O problema da sentença absolutória criminal transitada em julgado proferida por juízo incompetente

11/05/2015 às 11:39
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Analisa a hipótese de sentença absolutória proferida por juízo incompetente transitar em julgado.

I – APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA

A questão que se coloca no presente artigo é sobre a possibilidade de rescisão, revisão em sede de processo penal, de sentença absolutória  proferida por juízo incompetente e transitada em julgado.

Esse é um problema importante no direito processual penal, que entendo deva ser enfrentado, e que suscita diversas discussões no campo doutrinário, envolvendo a possibilidade da revisão pro societate.

Acentua-se, no presente estudo, o problema da existência, validade e eficácia do ato processual, a partir do conceito de pressupostos processuais de existência e de validade e, após, as soluções doutrinárias e jurisprudenciais já existentes para tão intrigante questionamento.

Vem a pergunta: Poderá o Ministério Público, como titular da ação penal pública, após absolvição do réu, em sentença absolutória, transitada em julgado, requerer e obter, em juízo competente, a desconstituição dessa decisão e seu novo julgamento, exercendo o tribunal dois tipos distintos de juízo,  o iudicium rescindens e o iudicium rescissorium?


II – SENTENÇAS PROCESSUAIS E PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

Se o processo[1], como instrumento que o Estado tem para exercer a sua jurisdição, é um movimento à prestação jurisdicional, o como se dá esse movimento é o procedimento.

Por sua vez, a sentença é o ato do juiz que põe fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição.

A partir da lição de Alfredo Buzaid[2] tem-se que serão sentenças processuais as sentenças que atestarem a inexistência dos pressupostos de admissibilidade do exame e do julgamento do mérito.

Isso porque a existência e a validade da relação jurídica processual são requisitos para que se possa pensar na possibilidade de uma sentença de mérito.

Os pressupostos processuais constituem o primeiro momento lógico a merecer a atenção do juiz. São elementos  cuja presença é imprescindível para a existência e para a validade de uma relação processual e cuja existência é imperativa para que a relação processual exista validamente, no caso dos chamados pressupostos processuais negativos.

Há pressupostos processuais de existência e pressupostos processuais de validade.

Dito isso, trago o quadro já traçado por Teresa Arruda Alvim Pinto[3], quando arrola os pressupostos processuais de existência: jurisdição, representação do autor(capacidade processual), petição inicial e citação. Por sua vez, são pressupostos processuais de validade: juízo – competência(absoluta), juiz – imparcialidade(impedimento), capacidade e legitimidade processual , petição inicial válida e citação válida.

Desde já menciono que um processo sem citação é processo nenhum. Porém, um processo que tem sentença exarada por Juízo incompetente é nulo, inválido.

Há, pois, uma evidente dicotomia entre existência e validade processual.

A sentença inexistente é um nada, diversamente da sentença nula, que existe como ato processual, de forma que as nulidades ficam sob o resguardo da ação rescisória, no civil, e da revisão criminal, no processo criminal, sempre como ação própria de caráter desconstitutivo.

Uma sentença proferida em processo onde não houve citação, é sentença inexistente. Por sua vez, uma sentença proferida em processo em que o juízo era incompetente é, sem duvida, inválida, isto porque lhe falta um pressuposto processual de validade.

Bem disse Enrico Tulio Liebman[4] que a falta de citação é vício radical que sobrevive à sentença e afeta a coisa julgada.

Para Pontes de Miranda[5] a sentença proferida em processo onde não houve citação, ou a citação foi nula e revel foi o réu,  é sentença nula de pleno direito, e não só rescindível.

No processo penal, é possível falar na possibilidade do Ministério Público, diante de absolvição em processo-crime, onde não houve citação, ajuizar nova denúncia. Isso porque o processo anterior, se é que se pode falar assim, não existiu.

