A CRFB/88 e o problema da duração do trabalho em turnos ininterruptos de revezamento.

Identificando as contradições político-jurídicas da intervenção estatal no sistema brasileiro de relações de trabalho

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[1] Uma interessante acepção do que o direito poderia chamar de prejuízo social imposto ao trabalhador é o que, atualmente, denomina-se “dano existencial”. O fundamento sociológico desse conceito pode ser extraído do trabalho de Ricardo Antunes (Os Sentidos do Trabalho), segundo o qual o constrangimento (do capital) transcende o homo laborans, avançando para a vida-fora-do-trabalho, e impedindo a constituição de uma “subjetividade autêntica” na pessoa-que-vive-do-trabalho. Para Ricardo Antunes, o ser trabalhador teria se tornado um sujeito-objeto, na medida em que os constrangimentos oriundos da relação capital versus trabalho, e sua influência na vida fora do trabalho, teria lhe determinado uma personalidade “escravizada” pelos fetichismos do capitalismo.

[2] A “novidade”, neste caso, se refere à proteção excepcional conferida pela CF/88, e não à possibilidade, em si, de se organizar o trabalho em turnos que se revezam ininterruptamente. Tal regime de trabalho sempre foi viável, e mesmo quando mereceu regulação particular (Lei 5.811/72), jamais se lhe havia atribuído o pressuposto da condição prejudicial ao trabalhador.

[3] Embora valha destacar os relatos de Engels (2008), que ao retratar a situação dos operários ingleses durante o século XIX testemunhou que o “relógio do patrão” media um tempo diferente, geralmente mais lento, o que impunha mais tempo de trabalho aos operários.

[4] Basta mencionar que a Lei 5.811/72 admitia turnos ininterruptos de revezamento de oito e doze horas, e de jornadas de até vinte e quatro horas (com doze horas de sobreaviso).

[5] No sentido proposto por Gusfield (1981), como uma das etapas do processo de transformação de problemas sociais em problemas públicos.

[6] A pacificação desta questão veio com a Súmula 423, cuja redação deixa claro que a negociação de um turno ininterrupto de oito horas não caracterizaria prorrogação da jornada, tampouco compensação de horários. Tratar-se-ia, tão-só, de pura e simples mitigação do dispositivo constitucional; em exemplo bastante evidente da prevalência do negociado sobre o legislado, sob o beneplácito da própria CF/88.

[7] É o caso, por exemplo, da Instrução Normativa nº 64 da SIT/MTE de 2006, que ao fixar regras para a inspeção do trabalho em empresas que praticam o turno ininterrupto de revezamento, estabelecem algumas características substanciais do modelo, tais como: alternância entre horários noturnos e diurnos, independentemente da quantidade de turnos diários, e a irrelevância de se conceder repousos semanais remunerados no mesmo dia da semana, com ou sem paralisação das atividades da empresa. Por sua vez, a Portaria nº 412/2007, de duvidosa constitucionalidade, proibiu a conversão em turno fixo do turno de revezamento por iniciativa exclusiva da empresa, sem que um novo acordo coletivo assim estabeleça.

[8] Há de se considerar uma certa mitigação quanto à exigência da alternância entre turnos noturnos e diurnos, haja vista que é bastante improvável a ocorrência de um turno inteiramente noturno. Neste caso, há de se levar em conta um certo sentido de “predominância”. Neste caso, um turno de 0:00 h. às 7:00 seria, predominantemente, noturno.

[9] Conferir, a título de exemplos: TST - RECURSO DE REVISTA RR 8107378020015225555 810737-80.2001.5.22.5555; TST - RECURSO DE REVISTA RR 11479720125030142; TST - RECURSO DE REVISTA RR 16732120125030027 e TST - RECURSO DE REVISTA RR 1396002020035020432 139600-20.2003.5.02.0432.

