Limites e possibilidades da Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho

15/06/2015 às 15:09
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Estabelece a melhor hermenêutica da Convenção nº 169 da OIT, que cuida das relações laborais de povos tradicionais, bem como das relações que têm com as terras que ocupam, suas riquezas e possibilidades.

1 – Introdução – A Organização Internacional do Trabalho

A Organização Internacional do Trabalho foi criada ao fim da Primeira Grande Guerra para auxiliar na manutenção da paz. De acordo com os Estados fundadores, apenas a justiça social poderia garanti-la (item II da Declaração da Filadélfia, de 1944).

A OIT já foi esboçada no Pacto da Liga das Nações, pois havia projeto para que se criasse “uma instituição permanente voltada às questões laborais” (SEITENFUS, p. 227). “Portanto a OIT é a primeira organização especializada de caráter universal” (SEITENFUS, p. 227).

Hodiernamente, a estrutura institucional da organização conta com países-membros representados por quatro delegados: dois indicados pelo governo do Estado; um indicado pelos trabalhadores do país; um indicado pelos representantes dos empregadores (art. 3, n.º 1, da Constituição da OIT).

As normas jurídicas positivadas em convenções necessitam da aprovação de dois terços dos membros da Conferência da OIT, órgão máximo da organização (art. 19, n.º 2, da Constituição da OIT). Em seguida, devem ser ratificadas para que integrem o ordenamento doméstico de cada país-membro.

Desnecessário reiterar a positividade de tratados internacionais incorporados ao ordenamento de um país. No entanto, como há certos Estados cuja cultura jurídica ignora essa modalidade de ato normativo, somos levados à redundância.

O Brasil é um dos membros fundadores da OIT e sustentou, em 1944, a Declaração da Filadélfia, em que se afirma a luta contra a pobreza.

Para dar concretude à Declaração, firmou e ratificou várias convenções, dentre as quais a Convenção n.º 169, de que trataremos a seguir.

2 – A Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho - Possibilidades

A Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989 entrou em vigor internacional em 1991. O Brasil, entretanto, só admite vigência nacional a partir de 25.07.2003.

Foi redigida a partir dos trabalhos da Cultural Survival dos Estados Unidos; da Survival International, da Inglaterra; da International Work Group for Indigenous Affairs, da Dinarmaca, com a contribuição de antropólogos latino-americanos que se reuniram no seminário “Conflito Interétnico na América do Sul”, realizado em Barbados em 1971 (DAVIS, p. 571).

Trataremos nesta seção da interpretação que é, a nosso ver, a mais condizente com a defesa dos direitos humanos dos povos indígenas e tribais.

O texto distingue os povos indígenas das tribos. Estes são coletividades cujos traços culturais permitem separá-los da maioria da comunidade de destino. Os povos indígenas são os descendentes de populações que habitavam a região antes de introdução da lógica estatal moderna.

Percebe-se que “povos indígenas” são, em realidade, espécie do gênero “tribo” constituída pelo que Darcy Ribeiro chama de “povos-testemunho” (RIBEIRO, 1995). São coletividades cuja relação com a natureza e o espaço difere daquela civilista e, ao mesmo tempo, estavam presentes no início da colonização europeia.

Segundo a Convenção n.º 169 da OIT, em seu art. 1º, n.º 2, a autoidentificação é o fator determinante no reconhecimento de quais povos seriam “indígenas” e/ou tribais.

Interessante ressaltar o disposto no art. 2º, n.º 2, c, da Convenção, que pede a eliminação de diferenças sócio-econômicas que existam entre indígenas e demais membros da comunidade nacional, desde que haja interesse (“povos interessados”). A prescrição é razoável. Vence a “falácia da genética”, segundo a qual os direitos humanos não são concebíveis pelos “povos primitivos”, uma vez que criados pela “civilização” e, ao mesmo tempo, respeita o costume local. Afirma a igualdade étnica ou racial sem desrespeitar eventuais particularidades. A mesma lógica foi adotada em outras disposições da Convenção, como aquela que assegura aos povos a oportunidade de chegarem a dominar a língua nacional ou uma das línguas oficiais do país (art. 28, n.º 2).

Menos elogiáveis são os artigos 8º, 9º e 10 da Convenção. Neles, define-se a necessidade de se respeitar o costume da tribo, desde que não atente contra direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional ou internacional. A prescrição nada mais faz do que ignorar o modo de vida de cada comunidade, sem estabelecer o devido diálogo que permite constituir corpo de direitos humanos consensuais, não impostos. Os direitos fundamentais, tal como definidos pelo Estado, terão primazia. O fato de “a autoridade ter de levar em conta os costumes dos povos sobre o assunto” é verdadeira positivação da “oitiva”.

Diferente é a racionalidade da norma mais relevante do diploma, o art. 6º, n.º 2, da Convenção, que reproduzimos em sua literalidade:

Artigo 6° (...)

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

A literalidade do dispositivo exige que medidas legislativas ou administrativas que afetem os direitos das tribos passem pelo crivo das comunidades. Ocorre que a norma exige o consentimento do coletivo. Frustrado o consenso, o ato administrativo ou a lei devem recuar. Raciocinar em sentido diverso significa fazer da consulta mera reunião, jogo de cartas marcadas em que um dos contendores (o Estado) já teria definido o resultado. Em outras palavras, inutilizar-se-ia o mecanismo. A “consulta” seria desclassificada à categoria de “audiência” ou “oitiva”.

