O FAMIGERADO DECRETO-LEI 70/66
ROGÉRIO TADEU ROMANO
Procurador Regional da República aposentado
Discute-se o Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, que disciplinou a execução extrajudicial do crédito hipotecário.
O Supremo Tribunal Federal analisou a matéria no julgamento de dois Recursos Extraordinários(REs 556520 e 627106), sendo que num deles, RE 627106, teve Repercussão Geral reconhecida, significando que a decisão tomada pelos ministros deverá ser aplicada a todos os recursos idênticos em todo país.
Os Ministros Luis Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Ayres Britto e Marco Aurélio posicionaram-se pela incompatibilidade do decreto-lei com a presente Constituição. Por sua vez, os Ministros Dias Tóffoli e ainda Ricardo Lewandoswski afirmaram que não havia incompatibilidade.
Para o Ministro Luiz Fux o decreto-lei inverte completamente a lógica do acesso à Justiça, argumentando que “o devedor é submetido a todos os atos de expropriação sem ser ouvido e se ele eventualmente quiser reclamar ele que ingresse em juízo”. Para o Ministro Luiz Fux , o procedimento de expropriação de bens do devedor sem a intervenção de um magistrado afronta o princípio do devido processo legal. Para a Ministra Cármen Lúcia, o Decreto-lei 70/66 desobedece aos princípios básicos do devido processo legal , uma vez que o devedor se vê tolhido nos seus bens sem que haja a possibilidade imediata de acesso ao Poder Judiciário.
O Ministro Gilmar Mendes se disse “extremamente preocupado” com o que classificou de “forma de pensar” que traz sempre mais questões para o Judiciário. Para o Ministro o modelo que se desenha “sobre onera, sobremaneira, o Judiciário e o “inviabiliza de forma clara”, trazendo, inclusive, custos adicionais para o modelo de contrato e de financiamento”.
Na doutrina, Cândido Rangel Dinamarco apresentou, em seu livro, Execução Civil, volume I, 2ª edição, página 167, argumentos contrários ao Decreto-lei em tela, após examinar a chamada execução equilibrada, estudando o artigo 620 do Código de Processo Civil e o conjunto de disposições que gravitam em torno da ideia fundamental de tornar a execução tão suportável quanto possível ao devedor e ao seu patrimônio . Disse ele que “não-obstante essa linha de humanização da execução e busca de equilíbrio, há fatos relativamente recentes, na história das instituições jurídicas do país, que geram preocupação e trazem abertura para a injustiça. Aparece, em primeiro lugar, a execução extrajudicial instituída em favor do Banco Nacional da Habitação e das entidades ligadas ao Sistema Nacional da Habitação: ela é conduzida por um “agente fiduciário”, estranho ao Poder Judiciário e caminha sem possibilidade de embargos pelo executado, sem avaliação do bem e sem necessidade de correspondência entre o valor da alienação e o valor real deste(cf. dec-lei n.70, de 21.11.66)”. Aliás, em julgamento de que participou, Cândido Rangel Dinamarco traçou que é inegável o seu choque com as tendências do processo civil moderno e das suas garantias constitucionais(ap. 296.034, na Segunda Câmara do 1º TACivSP).
Ora, tal norma foi revogada pela Constituição de 1988. A execução prevista no Decreto-Lei n.º 70 contém resquícios incontestes de autoritarismo, próprios do regime em que foi editado. Por solicitação do credor, o agente fiduciário deflagra um procedimento administrativo que se encerrará com a alienação do imóvel hipotecado ou dado em alienação fiduciária em leilão público. Sem possibilidade de defesa ou contraditório, sem fase de conhecimento, sem recurso, perde o devedor o seu bem mais precioso que é sua casa.
A jurisprudência pátria entende que tal Decreto-Lei n.º 70 não foi recebido pela Constituição de 1988. Senão vejamos, do Mandado de Segurança n.º 93.15121-9-DF, Relator Juiz Nélson Gomes da Silva, com a seguinte ementa:
“CONSTITUCIONALIDADE. DECRETO-LEI N.º 70/66 E LEI N.º 5.741/71. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. SFH.
