Texto normativo e norma jurídica: aproximações e distanciamentos

11/05/2015 às 16:36
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A construção da norma jurídica não se restringe ao legislador. Inicia-se com o texto normativo e termina seu conteúdo e sentido com o aplicador do direito.

Este trabalho aborda o significado das expressões “texto normativo” e “norma jurídica”, a fim de estabelecer mais precisamente os limites que envolvem a interpretação jurídica e garantir uma melhor compreensão de atuais decisões produzidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Para tanto, elege-se, como premissa de sustentação deste trabalho, a linha de pensamento desenvolvida por Eros Roberto Grau, ilustre jurista e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal.

De pronto, vale rememorar a advertência de Celso Lafer, no sentido de que:

Não existe um critério unívoco da boa e correta interpretação, assim como não existe um critério unívoco da boa e correta tradução (...). No caso do Direito, a uniformização do sentido do jurídico, pela interpretação, tem a ver com o poder da violência simbólica, que, se apoiando na autoridade, na liderança e na reputação, privilegia um enfoque, entre muitos enfoques possíveis, que passa a ser o uso competentemente consagrado de uma escolha socialmente prevalecente.[1]

Com isso, inicia-se a exposição com a simples afirmativa, e não menos importante, que sustenta: “todo e qualquer texto normativo é obscuro até o momento da interpretação”.[2]

De efeito, cabe assentar, desde logo, que se rejeita a incidência do adágio latino in claris cessat  interpretatio (a clareza afasta a interpretação), certo que, a nosso ver, todo texto normativo exige a devida interpretação jurídica.

Apresentadas essas premissas gerais e no afã de registrar os pontos de ancoragem desta pesquisa, é de rigor a exposição de duas noções, a saber: a primeira, refere-se ao “texto normativo”, ao aspecto físico, textual, escrito, verbi gratia, de um dispositivo legal; a segunda, pertine à interpretação do texto, atividade de índole constitutiva exercida com base numa dada realidade histórica marcada no tempo e no espaço.

Pois Bem. Passa-se, então, a examinar, de maneira mais detida, cada uma dessas noções.

A primeira, como acenado, representa o texto normativo, o texto construído e apoiado nas balizas do devido processo legislativo (processo legislativo legiferente), respeitados os devidos limites políticos, sociais e econômicos, implícitos e explícitos, da ordem jurídica vigente. Noutras palavras: o texto normativo é, simplesmente, o direito positivado pelo Estado, que traça, a partir da opção político-legislativa adotada, um horizonte de possibilidades para fins de futura interpretação. Pode-se indicar, à guisa de ilustração, algumas expressões sinônimas de texto normativo, como segue: texto legal, dispositivo, enunciado, diploma normativo, preceito normativo, arcabouço normativo, quadra normativa, cenário normativo. Eis que surge, nessa esteira, a noção de positivação do Direito, como arte de construção do texto normativo.

A segunda, de outra banda, versa sobre a noção de norma jurídica. Norma, aqui, não é sinônimo de lei, de texto legal. Ao contrário, a norma jurídica consiste numa atividade de produção interpretativa.

Frise-se, a norma é produzida pelo operador do Direito, pelo intérprete do texto. É dizer, a norma jurídica é produzida a partir de diferentes sentidos possíveis contidos no texto, implícita ou explicitamente.

Mas não é só. A norma jurídica é, ainda, extraída com esteio numa realidade histórica. A norma é produto de um dado período histórico. A cada momento histórico, portanto, surge nova norma jurídica.

Assim, a norma jurídica é uma produção histórica pela via da interpretação jurídica. A norma jurídica, então, varia ao longo do tempo, e é, num certo sentido, um organismo vivo que brota e se desenvolve por intermédio de uma trama de elementos que formam e conformam o convencimento do intérprete.