Da mesma maneira, quando se fala em extinção da punibilidade se a morte do agente não existiu, e foi pautada em documento falso, como se vê,dentre outras decisões do HC 84.525, j. 16 de novembro de 2004, DJ de 3 de dezembro de 2004, 2ª Turma, Relator Ministro Carlos Velloso, quando se concluiu: ¨A decisão que, com base em certidão de óbito falsa, julga extinta a punibilidade do réu pode ser revogada, dado que não gera coisa julgada em sentido estrito.¨

Com razão, argumenta Eugênio Pacelli[6], aduzindo que se a certidão foi criminosamente falsificada pelo interessado, não haveria razão alguma para não se admitir a revisão do julgado, pois:

a)      não teria havido sentença absolutória, como se exige para a formação da coisa julgada penal e como dispõe expressamente o Pacto de San José da Costa Rica(artigo 8º);

b)      não teria havido negligência, nem ausência de serviço que pudesse ser imputada ao Estado, como ocorreria, por exemplo,em ação penal no qual o acusado seqüestrasse as testemunhas do crime, logrando obter, assim, a absolvição.

Se o fato é inexistente,  a sentença que reconheceu a extinção da punibilidade, por uma morte de agente, que não existiu, é sentença nenhuma.

Mas, fica a dúvida com relação às sentenças absolutórias proferidas por juízo incompetente. Seria possível falar para elas em revisão pro societate?

Entre os processualistas penais, Giovanni Leone ensina que coisa julgada é decisão imutável e irrevogável que significa a imutabilidade do mandato que nasce da sentença.[7]

Mas, relembra-se que para a formação da coisa julgada, além da propositura da demanda, leva-se em conta que a sentença, como ato processual, está sujeita a condições de validade, decorrentes estas da validade da constituição do processo que é um conjunto de atos destinados à formação ou atuação de um imperativo jurídico. Assim é nula a sentença quando nula ou inválida a constituição do processo.

Tem-se, entre essas condições de validade, repita-se a competência que, em matéria processual penal, é improrrogável, pelo que faltando ao juiz penal, competência para decidir uma lide penal, a relação embora existente, é nula, tornando inadmissível a apreciação final sobre o mérito.

Para Giovanni Leone, a consequência do descumprimento das regras sobre competência em razão da matéria é a nulidade dos atos levados a cabo pelo juiz.

Mas, cabe o alerta: Em matéria de direito processual penal, a decisão absolutória, ainda que prolatada por juiz incompetente em razão da matéria, está coberta pela coisa julgada por favorecer o réu. É que, em sede de direito processual penal, proíbe-se a reformatio in pejus.


III – A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NA MATÉRIA

De há muito está superada a tese de que a incompetência de jurisdição acarreta a inexistência dos atos decisórios praticados pelo juiz incompetente. Mesmo aqueles que, no passado, defenderam essa posição, exigiam que fosse incontroversa a usurpação da jurisdição. Observa-se que a orientação do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que, mesmo no caso de incompetência de jurisdição, não se  pode simplesmente negar a existência da sentença do juízo incompetente que, se for de absolvição, impede a instauração de outro processo pelo mesmo fato(RE 90.449 – SP, Relator Ministro Soares Muñoz, DJU de 18 de abril de 1980). Mesmo se for condenatória, e ainda que nula, determinará o limite da pena a ser imposta na sentença do juiz competente, por força do principio da non reformatio in pejus(RE 211.941 – SC, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJU de 4 de setembro de 1988; HC 75.907-RJ, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJU de 9 de abril de 1999; RHC 48.998, Relator para o acórdão, Ministro Thompson Flores, DJU de 14 de abril de 1971).

Bem se disse, no julgamento do HC 87.869/CE, Relator Ministro Cezar Peluso, que todos os vícios processuais, inclusive a incompetência absoluta, que fere o processo de nulidade o processo, se tornam irrelevantes depois do trânsito em julgado da sentença, exceto apenas o de falta de citação inicial, que é vício perpétuo.

Em julgamento no HC 146.208, Relator Ministro Haroldo Rodrigues(Desembargador Convocado do TJ/CE), em que foi impetrado o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou a matéria, em caso de sentença absolutória proferida por juiz absolutamente incompetente, com a ocorrência de trânsito em julgado, concedendo a ordem.