[10] Há muito que a doutrina associa a expressão “jornada normal” de trabalho à jornada de oito horas (conquanto se trate apenas de um limite imposto à duração do trabalho), acima da qual ela seria “anormal”, visto que estaria incrementada de horas suplementares, seja a título de prorrogação ou compensação. Apesar de usual, tal expressão é raramente vista no plano normativo. Um exemplo seria a Lei 8.542/92, quando, ao se referir ao salário mínimo (art. 6º, caput) o relaciona à jornada normal de trabalho (oito horas). A ideia de “normalização” da jornada sugerida neste ensaio é diferente, pois considera que as jornadas havidas como “anormais” são apenas aquelas prorrogadas, ou reduzidas para comportar o fracionamento horário do salário (trabalhador horista). Este ponto de vista se justifica pelo emprego dos princípios da norma mais favorável e condição mais benéfica (RODRIGUEZ, 2002), que podem gerar novos padrões de “normalidade” ao contrato de trabalho, no que tange à duração da jornada.

[11] Ainda assim, trata-se de uma vedação apenas parcial, uma vez que a prorrogação pode se dar em situações de força maior (CLT, 413, II).

[12] Considero “indecifrável” em razão da omissão normativa acerca dos desdobramentos jurídicos da extrapolação da jornada sobre o contrato a tempo parcial.

[13] Conforme o Projeto EM nº 16/MTb:

Adita-se, ainda, derradeiro artigo que modifica o caput e o § 2º do art. 59 da CLT, de modo a se inibir a realização do horário extraordinário, devolvendo-lhe o caráter realmente excepcional e vinculando sua prestação à prévia negociação, bem como a permitir a compensação anual da jornada de trabalho. (OBINO FILHO, 1998, p. 31-32).

[14] Conferir em Viana (1997), p. 108-126 in BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. São Paulo: LTr, 1997.

[15] Situo, aqui, a feliz distinção proposta por Süssekind (2005), ao distinguir a prorrogação da jornada da compensação de horários, algo que, mesmo hoje, juristas importantes, como Martins (2013) e Saad (2011) não dão tanta importância. Num entendimento que me parece mais cuidadoso, Delgado (2007) menciona a distinção que a CLT fazia entre “horas extraordinárias” e “horas suplementares”, sendo esta um gênero no qual se inseriam a prorrogação da jornada e a compensação de horários.

[16] Denomino “prorrogação ajustada” aquela decorrente de um acordo de prorrogação (CLT, art. 59, caput). As horas extraordinárias “excepcionais” seriam aquelas realizadas nas hipóteses de necessidade imperiosa (CLT, art. 61).

[17] Ao tratar do acordo de prorrogação da jornada, Serson (1995) defendia que este deveria ser celebrado casuisticamente, o que equivale a dizer que para cada episódio de extrapolação da jornada normal deveria haver um acordo de prorrogação, que poderia, eventualmente, ser formalizado posteriormente à realização das horas extraordinárias.

[18] Aqui o conceito de normalidade adquire um duplo aspecto: legal (inclusive o convencional) e contratual.

[19] É interessante constatar que somente a Constituição Federal de 1934 empregava a expressão “prorrogar”. A Constituição de 1937 empregava o verbo “aumentar”, enquanto que as de 1946 (inclusive) em diante (à exceção, é claro, da CF/88) não faziam referência a quaisquer dos institutos: prorrogação ou compensação; tratavam apenas de considerar excepcionalmente o rompimento do limite constitucional para a duração do trabalho diário como algo que a lei ordinária deveria regulamentar.

[20] Há, na doutrina, algumas posições salientes que reconhecem limitações ao instituto da compensação de horários, como a de Abud (2008).

[21] Tal impossibilidade é crassa, sendo mesmo a base para a teoria especial das nulidades no Direito do Trabalho, como bem menciona Gomes (2002, p. 114): “trabalho feito é salário ganho”.

[22] Como lembra SAAD (2011, p. 161), era forte a tese de que a mitigação da limitação da jornada laborada em turnos ininterruptos de revezamento, ainda que negociada coletivamente, só seria válida caso fossem concedidas “contrapartidas benéficas” aos trabalhadores. O emprego desta tese era particularmente recorrente no âmbito de atuação do Ministério Público do Trabalho, em seu mister de controle da legalidade das cláusulas dos instrumentos normativos