A formação da norma, a partir de um texto normativo constitucional, por exemplo, no contexto da realidade que a circunda, restou bem contextualizada pela seguinte passagem:

Como outra ilustração, cabe ressaltar que não é, tampouco, possível compreender o conteúdo normativo do enunciado ao art. 5º, X, da Constituição Federal (direito à privacidade e intimidade) sem levar em conta o estágio de desenvolvimento tecnológico. Pense-se, por exemplo, que o programa normativo do preceito parece dizer que aquilo que não é visível ao público deve ser considerado do domínio privado, não podendo, em princípio, ser objeto de livre exposição por terceiros, sem ferir a privacidade de alguém. O avanço tecnológico, porém, tornou possível trazer ao olhar do público, por meio de lentes teleobjetivas, pessoas em situações que, antes, eram estritamente privadas. O desenvolvimento da técnica mudou a concepção do que é visível ao público. Essa evolução tecnológica, esse dado de fato, deve ser levado em conta para a compreensão do conteúdo normativo da proteção constitucional do direito à privacidade.[3]

É, portanto, um indicativo de que a norma jurídica mostra-se em contínuo movimento.

Consigne-se, com efeito, que o texto normativo não se confunde com a norma jurídica. Vale, a propósito, marcar o que segue: o texto é estático; a norma jurídica, dinâmica.

Com isso, é fácil identificar que a discussão do tema é polarizada a partir de duas perspectivas: de um lado, o texto normativo, que se confunde com a lei, com o direito posto; d’outra banda, a norma jurídica, criada pelo intérprete, a partir do texto (ainda que carregado de variações semânticas) e da realidade particular experimentada no momento da interpretação, e não da realidade que permeou a elaboração do texto.

À guisa de exemplo, anota-se, como texto normativo, o art. 226, § 3º, da Carta Política de 1988, no sentido de que  “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

A rigor, trata-se de um texto que enuncia o significado jurídico da entidade familiar, limitando sua composição ao homem e à mulher.

A Corte Suprema, todavia, ampliou a extensão da proteção do Estado, como sabido. O Texto Constitucional, resultado da manifestação do poder constituinte originário de 1988, permanece atualmente inalterado, intacto. Mudou-se, apenas, o sentido do texto. Deu-se a construção da norma jurídica a partir do texto e da realidade social pós-moderna. O conceito de família ganhou novos contornos jurídicos. O intérprete, in caso, a Corte Suprema, produziu uma norma jurídica conformadora para a união homoafetiva, a partir do texto normativo da Constituição e considerou, para tanto, a realidade histórica afeta, e inclusive  afetiva, à interpretação da Constituição.

Dessume-se, pois, que interpretar consiste numa operação constitutiva, criativa (e não apenas declaratória), que tem por objetivo extrair o real significado do texto, com espeque numa realidade determinada.

Assim, o intérprete cria a norma jurídica aplicável ao caso em testilha, com base na multiplicidade de sentidos contidos no próprio texto e, também, na realidade fenomênica.

É também sabido que o texto normativo é marcado por uma variedade de opções interpretativas, o que viabiliza a construção da norma jurídica pela adoção de, pelo menos, uma via interpretativa a ser escolhida pelo hermeneuta.

Com efeito, não há que se falar, a nosso ver, em voluntas legis (vontade da lei).

A “lei”, o texto normativo, não possui vontade.

Há, de fato, por assim dizer, duas vontades: uma, a vontade do legislador no que toca à produção do texto na dinâmica do debate político-legislativo; a outra, a vontade do intérprete no ato de eleição da interpretação da lei, ao atribuir significado a ela, culminando-se na produção da norma jurídica.

Aliás, vale reforçar que a vontade do legislador possui um valor reduzido no universo jurídico, como revela o Min. Gilmar Mendes:

A prática demonstra que o Tribunal não confere maior significado à chamada intenção do legislador, ou evita investigá-la, se a interpretação conforme à Constituição se mostra possível dentro dos limites da expressão literal do texto  (Rp. 1.454, Rel. Min. Octavio Gallotti, RTJ, 125:997; Rp. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ, 126:514; Rp. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ, 9 set. 1988).[4]

Tendo em vista as noções expostas, inafastável registrar, agora, em síntese, a lapidar lição do professor Eros Roberto Grau:

Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto normativo e norma jurídica, a dimensão textual e a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade (..) A interpretação do direito tem caráter constitutivo --- não meramente declaratório, pois --- e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. (...) Interpretar/aplicar é dar concreção [=concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular.[5]

E, por arremate, acentua o mestre Eros Grau:

Se for assim --- e assim de fato é --- todo texto será obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua transformação em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro contexto, que se impõe observarmos que a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após ter sido ela interpretada.[6]

De tudo, pode-se construir a seguinte lógica de raciocínio.

