A vida contemporânea tem como característica o grande quantitativo de relações jurídicas que erigem obrigações. Cotidianamente adquirem-se deveres e direitos, na maioria das ocasiões, por meio dos contratos. Desse modus, faz-se mister uma análise da teoria geral das obrigações para que tais direitos e deveres possam ser entendidos de forma aguda e percuciente. Nesse passo, esta análise deve-se dar de maneira atual, observando as características da obrigação como processo.
No direito romano clássico, o direito obrigacional se baseava na responsabilidade física e corporal pelo inadimplemento. Existia uma subordinação e sujeição do devedor ao credor, situação em que aquele poderia perder sua independência e integridade física ou até mesmo sujeitar-se à servidão, caso quedasse-se inadimplente. Ainda nessa época, a obrigação era entendida como um direito inerte, onde credor e devedor assumiam posições diametralmente opostas, numa espécie de luta pelo cumprimento da obrigação.
No direito atual, entende-se a obrigação como processo, ou seja, como algo que se desenvolve, em várias fases, em direção ao adimplemento, o qual é a morte da obrigação. É um processo dinâmico. Tem analogia ao curso de um rio, o qual tem caminhos, procedimentos, meandros. Nesse rio, as partes atuam em conjunto, cooperativamente para o cumprimento da obrigação, entronando sempre o princípio da Boa-fé objetiva e suas obrigações satelares.
Enxergando-se a obrigação como processo, objetiva-se elevar o ser dinâmico da relação obrigacional. Preconiza-se elencar as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si estabelecem ligação, com interdependência. A obrigação, vista como processo, compõe-se, em sentido amplo, do conjunto de atividades necessárias para obter-se a satisfação do interesse do credor. Dogmaticamente, porém, é indispensável distinguir os planos em que se desenvolve e se adimple a obrigação.
A concepção da obrigação como processo é, em verdade, somente adequada àqueles sistemas nos quais o nexo finalístico tem posição considerável. Tanto nos sistemas que adotam a separação absoluta, entre direito das obrigações e direito das coisas, quanto naqueles em que a própria convenção transmite a propriedade, ainda que somente entre as partes. Nesse rumo, enxergar a obrigação como processo parece fácil, difícil mesmo é considerar o desenvolvimento do dever como um processo.
Dessa forma, o estudo do direito das obrigações é importante para a compreensão das relações jurídicas da modernidade ou pós-colonialidade; enfim o tempo presente. Observando-se a complexidade e a importância de tais relações, a análise deve ser feita sempre à luz da teoria da obrigação como sendo um processo, para que possa se chegar, assim, a um resultado coerente com a realidade.
A teoria denominada de obrigação como processo foi trazida ao Brasil por Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, em sua tese ao candidatar-se à cátedra de direito civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ainda na vigência do código civil de 1916, representou grande inovação, trazendo ideias que depois vieram a ser positivadas no código civil atual [1], como, por exemplo, a função social do contrato, a Boa-fé objetiva, o caráter dinâmico do processo, a polarização pelo adimplemento, ou seja, existência de apenas um polo possuidor do direito de requerer a prestação etc. Apesar de não ter tido grande expressão em sua época, representa hoje um texto fundamental à compreensão da teoria geral das obrigações.
A obrigação como processo apresenta três princípios basilares e fundamentais, sendo eles a autonomia da vontade, a Boa-fé e a separação de fases. O princípio da autonomia da vontade consiste no fato de pessoas capazes poderem se obrigar quando desejarem, com quem quiserem e sobre o que quiserem; liberdade esta que se encontra presente desde o direito romano, acentuado, entretanto, pela revolução francesa, iniciada em 1789.
Porém, essa liberdade não é total, suprema ou máxima. Ela sofre limitações e constrições do Estado, principalmente após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que possui cláusula expressa, em seu artigo 421 [2], dizendo que a liberdade de contratar será exercida nos limites da função social. Essa limitação ocorre, porquanto deve existir uma supremacia do interesse público sobre o privado, pois a autonomia privada não pode ferir princípios trazidos na Constituição Federal que protegem a solidariedade, a dignidade, a igualdade entre as partes, dentre outros princípios invioláveis.
O princípio da Boa-fé é fonte geradora de obrigações, sendo que com o artigo 422 [3] do diploma civil de 2002, a Boa-fé passa a ser objetiva. Isto é, cria deveres tanto para o credor quanto para o devedor. É uma regra de conduta que tem a finalidade de estabelecer um padrão honesto e leal entre as partes, em conformidade com a constituição.
