MISTÉRIOS ARGENTINOS

03/06/2015 às 11:39
Leia nesta página:

O ARTIGO COMENTA CASO CONCRETO OCORRIDO NA ARGENTINA

MISTÉRIOS ARGENTINOS

ROGÉRIO TADEU ROMANO
Procurador Regional da República aposentado

Há perto de vinte anos, em ato covarde, o mundo estarrecido assistiu a um crime de terrorismo, que deixou 85 mortos e cerca de 300 feridos na seda da Amia(Associação Mutual Israelita Argentina), em Buenos. A oposição ao governo argentino e os lideres da comunidade judaica acusaram o governo de ignorar as decisões da Justiça em Buenos Aires, que condenou, à revelia, um grupo de iranianos, que, naquele ano, ocupava postos no governo da época.
Há poucos dias, o promotor Alberto Nisman – que era encarregado do caso desde 2004, preparava-se para detalhar uma grave denúncia contra a presidente da Argentina e seus ministros de relações exteriores, alegando que ambos teriam articulado um pacto internacional para deixar impunes os suspeitos do atentado. Falou-se que haveria um acordo entre o governo daquele País e a Argentina(acordo secreto), que visaria a fortalecer laços comerciais entre as duas Nações, acomodando as suspeitas em torno do caso.
No processo, Nisman falou em vantagens comerciais para a Argentina, que poderia vender grãos ao Irã e comprar petróleo mais barato. Reportagem da revista “Veja”, com ex-integrantes do governo de Hugo Chaves, da Venezuela, sugere que o acordo poderia incluir também o pagamento de propina a integrantes do governo em troca de tecnologia nuclear.
Noticiou-se que essas investigações teriam apontado autoridades do primeiro escalão do governo do Irã.
Trabalhou-se com duas hipóteses. Uma era a chamada “pista síria”. Segundo esta, o atentado teria sido uma resposta do governo sírio a Menem, depois que este cancelou uma venda de reatores nucleares àquele país. A outra, que é a que Nisman achava a correta, era a “pista iraniana”: o atentado teria sido obra do Hizbullah, com apoio do governo do Irã, após a decisão argentina de suspender um acordo de transferência de tecnologia nuclear ao país.
Em cena de verdadeiro filme de suspense, aparece o promotor Nisman morto, às vésperas de divulgar as informações que atingiriam o governo argentino.
De início, a notícia era de  caso de suicídio.
Lembra-se Shopenhauer, nas “Dores do Mundo”, quando aconselhava o suicídio como única solução lógica à existência humana de forma indefectível presa ao sofrimento.
Prefiro a tese de que o suicídio é insondável.
Em verdade, a tese do suicídio, pelas informações que se seguiram, parece não ter fundamento.
Tudo indica que houve um assassinato, um homicídio qualificado.
Bastou o chaveiro dizer que era facílimo entrar pela área de serviço. Não havia marcas de pólvora nas mãos do promotor. Dir-se-ia que o tipo de arma usada nem sempre deixa vestígios?
O certo é que o governo da Argentina está em dívida para com a comunidade internacional uma vez que até hoje os assassinos que participaram de um crime gravíssimo contra a Associação Mutual Israelita Argentina não foram punidos. A isso se soma a misteriosa morte de um membro do Parquet que investigava o crime.
As Associações do Ministério Público em toda a América devem se unir para exigir a busca da verdade e da justiça.
Não foi apenas um membro do Ministério Público que pode ter sido vítima de um crime. Foi ainda toda a sociedade argentina.
Não convence, sob o ponto de vista técnico-jurídico, a decisão judicial de rejeitar a denúncia formulada contra a Presidente argentina, que enfrenta a tese da atipicidade da conduta e dá caminho a coisa julgada. Em sede de decisão prelibatória, vale o in dubio pro societate. A tipicidade ou não da conduta deve ser enfrentada quando da instrução probatória. Na verdade, chegou-se, em primeiro grau, a conclusão final, sem permitir a materialização de prova alguma que comprovasse o delito.
Se não bastasse tudo isso, a perícia independente confirmou a tese de que Alberto Nisman foi assassinado, descartando a hipótese de suicídio ou acidente, no caso que chocou o país irmão. Foi explicado que “em caso de suicídio, o mais comum é que a mão do disparo, na maioria das vezes à direita, esteja completamente suja com o sangue da vítima, mas isso não ocorreu. Uma parte estava limpa, como se “algum objeto ou mão” a tapasse. Já a mão esquerda estava suja.”. Para a perícia, isso sugere que alguém.
Por sua vez, o jornal argentino La Nación revelou novas conclusões dos peritos particulares. A principal delas é a de que Nisman estava de joelhos quando foi morto. Tal afirmação se baseou na análise dos respingos de sangue. No relatório há conclusões de que ele estava com o joelho direito no chão e com a perna esquerda curvada com o pé esquerdo apoiado no piso. O sangue escorreu do joelho para o tornozelo.
Há situações em que se dificulta ou se torna impossível a defesa da vítima(traição, emboscada, surpresa).