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É que, em verdade, o juiz absolutamente incompetente para decidir determinada causa, até que sua incompetência seja declarada, não profere sentença inexistente, mas nula, que depende de pronunciamento judicial para ser desconstituída(RHC 20.337/PB, Relatora, Ministra Laurita Vaz, DJe de 4 de maio de 2009).

 Em outro julgamento, no HC 36.091/RJ, Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, DJU de 24 de fevereiro de 2005, registrou-se que a sentença absolutória transitada em julgado, ainda que emanada de juiz absolutamente incompetente não pode ser anulada e dar ensejo a novo processo pelos mesmos fatos. Incide, pois, o princípio do ne bis in idem, impedindo a instauração de processo-crime pelos mesmos fatos porque foi o paciente absolvido perante Juízo absolutamente incompetente.

Da mesma forma, tem-se o julgamento no HC 23.352/SP, Relator, Ministro Hamilton Carvalhido, DJU de 10 de fevereiro de 2003.


IV – CONCLUSÕES

Corretas, em seus fundamentos, as conclusões de Pacelli[8] no sentido de que mesmo o vício de decisão absolutória proferida por juiz absolutamente incompetente não pode ser conjurado, revisto. Incidirá a proibição da revisão pro societate.

A declaração de incompetência absoluta do juízo se enquadra nas hipóteses de nulidade absoluta do processo, razão pela qual impõe-se não confundir a sentença nula com a sentença inexistente. Esta última é um nada jurídico, por falta de requisito essencial, como é caso da falta de citação. De outra, a sentença prolatada por juízo absolutamente incompetente, embora nula, pode acarretar o efeito de tornar definitiva a absolvição do acusado. Assim apesar de eivada de nulidade, a decisão tem como consequência a proibição da reformatio in pejus.

Como se narrou no julgamento do HC 80.263/SP, DJ de 27 de junho de 2003,  Relator Ministro Ilmar Galvão, os atos praticados por órgão jurisdicional constitucionalmente incompetente são atos nulos e não inexistentes. A nulidade decorrente de sentença prolatada com vício de incompetência de juízo precisa ser declarada e, embora não possua o alcance das decisões válidas, pode produzir efeitos. Nesse mesmo julgamento, lembrou-se que a incorporação do princípio do ne bis in idem ao ordenamento jurídico complementa o rol dos direitos e garantias individuais previstos pela Constituição de 1988.

Nesse sentido, Fernando da Costa Tourinho Filho[9], se alinha aos que entendem que  pouco importa que a sentença tenha sido proferida em processo manifestadamente nulo, ou que haja o Tribunal cometido flagrante injustiça em absolver o réu, pois o bis in idem deve ser utilizado de forma absoluta.

Isso porque, em se tratando de processo penal, o rigor técnico da ciência- processual deve ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis.


Notas

[1] Para Chiovenda(Instituições de direito processual civil, volume 1º, pág. 512/513, tradução de Heli Menegale, Saraiva, 1942), o processo é um instituto público destinado à atuação da vontade da lei em relação aos bens da vida por ela garantidos, culminante na emanação de um ato de vontade.

[2] BUZAID, Alfredo. Do agravo de petição no sistema do CPC, São Paulo, Saraiva, pág. 127.

[3] ARRUDA ALVIM PINTO, Teresa. Nulidades da sentença, São Paulo, RT, 1987, pág. 15.

[4] LIEBMAN, Enrico Tulio. Estudos sobre o processo civil brasileiro, Ed. José Bushatsky, pág. 181.

[5] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao código de processo civil de 1939, t. XIV/131, Rio de Janeiro, Forense, 1961.

[6] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal, 17ª edição, São Paulo, Atlas, pág. 675.

[7] LEONE, Giovanni. Tratado de derecho procesal penal, volume III, pág. 321, Ediciones jurídicas Europa-America, Tradução de Sentis Melendo, 1963, Buenos Aires.

[8] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de.Curso de processo penal, São Paulo, Atlas, 17ª edição, pág. 50 a 51.

[9] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, 21 ª edição, São Paulo, Saraiva, 1999, volume IV, pág. 583. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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