No último mês de fevereiro, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo reacendeu uma antiga discussão, a respeito da obrigação de custeio de procedimentos de fertilização “in vitro” por planos e seguros de saúde. A esperança é que esse acórdão se torne o “leading case” [1] necessário para transformar radicalmente o entendimento da matéria, abrindo, em conseqüência, caminho para a realização do sonho da maternidade para uma grande quantidade de mulheres.
Ao julgar o recurso de apelação de uma paciente de Santos, a 10ª Câmara da Seção de Direito Privado do TJSP considerou abusiva a cláusula contratual que expressamente excluía a cobertura de procedimentos de reprodução assistida, por considerar a restrição contrária ao estabelecido pela Lei 9.656/98, que regula a atividade das operadoras de planos de assistência à saúde:
Apelação com Revisão n° 0012087-34.2012.8.26.0562
Comarca: Santos
Ação: Plano de Saúde - Obrigação de Fazer
Apte: Rosangela da Silva Santana (AJ)
Apda: Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santos
PLANO DE SAÚDE - Exclusão contratual da fertilização “in vitro” - Abusividade - Violação à Lei nº 9.656/98, que expressamente estabelece a obrigatoriedade de cobertura do atendimento nos casos de planejamento familiar - Patologia, ademais, prevista na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde – Ação procedente - Sentença reformada - RECURSO PROVIDO.[2]
O acórdão está fundado em duas premissas bastante sólidas: (a) a infertilidade feminina é patologia reconhecida pela OMS sendo, portanto, coberta e (b) A derrogação do antigo óbice legal à cobertura dos procedimentos de reprodução assistida, pelo artigo 35-C da Lei nº 9.656/98, conforme será analisado a seguir.
- Cobertura obrigatória do tratamento da infertilidade feminina, por ser patologia reconhecida pela OMS e listada Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde
Ao estabelecer as regras para funcionamentos das empresas operadoras de planos de saúde, a Lei 9.656/98 estabeleceu um parâmetro mínimo de cobertura nos seguintes termos:
Art. 10 - É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
Assim, os planos de saúde têm de oferecer, como cobertura mínima, o tratamento das doenças listadas pela Organização Mundial da Saúde na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, ou simplesmente Classificação Internacional de Doenças – CID[3], como é mais conhecida.
Em linguagem simples e direta, podemos dizer que, a lei que trata dos planos de saúde estabeleceu a obrigatoriedade de tratamento de todas as doenças listadas na CID, ressalvada apenas a segmentação do plano contratado:
“O que nos interessa ressaltar é que, embora possa ser específico na espécie de atendimento, qualquer um dos planos segmentados obrigatoriamente deve oferecer a mesma extensão de cobertura oferecida ao segmento pelo plano ou seguro-referência.
Consequentemente, na segmentação de atendimento ambulatorial e hospitalar, necessariamente, todas as doenças catalogadas pela Organização Mundial de Saúde estarão compreendidas. ”[4]
O estabelecimento de cobertura mínima a todos os tipos de doença listados pela OMS, no dizer da professora Cláudia Lima Marques, veio em muito boa hora, tendo inclusive o caráter pedagógico de coibir a prática abusiva de se tentar restringir a cobertura a vários tipos de moléstias.[5]
Neste contexto, a questão da fertilização “in vitro”, bem como as outras técnicas de reprodução assistida, ganha relevância, na medida em que é um dos principais tratamentos[6] para a infertilidade feminina, doença catalogada pela OMS na CID-10, sob o código N97.[7]
Aplicando-se a lógica legal, existindo cobertura para a doença, o tratamento obrigatoriamente tem de ser coberto, uma vez que não cabe às operadoras o estabelecimento de quais tratamentos podem, ou não podem ser prescritos pelos médicos[8]. Assim, se a infertilidade feminina é catalogada como doença, o seu tratamento, incluindo as técnicas de fertilização in vitro, tem de ser custeado pelos planos de saúde,
Assim, não há qualquer razão jurídica para a recusa do custeio dos tratamentos de reprodução assistida prescritas por profissionais habilitados para o tratamento da infertilidade feminina, lembrando que não é admissível que as operadoras aleguem a existência de soluções alternativas, ou menos onerosas, uma vez que já há muito que se firmou o entendimento jurisprudencial, inclusive no C. STJ, de que é atribuição do médico assistente a decisão acerca do tratamento mais adequado ao caso concreto, não cabendo às operadoras qualquer participação nisso.[9]
Mas, poderíamos perguntar: o inciso III do artigo 10 não excluiu expressamente a inseminação artificial da cobertura mínima obrigatória, tornando toda essa discussão sem sentido prático algum?
Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
III - inseminação artificial;
A resposta que já há algum tempo vem sendo sustentada pelos advogados e que agora veio encontrar forte guarida na jurisprudência é que o indigitado inciso III está derrogado.
