O CAOS NA LÍBIA E A QUESTÃO DOS REFUGIADOS

23/04/2015 às 12:24
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O ARTIGO FAZ COMENTÁRIOS COM RELAÇÃO A SITUAÇÃO DA IMIGRAÇÃO NA EUROPA E TRAZ CONCEITOS À ANÁLISE, NA MATÉRIA, PRÓPRIOS DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO.

O CAOS NA LÍBIA E A QUESTÃO DOS REFUGIADOS

ROGERIO TADEU ROMANO

Procurador Regional da República aposentado

Não há dúvida de que a Líbia é uma bomba migratória ás portas da Europa.

Estima-se que mais de 90% dos migrantes que chegam à costa italiana passam pela Líbia, que, hoje, parece ser um Estado fantasma, dominado por centenas de milícias onde os jhardistas do Estado Islâmico(EI),  grupos terroristas que trazem o horror,  estão a se implantar. A isso se soma a ação de traficantes de seres humanos que estão gozando de impunidade com milícias e pseudo-policiais.

De toda sorte, o pano de fundo envolve perseguições por motivo de raça, religião, por alguém pertencer a determinado grupo social ou ter determinada opinião contrária ao status quo que se formou.

O governo italiano sabe que a Líbia, com a maior costa da África do Norte, com 1.770 quilômetros e 5.000 quilômetros de fronteiras terrestres com países vizinhos em áreas desérticas,  representa algo que, após  a queda de Muhamar Khadafi, ficou fora de controle.

Fala-se que Khadafi controlava os fluxos migratórios, ora impulsando, ora travando-os. Fala-se ainda que as máfias do tráfico humano naufragam deliberadamente os barcos quando se aproximam das costas. É um negócio sinistro em crescimento, estimando-se que trinta e cinco mil migrantes tenham viajado á Europa apenas neste ano.

Tudo isso é uma tragédia que já era anunciada.

Por certo há a situação do refugiado que deve ser estudada e que é diversa do asilo. Enquanto o asilo é regulado por tratados multilaterais bastante específicos no âmbito regional, o refúgio tem suas normas elaboradas por uma organização(com alcance global) de fundamental importância vinculada às Nações Unidas, qual seja o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e seu Protocolo de 1966, são os textos magnos dos refugiados em plano global. Tem-se da leitura da Convenção de 1951, o termo “refugiado”, aplicável a toda pessoa que, “em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (art. 1º, A, § 2º).  Mais: além dessa limitação temporal, o mesmo artigo 1º, B, § 1º, alínea a, também colocava uma limitação geográfica a concessão do refúgio, ao dizer que apenas pessoas provenientes da Europa poderiam solicitar refúgio em outros países.

Em razão disso, é salutar anotar a lição de Valério de Oliveira Mazzuoli(Curso de direito internacional público, 3ª edição, pág. 677) quando diz que “essa definição, por não mais convir aos interesses da sociedade internacional foi então ampliada pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1966, que, em seu art. 1º, § § 2º e 3º, respectivamente, estabeleceu: “Para os fins do presente Protocolo o termo ‘refugiados’, salvo no que diz respeito à aplicação do § 3º do presente artigo, significa qualquer pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as palavras ‘em decorrência dos acontecimentos ocorridos  antes de 1º de janeiro de 1951 e ‘ as palavras’ .... como consequência de tais acontecimentos’ não figurassem do § 2º da Seção A do artigo primeiro”. E que: “o presente Protocolo será aplicado pelos Estados-partes sem nenhuma limitação geográfica....”

A concessão do status de refugiado se dá não em virtude de uma perseguição politica(como ocorre no caso de asilo), mas sim em virtude de perseguição por motivos de raça, religião ou de nacionalidade, ou ainda pelo fato de pertencer a determinado grupo social ou ter determinada opinião.

 Não se desconhece que a Líbia é um espaço utilizado para fuga de milhares de pessoas que fogem da guerra na Síria e das misérias na África que são acrescidas pela formação de grupos radicais.

As autoridades falam em diversas ações para enfrentar essa bomba migratória que levou  diversas pessoas a  perecerem: esforço militar e civil para capturar e destruir embarcações usadas no transporte de migrantes ilegais; reuniões periódicas entre agências de fronteira, de asilo e de defensoria para mapear os fluxos ilegais; envio de equipes de asilo da União Europeia à Itália e à Grécia para fazer o processamento conjunto de pedidos; registro de impressões digitais de todos os imigrantes pelas autoridades europeias; elaboração de um projeto-piloto voluntário para a recolocação de imigrantes em países do bloco; abordagem dos países próximos à Líbia através de esforços conjuntos entre a Comissão Europeia e a diplomacia da União Europeia; envio de funcionários de imigração a outros países para melhor compreender os fluxos migratórios.

De tudo isso, parece razoável o entendimento de que a União Europeia pode estar dando contribuições quando se produzem crises na Síria, Líbia, Palestina e África, investindo muito dinheiro. Mas terá ainda que desenvolver projetos que melhorem a infraestrutura dos países em dificuldade, sendo certo que a União Europeia não pode se eximir de responsabilidades deixando que os imigrantes morram. A ONU tem ainda papel vital nesse processo.

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Mas a matéria pode não envolver apenas a Europa. No Brasil, a Lei 9.474, de 22 de julho de 1997, define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951. Essa norma faz referência expressa à Declaração de Direitos Humanos de 1948, de modo que esta Declaração é um referencial ético para sua interpretação(artigo 48).

Perceba-se que a Lei 9.474/97 traz aspectos importantíssimos: a) a definição ampliada de refugiado adotada, permitindo a concessão de refúgio em caso de “grave e generalizada violação de direitos humanos”(e não mais somente em caso de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade etc); b) a criação de um órgão nacional(O Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE) para decidir sobre uma solicitação de refúgio.

De toda sorte, havendo procedimento administrativo ou criminal instaurado(por conta de  eventual entrada de estrangeiros com documentos falsos, por exemplo), especificamente, em razão da entrada irregular em território nacional, deve haver a suspensão, a fim de que não se proceda, indevidamente, a deportação ou até mesmo a extradição, havendo necessidade de se distinguir os institutos sancionatórios de cunho administrativo e penal imigratório da existência de um eventual crime contra a fé pública.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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