabelecidas no referido código, o Banco Central, por intermédio da Resolução nº 3.258/2005 , estabeleceu:

"IX - É vedado às instituições financeiras:

a) realizar operações que não atendam aos princípios de seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos;

b) conceder crédito ou adiantamento sem a constituição de um título adequado, representativo da dívida."

Todos os autores consultados informam que o Código de Defesa do Consumidor e as normas creditícias vigentes garantem uma proteção mínima ao consumidor. Malucelli (2007) e Silva (2010) apontam a boa-fé objetiva como substrato integrativo, limitador e interpretativo para proteção do consumidor. Vasconcelos (2007) aponta o direito público subjetivo de acesso e efetividade da justiça como meios de tutelar o consumidor do superendividamento. Martinez (2010) defende que a dignidade da pessoa humana é fundamento da tutela contra o abuso da oferta de crédito e cobrança de pagamento dos consumidores.

No centro desta discussão encontra-se a prevalência do preceito de ordem pública sobre de ordem privada, patrimonial. A tutela do consumidor, hipossuficiente, vulnerável em face dos problemas financeiros que passa, não pode ser vista apenas sob a ótica individual-liberalista, mas do ponto da funcionalização do Direito Civil, da abordagem coletiva do problema.

Inobstante a proteção existente no ordenamento jurídico, os autores são uníssonos em afirmar na necessidade de legislação específica capaz de tutelar os direitos do consumidor.

 

4.                  Processo legislativo

O legislador atento às demandas sociais e aos alertas da doutrina, que remontam ao início do século XX estabeleu uma comissão para discutir o problema do superendividamneto e propor projeto de Lei.

Tramita-se no Senado Federal o Projeto de Lei nº 283/2012, com participação da sociedade[2].

O projeto, na sua forma originária[3], prevê:

Quadro 1 – Síntese do Projeto de Lei nº 283/2012

Dispositivos

Síntese

Criação de mecanismos de proteção ao superdividado (Art. 5º, VI, CDC)

Autoriza o poder público a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento do superendividamento.

Incorporação de novos direitos (Art. 6º, XI, CDC)

Oferta responsável de crédito, educação financeira, prevenção e tratamento do superdividamento.

Amplia o prazo prescricional (Art. 27-A, CDC)

O prazo para ações relativas ao superendividamento passa a ser de 10 (dez) anos, salvo outra mais favorável ao consumidor.

Seção IV – Da prevenção do superendividamento (Arts. 54-A a 54-G)

Art. 54-A – estabelece as finalidades e fundamentos da prevenção ao superdividamento.

Art. 54-B – dispõe sobre informações necessárias aos contratos de mútuo, além de impedir publicidade ‘enganosa’.

Art. 54-C – exige do fornecedor de créditos: informar os riscos do crédito, proceder à adequada análise das condições de pagamento, entregar o instrumento do contrato, com a identificação do financiador. Estabelece o ônus da prova ao fornecedor e cria sanções relativas ao não cumprimento das regras.

Art. 54-D – Estabelece o teto de endividamento em até 30% da renda líquida nos casos de crédito consignado em folha ou débito automático (e similares), salvo exceções que estabelece. Outorga ao juiz poderes para garantir a proteção ao mínimo existencial. Cria e regula o direito de arrependimento do crédito.

Art. 55-E – Resposabiliza, conjuntamente, agentes financiados, empresas de cartões de crédito e outras que se associem com a finalidade de ofertar crédito. Vincula o crédito principal aos acessórios, no sentido de ampliar a proteção ao consumidor.

Art. 54-F – Veda diversas condutas ao fornecedor, destacando-se a proibição de pressionar consumidores vulneráveis à contratação de crédito e o condicionamento a pretensões do consumidor à desistências de ações judiciais.

Art. 54-G -  Estabelecem cláusulas nulas de pleno direito, tais como renunciar ao direito de impenhorabilidade do bem de família; considerar o silêncio como aceitação tácita; limitar a proteção ao consumidor.