(b) A derrogação da antiga exclusão legal de cobertura dos procedimentos de reprodução assistida
Em 11 de maio de 2009 foi publicada a Lei 11.935, que modificou a Lei que regulamenta a saúde complementar em nosso país (Lei 9.656/98), instituindo a cobertura obrigatória dos casos de planejamento familiar:
Art. 1º - O art. 35-C da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos:
III - de planejamento familiar;
Assim, é de fácil compreensão que cerca de dez anos após sua publicação, uma nova lei (11.935/09) modificou a redação original do Art. 35C, incluindo no rol de coberturas obrigatórias dos planos de saúde os procedimentos necessários para o planejamento familiar, entendido este como o conjunto de ações destinado à "regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal", de acordo com o artigo 2º, da lei nº 9.263/96, abrigando medidas de concepção e contracepção, que passaram a ser oferecidas pelo SUS.
Os planos de saúde, no entanto, continuaram a negar cobertura para esses tratamentos, sob alegação de que o indigitado inciso III do Art. 10, que expressamente excluía esses procedimentos, não havia sido revogado.
Mas, ressalvados respeitáveis posicionamentos contrários, incluindo jurisprudenciais, essa não é a melhor solução para a questão, que tem de ser buscada na Lei de Introdução ao Código Civil, em razão do conflito aparente de normas que, como se sabe, surge quando duas normas se assemelham e, por essa razão, aparentemente são aplicáveis.
Com efeito, numa primeira análise poderia haver um conflito entre dois dispositivos legais, um excluindo a cobertura de procedimentos de reprodução assistida e outro determinando que devam ser cobertos. Considerando que as duas leis são ordinárias e, portanto tem a mesma hierarquia, e tratam especificamente da mesma questão, inseminação artificial, o único critério válido para resolver a aparente antinomia é o critério cronológico:
“O critério cronológico (Lex posteriori derrogat legi priori) remonta ao tempo em que as normas começaram a ter vigência, restrigindo-se somente ao conflito de normas pertencentes ao mesmo escalão. Na lição de Hans Kelsen, se se tratar de normas gerais estabelecidas pelo mesmo órgão, em diferentes ocasiões, a validade da norma editada em último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz”[10]
Desta forma, pelo critério de que a norma posterior derroga a anterior, a inclusão dos procedimentos médicos de planejamento familiar, no rol de cobertura mínima obrigatória dos planos de saúde, derrogou a antiga exclusão, prevista dez anos antes.
Este foi exatamente o entendimento adotado pelo v. acórdão comentado, que consignou expressamente que se tratava de “caso de antinomia jurídica, a impor a prevalência da norma posterior, que, no caso, é o inciso III do artigo 35-C da Lei nº 9.656/98, incluído em 2009 pela Lei nº 11.935[11]”.
O raciocínio convence justamente por sua simplicidade e deverá nortear as próximas decisões, que assegurarão a cobertura dos planos médicos a esse tipo de moléstia.
Fortalecendo ainda mais esse entendimento, poderiam ser elencados ainda mais dois outros argumentos, um no sentido do reconhecimento estatal da importância do oferecimento à população dos tratamentos de reprodução assistida, que foram impostos ao SUS e outro a respeito da importância da preservação da saúde mental e psicológica da mulher e, por que não do homem também, que frente à infertilidade vêem frustradas suas aspirações de constituição de família, o que será abordado no futuro.
Por ora, o que vale é registrar essa importante decisão do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que com argumentos simples, mas muito sólidos, certamente modificará o entendimento da matéria, possibilitando que milhares de mulheres e casais que, mesmo tendo planos de assistência médica, ainda hoje não podem contar com esse tipo de tratamento.
[1] Leading Case: "decisão que tenha constituído em regra importante, em torno da qual outras gravitam" que "cria o precedente, com força obrigatória para casos futuros" – SOARES, Guido Fernando Silva - Common Law: Introdução ao Direito dos EUA, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999
[2] https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=8173167&cdForo=0&vlCaptcha=tphpe
[3] BOTTESINI, Maury Angelo. Lei dos planos e seguros de saude comentada e anotada artigo por artigo – doutrina e jurisprudência, Maury Angelo Bottesini e Mauro Conti Machado – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
[4] MARQUES, Claudia Lima – Saúde e responsabilidade: seguros e planos de assistência privada à saúde – coordenação Claudia Lima Marques – São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999.
[5] idem
[6] http://www.gineco.com.br/saude-feminina/infertilidade/tratamento-da-infertilidade/
[7] http://www.medicinanet.com.br/cid10/2160/n97_infertilidade_feminina.htm
[8] http://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/11230182/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-813305-1
[9] http://stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=110133
[10] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileira Interpretada. Maria Helena Diniz. 11ª edição – São Paulo: Saraiva, 2005.
[11] https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=8173167&cdForo=0&vlCaptcha=tphpe