UM CASO DE CRIME DE USURPAÇÃO DE BENS DA UNIÃO
ROGÉRIO TADEU ROMANO
Procurador Regional da Republica aposentado
A imprensa põe em destaque a existência de um esquema que explorava ilegalmente a turmalina paraíba, uma das pedras preciosas mais caras que existem. Operação teria ligação com Al-Qaeda.
Assim se noticiou:
“Uma das pedras preciosas mais caras que existem em uma das regiões mais miseráveis do país. O Fantástico mostra como funcionava um esquema internacional para explorar ilegalmente a turmalina paraíba e levá-la para fora do Brasil.
Os repórteres Maurício Ferraz e Alan Graça Ferreira revelam como a turmalina paraíba chegava à Tailândia, em um esquema que teria conexão com um dos grupos terroristas mais temidos do mundo
O lugar está no centro de uma fraude internacional que envolvia empresários do Brasil e compradores estrangeiros, entre eles um homem do Afeganistão, Zaheer Azizi, suspeito de envolvimento com um dos principais grupos terroristas do mundo, a Al-Qaeda. Apesar da precariedade no trabalho e dos riscos, uma preocupação a empresa tinha: fechar os túneis com grade. As grades são para evitar o roubo da pedra preciosa que era explorada ilegalmente. Os garimpeiros chamam de caolim, um tipo de uma argila. E é geralmente onde eles encontram a turmalina tão preciosa.
A turmalina paraíba é uma das pedras mais raras, mais caras e mais procuradas do mundo. Mais rara até que o diamante. É umas das gemas mais caras que se tem pela raridade, porque o diamante, na verdade, geologicamente falando, não é tão raro quanto se pensa, afirma Antônio Luciano Gandini, geólogo da Universidade Federal de Ouro Preto.”
Há, sem dúvida, a necessidade de investigação em torno de crime de organização criminosa e ainda outros delitos previstos em legislação extravagante.
Dispõe o artigo 176 da Constituição que “as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
Por sua vez, o artigo 2º, § 1º, da Lei 8.176/91 dispõe sobre o delito de usurpação de patrimônio da União Federal, ao se transportar matéria-prima pertencente à União Federal, sem a competente autorização.
Assim constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostos pelo titulo autorizativo. A pena é de detenção, de 1(um) a 5(cinco) anos e multa. Por sua vez, o parágrafo primeiro determina que incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tive consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput do artigo.
trata-se de crime material e de dano. .
Por certo, a competência para instruir e julgar esses crimes é da Justiça Federal, a teor do artigo 109, IV, da Constituição Federal.
Diverso é o crime previsto no artigo 55 da Lei 8.176/91 onde se diz: “Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença ou em desacordo com a obtida. Trata-se de crime de menor potencial ofensivo, com pena de 6(seis) meses a 1(um) ano e multa. Nas mesmas penas, incorre quem deixa de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão ou determinação do órgão competente(Lei 9.605/98).
Há, pois, bens jurídicos diversos protegidos. No crime previsto no artigo 2º, §1º, da Lei 8.176/91 protege-se o bem da União propriamente dito, num crime contra o patrimõnio. No outro delito, o meio ambiente.
A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1.998, “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”. O art. 55, supra colacionado, está inserido na Seção III, intitulada “Da Poluição e outros Crimes Ambientais”, o que evidencia não abranger a norma, ao mesmo tempo, os aspectos ambientais e patrimoniais da exploração mineral. Tratando-se (a Lei 9.605/98) de um diploma de proteção ao meio ambiente, a “autorização, permissão, concessão ou licença” referidas no tipo (art. 55) só pode ser ambiental. E essa conclusão também se extrai da disposição constante do parágrafo único do dispositivo em exame (art. 55): “Nas mesmas penas incorre quem deixa de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão ou determinação do órgão competente”. É que a única recuperação cabível é a do meio ambiente. Para a “recomposição patrimonial” da União a Constituição Federal prevê a “compensação financeira” pela exploração de petróleo ou gás natural, recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no território, na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva (art. 20, § 1º). Portanto os dispositivos do caput e do parágrafo único do art. 55, da Lei 9.605/98, prevêem exclusivamente crimes ambientais. Registre-se que este tipo legal não reclama a ocorrência efetiva de poluição do meio ambiente. Se esta ocorrer, estará configurado o crime de poluição, previsto no art. 54 e seus parágrafos, do mesmo diploma legislativo. Neste dispositivo legal (art. 54), estão contemplados comportamentos dolosos e culposos, bem como seis formas qualificadas do delito. Cumpre salientar que no caso de efetiva poluição ao meio ambiente caracteriza-se o concurso formal entre os delitos do art. 54 e 55, Lei 9.605/98, aplicando-se o disposto no art. 70, do Código Penal. Aplicar-se-á ao agente a pena mais grave dentre as cabíveis, aumentada de um sexto até metade, ou, no caso de desígnios autônomos na ação ou omissão dolosa, somar-se-ão as penas.
O art. 2º , da Lei 8.176/91, por seu turno, descreve o crime de usurpação, como modalidade de delito contra o patrimônio público, consistente em “produzir bens ou explorar matéria-prima pertencente à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo”. Esse diploma legal (Lei 8.176/91)“define crimes contra a ordem econômica e cria o sistema de estoque de combustíveis”. Não trata de questões ambientais. O tipo penal (art. 2º) indica claramente que a sua natureza é de crime contra o patrimônio, na modalidade usurpação. Usurpação é o ato ou efeito de apossar-se violentamente, adquirir com fraude, alcançar sem direito, obter por artifício. E matéria prima, outro termo fundamental para a compreensão da norma incriminadora em exame, é a substância em estado bruto, principal e essencial, com que é “fabricada” alguma coisa ou, em outras palavras, que é destinada à obtenção direta de produto técnico por processo químico, físico ou biológico, como os recursos minerais.
Quando o agente realiza a lavra clandestina de recursos minerais sem qualquer autorização, pratica simultaneamente o crime ambiental e o crime de usurpação. A ação é, normalmente, uma só, apesar de serem dois os resultados da conduta. Então, o caso é de concurso formal entre as infrações o que importa em continência, deslocando a competência do crime ambiental para o âmbito da Justiça Federal, ainda que, ao final, as penas venham a ser aplicadas cumulativamente, como ocorre no concurso material, por força do reconhecimento da unidade de desígnios do agente. Impõe-se a aplicação do artigo 70 do Código de Processo Penal.
A esse respeito, tenha-se:
CRIMINAL. HC. EXTRAÇÃO DE AREIA SEM AUTORIZAÇÃO DO ÓRGÃO COMPETENTE COM FINALIDADE MERCANTIL. USURPAÇÃO X EXTRAÇÃO. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. INOCORRÊNCIA. CONCURSO FORMAL. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO-EVIDENCIADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO-DEMONSTRADO. ORDEM DENEGADA. I - O art. 2º da Lei 8.176/91 descreve o crime de usurpação, como modalidade de delito contra o patrimônio público, consistente em produzir bens ou explorar matéria-prima pertencente à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Já o art. 55 da Lei 9.605/98 descreve delito contra o meio-ambiente, consubstanciado na extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida. II – Noticiada a existência de crime em tese, bem como indícios de autoria há necessidade de apuração a respeito do ocorrido, o que só será possível no transcurso da respectiva ação penal, sendo despicienda a alegação de isenção de apresentação de licença ambiental para exploração de areia. III - A falta de justa causa para a ação penal só pode ser reconhecida quando, de pronto, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade. IV – Ordem denegada. (STJ, HC30852, Rel. Min. Gilson Dipp, p. 24/05/2004)