Capítulo V – Da conciliação no superendividamento (Art. 104-A, CDC)

Estabelece o procedimento de conciliação, no qual o consumidor superendividado repactua sua dívida junto aos credores, por meio de um “Plano de Pagamento”, que tem regulação neste mesmo dispositivo. Estabelece o critério legal para superdividado, qual seja:

“Entende-se por superdividado o comprometimento de mais de trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor com o pagamento conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vicendas, excluído o financiamento para aquisição de casa para moradia, e desde que inexistentes bens livres e suficientes para a liquidação do total do passivo”.

Exclui a ilicitude da negativa de crédito ao idoso superendividado (§ 2o , Art. 96, Estatuto do Idoso)

Ou seja, o fornecedor de crédito poderá negar crédito sem incidir no tipo penal do Art. 96, a saber: “Art. 96. Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por motivo de idade”

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Fonte: elaboração própria.

5.                  Conclusão

A proteção ao consumidor em relação ao hiperendividamento é necessária, em face da sua hiposuficiência. O apelo ao consumo, a oferta irresponsável de credito, ganha contornos demasiadamente importantes, de modo que a atuação do Poder Legislativo é imprescindível. Contudo, há de se reforçar que os dispositivos constantes no Código de Defesa do Consumidor fornecem alguns elementos de proteção.

Certamente não esgotamos o assunto e servirá apenas para que o estudante possa se aprofundar, em especial com a indicação da bibliografia consultada.

6.                  Bibliografia

 

BRASIL. Banco Central do Brasil. Resolução 3.258. Disponível em <http://www.bcb.gov.br/pre/denor/port/2005/1/%5C3.258,%20de%2028%20de%20janeiro.asp: Acesso em: 25 out. 13.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.078, de 11 set 90. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>Acesso em: 25 out. 13. Di

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 283/2012. Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106773. Acessos em 25 out. 13.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Enunciado de Súmula nº 297. DJ 09/09/2004 p. 149.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2591. Disponível < http://stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=2591&processo=2591> Acesso em: 25 out. 13.

MALUCELLI,  Andressa Pacenko. Crédito Consignado: Função Social e Superendividamento. Dissertação de Mestrado. Direito. PUC-PN, 2008. Disponivel em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp047399.pdf > Acesso em: 25 out. 13.

MARTINEZ, Carolina Curi Fernandes. A tutela do consumidor superendividado e o princípio da dignidade da pessoa humanaJus Navigandi, Teresina, ano 15n. 26192 set. 2010 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17312>. Acesso em: 25 out. 2013.


SILVA, Luiz Vicente da Cruz e. A boa-fé objetiva na fase pré-contratual como instrumento de prevenção ao superendividamento do consumidor. Dissertação de Mestrado. Direito. UERJ, 2010. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp144872.pdf> Acesso em 25 out. 13.

VASCONCELOS, Paulo Roberto Bentes. O Resgate da Cidadania: Ressignificação do Papel da Defensoria Pública do Estado do Ceará na Redução do Superendividamento do Cidadão. Dissertação de Mestrado. Direito. UNIFOR, 2007. Disponível em < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp041850.pdf> Acesso em 25 out. 13.

 


1 A título de ilustração indicamos a leitura da reportagem disponível em http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/12/01/governo-anuncia-novas-medidas-para-estimular-o-consumo-no-pais.jhtm

2 Na forma de audiências públicas, conforme publicação disponível em http://www.conjur.com.br/2012-ago-03/projetos-lei-atualizacao-cdc-comecam-tramitar-senado

3 Acompanhando a tramitação legislativa verifica-se a presença de emendas e propostas, sem existir uma compilação. Por não ser o objetivo deste trabalho e diante da impossibilidade de proceder à compilação, opta-se pela apresentação do projeto de lei inicial, disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=112479&tp=1.

Sobre o autor
Esdras Rabelo dos Santos

Bacharel em Ciências Sociais e em Direito, com pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos. Tem experiência nesta área por aproximadamente dez anos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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