Para se entender a essência da teoria da obrigação como processo, é fundamental a compreensão do principio da separação de fases, pois é nele que se mostra o caráter dinâmico da relação obrigacional. É relevante, também, para saber-se qual regra aplicar em cada fase. A separação se dá entre as fases de nascimento e desenvolvimento dos deveres e a do adimplemento. Na maioria das vezes a separação de fases não é perceptível devido à instantaneidade, efemeridade e precaridade do negócio. Quando se analisa a compra e venda perfunctoriamente, por exemplo, não se percebe a separação de fases, contudo ela existe em um exame minucioso e perscrutante.
É indubitável que a vontade de criar obrigações nem sempre é a mesma de extingui-las. Obrigar é ligar, adimplir é afastar. Dessa maneira, existe uma grande distância entre o primeiro e o último ato do processo. Quanto a isso, o Brasil adota a separação relativa, em que a vontade de se obrigar é manifesta ao mesmo tempo em que é manifestada a vontade de adimplir, tudo em um só ato. Diferente, é o direito alemão, onde a vontade não é co-declarada. Para cada vontade é necessária uma manifestação, escrita ou não, deixando mais explícita a separação de fases.
Em uma obrigação é o liame entre devedor e credor que dá forma à obrigação. A obrigação é mais do que um vínculo puro e simples entre partes. Para que se possa entender a obrigação como processo é preciso entendê-la como uma relação dinâmica, formada por fases, ligadas com interdependência, que juntas vão oferecer à obrigação seu caráter de totalidade, de organismo vivo.
Essa totalidade em que se apresenta a obrigação deve ser polarizada pelo adimplemento, isto é, toda a relação deve ter como seu fim máximo o seu cumprimento. Como forma de atingir esse fim máximo, que é o adimplemento, as partes devem atuar em complementariedade, em cooperação. É neste ponto que a função social e a Boa-fé objetiva residem, como forma positivada de garantir tal cooperação, criando deveres anexos (satelares). Desse modo, a relação obrigacional assume um caráter teleológico, não possuíndo mais a ideia das partes como sendo antagônicas, inimigas e sim cooperadoras.
Quando escrevera sua tese, Clóvis V. do Couto Silva arguiu que a função social e a Boa-fé objetiva são princípios da relação obrigacional, devido à polarização ao adimplemento e à cooperação entre as partes. Prova de que a teoria da obrigação como processo é de grande importância e contribuiu para o direito atual é o fato do Código Civil de 2002 ter positivado tais princípios em cláusulas gerais.
A título de exemplificação tem-se um contrato de compra e venda. Neste contrato existem duas partes, comprador e vendedor, ligados por um vínculo, que é o de pagar o preço e de dar a coisa, respectivamente. Existe a clara separação de fases, visto que a celebração do contrato é de caráter obrigacional/formal e a entrega da coisa, de caráter real/material. Assim, mesmo thavendo essa separação de fases, a relação continua sendo vista como um todo.
Toda essa relação é polarizada pelo adimplemento, em que as partes devem atuar cooperativamente, mediante assessoramento recíproco, com a aplicação das cláusulas gerais de Boa-fé objetiva, probidade e função social do contrato. Por fim, toda essa relação obrigacional, onde seus detalhes passam, muitas vezes, despercebidos por nossos olhos, demonstra o caráter dinâmico, procedimental e processual da obrigação.
Ademais, a importância da obrigação como processo é clara: sem essa ligação a relação obrigacional fica deficiente, não atinge sua máxima eficiência. Nesse viés, o atual crescente número de relações obrigacionais, cada vez mais complexas, exige um entendimento atual e eficaz com relação ao direito obrigacional. Ainda, com a constitucionalização do Direito e principalmente do Direito Civil, precisa-se de uma teoria em compasso com esses acontecimentos. A obrigação como processo mostra-se uma teoria moderna, completa, coerente, eficaz e principalmente, de acordo com os princípios incrustados na Constituição Federal do Brasil.
Portanto, a obrigação como processo garante que um credor pode movimentar o aparato estatal para requerer cumprimento de prestação de que venha a ter direito a receber. Ou seja, a obrigação como processo nada mais é do que a alocação das relações obrigacionais jurídicas em um patamar que possui procedimento e normas de funcionamento próprios. Isto é, há um processo, um meio, uma forma de se fazer cumprir uma obrigação.
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Lucas Costa de. O direito das obrigações à luz da teoria da obrigação como processo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 103, ago 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12144>. Acesso em: 05 ago 2013.
OLIVEIRA, Ricardo Lima de. A obrigação como processo. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2708, 30nov. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17974>. Acesso em: 05 ago 2013.
Notas
[1] Lei Federal n.º 10.402, de 10 de janeiro de 2002.
[2] Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
[3] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.