1. A execução extrajudicial constitui uma forma de autotutela da pretensão executiva do credor exequente, repudiada pelo Estado de Direito. Infringe o princípio da inafastabilidade da apreciação judiciária (CF/88, art. 5.º , inciso XXXV). Fere o monopólio da jurisdição e o princípio do juízo natural (incisos XXXVII e LIII, do art. 5.º , CF/88). Priva o cidadão/executado de seus bens, sem o devido processo legal (art. 5.º , inciso LV, CF/88). Não assegura ao litigante devedor os meios e os recursos necessários à defesa de seus bens (art. 5.º , inciso LV, CF/88).
2. A execução extrajudicial prevista no Decreto-Lei n.º 70/66 e na Lei n.º 5.741/71 não foi recebida pela Carta Magna Brasileira de 1988.”
Acrescento jurisprudência abaixo:
MANDADO DE SEGURANÇA - APELAÇÃO - EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL - SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - ILEGITIMIDADE PASSIVA DA CEF - INOCORRÊNCIA - ILEGITIMIDADE E FALTA DE INTERESSE DA IMPETRANTE - NÃO CONFIGURAÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO-LEI 70/66 - IMPROVIMENTO À REMESSA OFICIAL E AO RECURSO VOLUNTÁRIO. 1. A Caixa Econômica Federal é parte legítima para figurar no pólo passivo de mandado de segurança impetrado com o fim de impedir a execução extrajudicial de imóvel adquirido mediante contrato de financiamento junto ao Sistema Financeiro da Habitação. 2. A propriedade do bem imóvel é adquirida com a transcrição do título aquisitivo no respectivo registro. Tendo sido a apelante proibida de fazê-lo, por ocasião da concessão da medida liminar, remanescem intactos a legitimidade e o interesse de agir da apelada. 3. As regras referentes à execução extrajudicial estampadas no Decreto-lei nº 70/66 não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, por não observarem os princípios do devido processo legal, como o do juiz natural, ampla defesa e contraditório. 4. Preliminares rejeitadas; remessa oficial e recurso voluntário improvidos. Processo AMS 94031025735 AMS - APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 157964 Relator (a) JUIZ FAUSTO DE SANCTIS Sigla do órgão TRF3 Órgão julgador QUINTA TURMA Fonte DJU DATA:15/02/2005 PÁGINA: 324 Data da Decisao 31/05/2004
Indaga-se se seria caso de remeter ao exame do Pretório Excelso a constitucionalidade das leis precedentes incompatíveis com a Constituição e por ela não expressamente revogadas, mesmo que isto signifique negar efeito revogatório. O Colendo Supremo Tribunal Federal optou por filiar-se à tese da revogação. A este respeito: ADIn n.º 2-1/DF, Rel. Min. Paulo Brossard, DJU 12-02-92, Seção I, p. 966; ADIn n.º 55/600, Rel. Min. Néri da Silveira; ADIn n.º 3372/600, Rel. Min. Paulo Brossard; ADIn n.º 129-9/SP, Re. Min. Celso de Mello; ADIn n.º 381-0/DF, Rel. Min. Moreira Alves; ADIn n.º 121-3/DF, Rel. Min. Marco Aurélio.
A tese vitoriosa, da lavra do eminente Ministro Paulo Brossard, considera que a Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as.
É princípio de Direito Intertemporal que a lei revogada não se restaura quando a lei revogadora perde a vigência (§ 3.º do art. 2.º da LICCB). Somente por disposição expressa do legislador, a lei morta ressuscita, volta a ocupar lugar no sistema jurídico, já ensinou o mestre Oscar Tenório, in “Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro”, 1955, 2.ª ed., p. 92, n.º 140. Mas, por óbvio, se tal norma é revogada pela Constituição, não pode outra norma infraconstitucional repristiná-la. Isto estarreceria até a um não jusracionalista. Haverá, sim, repristinação de lei anterior, em caso de inconstitucionalidade originária de lei posterior, como leciona Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional”, A-2, p. 254/255, à luz de Cappelletti, in “Effetti preclusivi nel Processo Civile delle pronuncie costituzionali”. Veja-se, outrossim, Rep. n.º 1.356-AL, Rel. Min. Francisco Rezek, RTJ, 120:64.
Numa síntese salutar com relação a matéria, o Ministro Marco Aurélio frisou que a Constituição determina que a perda de um bem deve respeitar o devido processo legal e, portanto, deve sempre ser analisada pelo Poder Judiciário. “Ninguém pode fazer justiça pelas próprias mãos”.