Trata-se de homicídio qualificado(artigo 121, § 2º, IV, do CP), pois há indícios de que seria cometido “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido’. São circunstâncias que levam à prática do crime com maior segurança para o agente, que se vale da boa-fé o desprevenção da vítima e revelam a covardia do autor. A traição consubstancia-se essencialmente na quebra de confiança depositada pela vítima do agente, que dela se aproveita para matá-la. Demonstra o agente um maior grau de criminalidade quando pratica o crime a traição. Atinge o agente a vítima descuidada e confiante, em casos de perfídia e deslealdade. Se mata a vítima adormecida pode agir com traição, que é caracterizada pela perfídia e pela deslealdade(RF 159/385; 165/334). Será o procedimento insidioso, quando houver disfarce da intenção hostil, de tal modo que a vítima iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e venha a ser colhida de surpresa(RF 106/128; 159/385).
Há emboscada quando o agente aguarda a vítima, oculto, por certo lapso de tempo, no lugar ou nos lugares onde a pode atingir.
A dissimulação é o emprego de de recurso que distrai a atenção da vítima do ataque do agente. Por sua vez, a emboscada é a espera por parte do agente, da passagem ou chegada da vítima descuidada, para feri-la de improviso(RT 333/500). Por sua vez, a surpresa pode qualificar o delito quando, de forma efetiva, tenha dificultado ou impossibilitado o agente de se defender(RT 545/326). Será o caso do gesto repentino quando não se dá à vítima condições de se defender.
Para se ter uma ideia, no direito penal brasileiro, há homicídio qualificado se há recurso que dificulta ou impossibilita a defesa. Tal só pode abranger hipótese que seja análoga à traição, emboscada ou dissimulação(TJSP, RJTJSP 108/451). Entende-se ainda que além da surpresa não haja razão para o ofendido esperar ou pelo menos suspeitar da possibilidade de agressão.
Os peritos apontam outros elementos que indicam a presença de outra pessoa na hora do crime. Ainda há vestígios que indicam que a torneira e a pia foram lavadas para mascarar a presença do sangue.
Há, portanto, evidências de que houve um homicídio.
Leva-se a crer que pode ter sido um assassinato político às vésperas de o procurador pedir o indiciamento da presidente argentina por encobrir o envolvimento do Irã no atentado contra a Associação Israelita Argentina, em 1994.
Segundo o que informou o Globo, informações do computador de Nisman foram apagadas. Assim se disse:
“Em mais uma pista que joga nova luz sobre a morte de Alberto Nisman, peritos argentinos concluíram que o computador do promotor morto foi acessado remotamente pelo menos dez vezes. De acordo com o jornal “Clarín”, a data e o horário da máquina foram alterados, e arquivos foram apagados. Especialistas confirmaram, ainda, a presença de um vírus cavalo de troia no celular do promotor, que também teve informações eliminadas.
Os dados, segundo os peritos, foram excluídos antes de 18 de janeiro, dia em que Nisman foi encontrado morto em seu apartamento em Buenos Aires. Ainda não foi possível precisar o momento exato em que as arquivos foram apagados. Parte da dificuldade deve-se às alterações na configuração de data e hora do computador feitas remotamente, inclusive um dia após a morte do promotor.
Uma hipótese levantada é que os arquivos podem ter sido excluídos após a inserção simultaneamente de três pendrives no notebook de Nisman, encontrado aceso 11 horas após a sua morte. Nesse momento, sua mãe, Sara Garfunkel, ainda não tinha entrado no apartamento e visto seu filho morto no banheiro.
A conexão dos pendrives pode levar a mais informações porque cada dispositivo tem um número de identificação, podendo apontar a quem pertence, destacou o diário argentino.
A eliminação dos dados tanto do notebook como do celular não foi uma operação simples, para qual foi utilizado um software específico. A nova pista chamou atenção dos peritos, que vão preparar um novo relatório para a juíza que cuida do caso na próxima semana.
Em relação aos telefones, a procuradoria confirmou a presença de cavalos de troia, um tipo de vírus “espião” que confirmaria que Nisman estava sendo vigiado. Além disso, verificou-se que as chamadas listadas pelas empresas de telefonia não estão registradas no celular Nisman. Também faltam mensagens de texto e WhatsApp, por exemplo, trocadas com sua filha mais velha, Iara.”

O triste episódio nos faz lembrar que “ameaçar a magistratura significa ameaçar o estado democrático de direito”.
Um vídeo gravado pela Policia Federal, revelado no dia 31 de maio de 2015, mostra peritos trabalhando sem luvas. Um dos técnicos limpou parte da arma do crime com papel higiênico.
Noticia-se que o advogado Martin Hevia, da Universidade Torcuato di Tella, afirmou que, se for comprovado eventual descuido da pericia, isso pode ser usado para invalidar as provas obtidas no local.
Até o momento o único suspeito citado no processo é o assistente de Nisman, Diego Lagomarsino, que admitiu ter emprestado a arma achada ao lado do promotor.
Lagomarsino disse que Nisman lhe pediu a arma porque não confiava em sua segurança oficial e queria se defender. Ele teria sido o último a ver Nisman com vida.
Saliente-se que é registrado pelo noticiário que desde que as imagens se tornaram públicas, nem a ex-mulher de Nisman, a juíza Sandra Arroyo, nem Lagomarsino comentaram o caso.
Quase cinco meses após a sua morte, ainda não se sabe se Nisman foi vítima de um assassinato ou se ele se suicidou, como sustenta o laudo dos peritos oficiais. Por que será tanto mistério?

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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