O Ministério Público pode recorrer nos casos de decisões em ações penais privadas propriamente ditas?

12/04/2015 às 19:55
Leia nesta página:

O estudo procura trazer conclusões relacionadas à atuação do MP em ações penais privadas e em ações penais privadas subsidiárias da pública.

I – AÇÃO PENAL PRIVADA. CONCEITO E INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Sabemos que naquelas infrações penais que ofendem sobremaneira a intimidade da vítima, surge o exercício da ação penal privada.

Nessas situações, a persecução penal é transferida de forma excepcional ao particular que atua em nome próprio, na tutela do interesse alheio. Ou seja: a lei autoriza ao particular, que não é titular do ius puniendi, propor a ação penal substituindo assim o Estado- acusação, o Ministério Público, que é, a par do disposto no artigo 129 da Constituição, a verdadeira parte legítima para ajuizamento da ação penal em juízo.

O autor, querelante, está no feito como um substituto processual, inserido em uma legitimação extraordinária, em que a acusação é transferida ao ofendido ou seu representante legal. É certo que há, no sistema jurídico pátrio, a ação penal privada personalíssima, cujo exemplo único, é aquele pautado no artigo 236 do Código Penal, onde a ação penal privada somente poderá ser exercitada pela vítima.

Para tal é mister que o querelante venha a agir   pautado pela oportunidade ou conveniência, na medida em que é facultada à vítima decidir entre ofertar ou não a ação, pois, não querendo, pode ficar inerte e deixar transcorrer o prazo in albis o prazo decadencial de seis meses para ofertar a queixa ou ainda, se quiser, renunciar a esse mesmo direito de forma expressa ou tácita (artigos 49 e 50 do CPP).

Não fica qualquer dúvida com relação à renúncia, do que se lê da redação do artigo 104 do Código Penal, onde se vê que não implica a incidência desse instituto o fato de o ofendido receber a indenização do dano causado pelo crime. Tal dispositivo é contrário, de forma frontal, ao que se lê do artigo 74 da Lei 9.099/95, que estabelece ser causa de renúncia ao direito de queixa a composição realizada no Juizado Especial. No campo da conciliação, nos Juizados Especiais, se há composição dos prejuízos, não se pode falar em ação penal privada, pois haverá renúncia da queixa-crime.

É disponível o exercício da ação penal, podendo a vítima desistir, perdoando o acusado, ou abandonar o processo, do que se vê da perempção.

Por certo, há na ação penal privada a aplicação do princípio da indivisibilidade, onde a vítima, ao optar pela ação penal privada, a exerce em detrimento de todos os envolvidos: processa todos ou não processa nenhum, cabendo ao Ministério Público velar pela indivisibilidade.

Em razão disso, o querelante, titular do ius persequendi, na ação penal privada, tem interesse e legitimidade recursal. Basta que demonstre que a decisão recorrida lhe tenha causado um gravame, daí a sua legitimidade e interesse de recorrer.

Vem então a pergunta: Qual o papel do Ministério Público na ação penal privada?

Sem dúvida, custos legis, fiscal da lei. Como tal, não poderia, sequer, inserir outros réus na demanda, isto porque é da vítima, titular do direito de ação, na ação penal privada, aditar a queixa-crime, trazendo novos querelados ao polo passivo.

 É certo que encontramos resistência nessa posição diante de opiniões sabidamente respeitosas.

Tourinho Filho[1] alega que, dispondo o artigo 48 do Código de Processo Penal que a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos e que o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade, a ação penal privada  poderá ser aditada pelo Parquet, a quem caberá intervir em todos os termos subsequentes do processo,  implicando tal aditamento em inclusão de corréu ou ainda corréus.

Aliás, para Júlio Fabbrini Mirabete[2], o Ministério Público tem poderes para aditar a queixa, inclusive para nela incluir coautor ou partícipe cuja autoria ou participação não tenha sido constatada pelo querelante.

Incisiva, nesse passo, é a posição de Eugênio Pacelli[3] para quem ainda que a autoridade policial ou o próprio ofendido não tenham identificado a participação de determinada pessoa, não indiciada e não incluída na queixa, caberia ao Parquet o aditamento da queixa(artigo 45, CPP), para nela incluir quem, a seu juízo, como órgão constitucionalmente responsável pela defesa da ordem jurídica(artigo 127, CF), tenha efetivamente participado ou contribuído de forma criminosa para a prática do fato.

Destaco a posição de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar[4], para quem é da vítima o aditamento, apesar da interpretação literal que se pode dar ao artigo 45 do CPP, pois a ação é regida pelo princípio da oportunidade ou disponibilidade.

Por tudo isso, se diz que tal atuação do Ministério Público na persecutio privada poderá albergar duas funções: a) será ele litisconsorte ativo necessário do querelante, isto quando aditar a queixa-crime, o que lhe propicia, a teor do artigo 45 do CPP, na linha dos que entendem que o Parquet pode incluir novos réus, intervir em todos os termos da demanda; b) será ele, a bem da palavra, um mero fiscal da lei ou custos legis, quando não houver aditado a peça postulatória privada, devidamente assinada por advogado com poderes especiais para tal.

Bem de ver que será o querelante, na hipótese de insucesso, quem suportará o ônus da sucumbência, e não o Ministério Público que não é titular dessa ação penal.

Diversa é a situação do Parquet nas ações penais privadas subsidiárias da pública, pois, no caso, é interveniente adesivo obrigatório. Pode intervir, diante da queixa-crime ajuizada pela vítima em face de sua inércia, obrigatoriamente, até para repudiar a ação, formulando nova peça processual (denúncia substitutiva) e até, diante do abandono do autor, prosseguir no polo ativo, ação penal indireta. Tal não se dá na ação penal privada propriamente dita e ainda naquela personalíssima. Afinal, se o Parquet for alijado da lide, na ação penal privada subsidiária da pública, haverá nulidade absoluta, que não se presume.