[23] É importante ressaltar que mesmo durante a primeira metade da década passada, observaram-se algumas decisões em que se reconhecia a possibilidade de elastecimento da jornada de trabalho, em sede de turno ininterrupto de revezamento, desde que o módulo semanal de 36 horas não fosse comprometido (e.g. TST-E-RR-435/2000-003-15-00.0). Trata-se, de fato, de um posicionamento plenamente sustentável, mormente sob o pressuposto de que a compensação de horários é a única hipótese de ampliação de jornada de trabalho expressamente prevista na CF/88. Portanto, entre optar pela mitigação, pura e simples, da proteção constitucional, preferiu-se dar à parte final do inciso XIV o mesmo sentido do inciso anterior. O problema com esta interpretação é que o inciso XIII associa expressamente a redução/ampliação da jornada à compensação de horários, o mesmo não ocorrendo com o inciso XIV. De todo modo, a Súmula nº 423 aparentemente sepultou o entendimento acerca da fixidez do módulo semanal de 36 horas, para os que trabalham em turnos ininterruptos de revezamento.

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[24] São exemplos os incisos III e VI, do art. 8º da CF/88, que tratam da legitimidade dos sindicatos para representar as respectivas categorias, inclusive no âmbito das negociações coletivas, e o art. 7º, inc. VI, que trata da irredutibilidade salarial.

[25] É importante frisar que o limite de 44 horas semanais está vinculado à jornada normal de oito horas (seria o caso, na verdade, de 7:20 h.) havida como o quantum máximo de horas de trabalho por dia. Acima disso, há de haver pagamento das horas extras ou compensação de horários. Logo, o limite semanal deverá se adequar às hipóteses de jornada reduzida. É o caso da jornada de seis horas, cujo limite semanal será de 36 horas.

[26] Um bom exemplo era o “acordo de turno” negociado entre o Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda e a Cia. Siderúrgica Nacional (CSN), no qual eram previstos dos tipos de benefício financeiro: o adicional de turno e o abono de turno.

[27] Convém recordar a aceitação majoritária na doutrina e na jurisprudência, bem como no âmbito da Inspeção do Trabalho (cf. Precedente Administrativo nº 81 e Parecer CONJUR/MTE nº 199/2007), dos turnos de trabalho realizados mediante escalas do tipo 12 x 36 e 24 x 72.

[28] Que é o limite celetista. A questão se volta, principalmente, para as jornadas mais comumente vistas, que são as de doze horas.

[29] As alterações que podem ser atribuídas in melius dizem respeito à relação de proporcionalidade com o dimensionamento da jornada normal, quando inferiores a oito horas. Em verdade, a única concessão que se admite, por entendimento jurisprudencial, é que o limite semanal máximo de 44 horas possa ser atendido em termos de média mensal. É precisamente o que ocorre com as escalas do tipo 12 x 36, em que se alternam semanas com 48 e 36 horas de trabalho. Ainda a esse respeito, conferir nota nº 22.

[30] Aqui a referência é a Dworkin (2001) e à sua “hipótese estética”.

[31] É o caso do Bombeiro Civil (Lei 11.901/2009). Ver também a Portaria nº 260, de 21/02/2014, do Ministério da Saúde.

[32] Informações colhidas junto à Gerência Regional do Trabalho e Emprego de Volta Redonda, a partir das atas de Mesas Redondas realizadas no âmbito do Setor de Relações de Trabalho.

[33] São, pelo menos, cinco teorias mais comuns. A teoria da acumulação, tomista ou atomista; a teoria do conglobamento; a teoria do conglobamento mitigado; a teoria da especificidade e a teoria da adequação setorial negociada. De todas estas, apenas a primeira adota o princípio da norma mais favorável como fundamento aproximadamente absoluto.

[34] Conferir nota nº 28.

Sobre o autor
Luiz Felipe Monsores de Assumpção

Economista (UERJ) e bacharel em direito (UNESA). Especialista em direito do trabalho e legislação social (UNESA). Mestre e doutor em direito e sociologia (UFF). Auditor-Fiscal do Trabalho. Professor do Centro Universitário Geraldo di Biase. Pesquisador e membro da Associação Brasileira de Sociologia do Direito (ABraSD), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação Interdisciplinar em Sociais e Humanidades (ANINTER-SH) e da Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O texto foi composto no intuito de prestar uma colaboração institucional ao Sistema de Inspeção do Trabalho Brasileiro. Sob o ponto de vista acadêmico, diz respeito a um dos temas de interesse do autor (jornada de trabalho). O artigo foi apresentado no XXIV Encontro Nacional do CONPEDI.

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