Num primeiro momento, o operador do Direito analisa o texto em vigor, o texto normativo (Constituição, lei ou quaisquer outros atos normativos), e adota um método interpretativo possível (diante da percepção de polissemia do texto) e, em seguida, firma seu posicionamento para fins de aplicação do Direito in concreto, fazendo surgir, com isso, a norma jurídica, a norma que decide a demanda posta em juízo. Noutras palavras: a “norma de decisão”.

Não é outro o pensamento de Gilmar Mendes, para quem “interpreta-se um preceito para que dele se possa extrair uma norma (uma proibição, uma faculdade ou dever), e com vistas à solução de um problema prático”.[7]

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E mais:

A norma, portanto, não se confunde com o texto, isto é, com o seu enunciado, com o conjunto de símbolos linguísticos que forma o preceito. Para encontrarmos a norma, para que possamos afirmar o que o direito permite, impõe ou proíbe, é preciso descobrir o significado dos termos que compõe o texto e decifrar, assim, o seu sentido linguístico.[8]

É, nessa dinâmica, que se assentam os problemas relacionados à decidibilidade do Direito, já que a norma jurídica é uma “norma de decisão”, que ora se aproxima do texto normativo, ora se distancia dele, para dar conta da realidade jurídica enfrentada, o que, de algum modo, pode sugerir aparente distorção entre a decisão judicial e a “lei” em vigor.

A aparente distorção deve-se, sobretudo, à grande sensação de apego à postura legalista que ainda instrui a aplicação do Direito brasileiro, de forte inclinação ao sistema civil law, que prima pela tradicional e fiel observância da lei.

O Ministro Gilmar Mendes, num certo sentido, explica:

Ocorre que, por muitas vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não de confunde com o texto, repara-se, aí, uma mudança da norma, mantido o texto.[9]

Cabe acentuar, neste ponto, que a problemática da decidibilidade é especialmente marcada pela adoção das “normas de decisão aditivas”, que transformam o significado original do texto.

Na mesma toada, registre-se:

É certo que o Supremo Tribunal Federal já está se livrando do vetusto dogma do legislador negativo, aliando-se, assim, à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotada pelas principais Cortes Constitucionais do  mundo.[10]

Vê-se, pois, que o constitucionalismo brasileiro do séc. XXI lança, de maneira inusitada, o grande desafio de se adaptar a outros sistemas jurídicos que conduzem à formação de uma postura político-jurídica intimamente ligada a certo distanciamento do texto normativo.

Encerra-se, aqui, de modo a sustentar o reconhecimento de mais um contorno que engendra a dogmática jurídica, e, talvez, a título de provocação, a identificar mais um sinal de enfraquecimento do positivismo jurídico.

Bibliografia

BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional Contemporâneo. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2009.

________. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2010.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 16.ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

________. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

________. Voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jun.-abr. 2011, vol.216, p.19-47.

Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira. Voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jun.-abr. 2011, vol.216, p.146-155.

________. Voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jan.-mar.. 2012, vol.219, p.295-332.


[1] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.18.

[2] GRAU, Eros. Voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jun.-abr. 2011, vol.216, p.22.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 84.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jun.-abr. 2011, vol.216, p.148, grifo nosso.

[5] GRAU, Eros. Voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jun.-abr. 2011, vol.216, p.22.

[6] Idem, Ibidem, p.23.

[7] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 82.

[8] Idem, Ibidem, p.83.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.134.

[10] MENDES, Gilmar Ferreira. Voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jan.-mar.. 2012, vol.219, p.302.

Sobre o autor
Eliezer Pereira Martins

Advogado, mestre e doutorando em direito (PUC/SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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