O Ministério Público deverá fundamentar o repúdio, fornecendo elementos de prova.

Poderá o Parquet, caso entenda que ação penal proposta pelo particular não atende os mínimos requisitos legais, deverá se manifestar pela rejeição da inicial pelo magistrado. Caso assim não entenda o juiz, poderá, outrossim, o Parquet ajuizar habeas corpus para trancar essa ação penal que foi iniciada.

Poderá o Parquet interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal. Ora, a ação penal privada subsidiária da pública é indisponível. Caso se o querelante vier a apresentar perdão ou, se for desidioso, tentando ocasionar a perempção, deve ser afastado do polo ativo da relação processual, assumindo o Ministério Público, dali por diante, como parte principal (ação penal indireta). Ao querelante afastado lhe será dada a faculdade de ingressar como assistente.

Aliás, nessas ações penais privadas subsidiárias da pública, não tenho dúvida de que o Parquet tem legitimidade e interesse de recorrer.

Vem a pergunta: Pode o Parquet recorrer, nessas ações penais privadas propriamente ditas ou personalíssimas, seja como litisconsorte criminal do titular da queixa-crime, quer somente como custos legis?


II – A ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA RECORRER DAS DECISÕES ABSOLUTÓRIAS NAS AÇÕES PENAIS PRIVADAS

Estamos diante da trilha do princípio da disponibilidade, inerente a essas ações. Se a sentença for absolutória e o querelante não recorreu, não pode recorrer o Ministério Público, ainda que na qualidade de fiscal da lei.

Assim a titularidade exclusiva do particular quanto ao direito de ação vai se projetar ainda no direito ao recurso, pois tal direito é extensão dele. O recurso não é nova ação, mas remédio processual, ajuizado no curso do processo, para reformar ou cassar decisão tomada.

Discute-se se pode o Parquet, nos casos de crimes contra a dignidade sexual, recorrer para aumentar a pena do acusado, nas ações penais privadas propriamente ditas, naquilo se chamava de crimes contra os costumes.  

É certo que se poderia falar nos casos de crimes contra a dignidade sexual, que antes da reforma, diante da redação da Lei 12.015/09, do que se vê da redação dos artigos 223 e 225 do Código Penal, tinham a  seguinte situação:

a)     Crimes de ação pública incondicionada: ocasione lesão corporal grave ou morte; praticado com abuso do poder familiar, das relações de tutela ou curatela;

b)    Crimes de ação pública condicionada: vítima pobre;

c)     Crimes de ação privada: demais hipóteses inclusive com a ocorrência da presunção de violência (artigo 223 CP).

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Porém, o quadro mudou.

Hoje se tem nos crimes contra a dignidade sexual a regra geral no sentido de que a ação penal é pública condicionada à representação da vítima. Há, no entanto, exceções:

a) Crimes de ação penal pública incondicionada: crimes dos quais resulta lesão grave ou morte da vítima e crimes praticados contra menor de 18 anos ou contra pessoa vulnerável;

b) Na violência doméstica: serão de ação penal pública incondicionada todos os crimes sexuais praticados com violência física, por força do disposto no artigo 101 do Código Penal e na Lei 11.340/06.

Cessou a possibilidade de ação penal privada nesses crimes hoje previstos na Lei 12.015. Tal somente ocorrerá se houver inércia do Ministério Público quando será hipótese de ação privada subsidiária da pública.

Dessa forma a disponibilidade conferida de forma privativa não permite tal conduta processual. Do contrário, permitir-se-ia uma intervenção na vontade do ofendido, pois a ele é dado o poder de instaurar a ação, e, por consequência, o poder de dar prosseguimento à ação em fase de recurso.

Ademais a fiscalização do Parquet envolve direitos indisponíveis, do que se lê do artigo 127 da Constituição Federal, não se podendo falar em recurso da sua parte, em matéria onde a disponibilidade é o óbice a essa atuação, devendo o Parquet acatar a solução dada.

Fico com a lúcida abordagem de Eugênio Pacelli[5] para quem, no entendimento da doutrina, praticamente sem divergência, o Ministério Público não pode recorrer de sentenças absolutórias, no âmbito de ações penais privadas, se o querelante não o fizesse antes.

De forma conclusiva, Maurício Zanoide de Moraes[6] assevera, in verbis: ¨Também não pode o Ministério Público recorrer nos crimes de ação penal exclusivamente privada, ainda que na qualidade de fiscal da lei, se a sentença for absolutória e o querelante não recorreu. Prevalece, no caso, o princípio da disponibilidade da ação exclusivamente privada à qual nem o Ministério Público pode se sobrepor, porque o condicionamento à oportunidade da ação penal é de direito material, e a solução processual somente cabe acatar.¨.

Ora, se o querelante pode renunciar à ação (pré-processual, unilateral, no campo da oportunidade) ou ainda perdoar (processual, bilateral, no campo da disponibilidade) pode não recorrer, contentando-se com a absolvição.


Notas

[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 2003, volume I, pág. 633.

[2] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado, 8ª edição, São Paulo, Atlas, 2001, pág. 204.

[3] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 17ª edição, São Paulo, Atlas, 2013, pág. 153.

[4] TÁVORA, Nestor; Alencar, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal, 17ª edição, Salvador, Ius Podivm, 2012, pág. 182. 

[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Obra citada, pág. 154.

[6] MORAES, Maurício Zanoide de. Interesse e legitimidade para recorrer no processo penal brasileiro, 2000, pág. 26. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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