2.1 – A Convenção n.º 169 da OIT e a Questão da Terra Ocupada por Povos Tradicionais

A Convenção n.º 169 da OIT cuida das terras tradicionalmente ocupadas por povos tribais nos artigos 13 a 19.

Exige que direitos de propriedade e posse dos povos tradicionais sejam reconhecidos. O governo do Estado signatário deve garantir (art. 14, n.º 3) que esses direitos sejam protegidos.

Parece haver contradição lógica entre a protetividade do art. 14 e a previsão do art. 15, n.º 2, que prevê, desde logo, indenização por eventuais danos no caso de exploração de subsolo e/ou de minerais. A interpretação sistemática, no entanto, não autoriza essa inteligência. O direito à consulta, também previsto para o caso, sempre deve objetivar o consentimento (art. 15, n.º 2, conjugado ao art. 6º, n.º 2). Significa que a exploração econômica depende do assentimento da comunidade local. O que o art. 15, n.º 2, quis prever é a certeza de que haverá responsabilização “por qualquer dano que possam sofrer [as comunidades tradicionais] como resultado dessas atividades”. Não há previsão de dano certo e consequente indenização: convenhamos que é desarrazoado permitir violação de direito no diploma que tutela os mesmos direitos.

A proteção das terras indígenas trazida pela Convenção n.º 169 está inserida num debate acerca de sua tutela jurídica, há muito travado no âmbito de cada Estado e ainda não plenamente finalizado.

Com efeito, “As terras indígenas são, na essência, o ponto central dos direitos indígenas, uma vez que o território constitui condição de existência, isto é, de identidade física e cultural das comunidades indígenas (...)” (NOHARA, p. 707). Neste sentido, a proteção jurídica efetiva de seu espaço territorial é conditio sine qua non para a preservação da cultura desses povos tradicionais. “(...) um povo sem território, ou melhor, sem o seu território, está ameaçado de perder suas referências culturais e, perdida a referência, deixa de ser povo” (MARÉS, p. 120).

A solução encontrada pelo Brasil foi proteger as terras indígenas fazendo-as bens públicos da União:

Art. 20. São bens da União:

XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

A opção do constituinte originário em tornar as terras indígenas bens da União foi exatamente efetivar sua preservação, fazendo delas bens inalienáveis e indisponíveis e imprescritíveis os direitos sobre as mesmas (SILVA, p. 858). Ainda, a posse permanente da comunidade indígena foi positivada pelo constituinte originário.

A Constituição Federal fala em terras tradicionalmente ocupadas.

A base do conceito acha-se no art. 231, § 1º, fundado em quatro condições, todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha, a saber: 1) serem por eles habitadas em caráter permanente; 2) serem por eles utilizadas para suas atividades produtivas; 3) serem imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; 4) serem necessárias à sua reprodução física e cultural, tudo segundo seus usos, costumes e tradições, de sorte que não se vai tentar definir o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de capitalista ou socialista, a visão do bem-estar no nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles, da cultura deles (SILVA, p. 859)

A proteção das terras indígenas, essencialmente onde as comunidades podem desenvolver seus costumes, foi consolidada com a Convenção n.º 169 da OIT, ao lograr contemplar as distintas situações sociais referidas às regiões de colonização antiga (ALMEIDA, p. 14). A importância do diploma também foi reconhecida por OLIVEIRA FILHO (p. 133).

Deve-se ressaltar que, não obstante o grau protetivo conferido às comunidades tradicionais pela Convenção n. 169, “(...) qualquer forma de reconhecimento não se restringe à mera formalização dos Direitos, mas a atos contínuos que vinculam o Estado e terceiros à sua consecução (...)” (SHIRAISHI NETO, p. 132). Portanto, não apenas as possibilidades trazidas pela Convenção nº. 169, mas também suas limitações, bem como sua aplicação pelos países e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, devem ser analisadas. É o que se fará a seguir.

3 - A Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho - Limites

A Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais tem sua aplicação restringida por interpretações diversas daquela que consideramos a mais satisfatória.

A primeira afirma que a Convenção não proscreve a exploração de minerais do solo e subsolo de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, o que permite à pessoa natura ou jurídica proprietária de tais recursos a exploração mais conveniente, desde que ouvidas as tribos. A interpretação confere à consulta caráter de oitiva. O dissenso seria contornado com a exploração local, desde que houvesse indenização pelos danos ocasionados, previstos aprioristicamente (art. 15, 2).

A segunda crítica versa sobre a definição de quais seriam as comunidades tribais. A existência de ferramentas, alimentos, modos de produção tipicamente modernos impediria o reconhecimento de determinada comunidade como “tradicional”. Exigir-se-ia dos quilombos a manutenção do modo de vida registrado no passado colonial, bem como a permanência de tribos indígenas em terras bem determinadas, ignoradas as tribos nômades. Curiosamente, esta mesma crítica que exige “pureza” dos costumes tribais não explica o fato de a própria Convenção permitir a aplicação de lei penal estatal sobre os membros da comunidade, embora plenamente afastados da “lógica moderna” (art. 10).

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Outros paradigmas apontam defeitos sobre a própria aplicabilidade dos direitos humanos. A interpretação marxiana afirma que era construção burguesa, desconhecedora das necessidades dos empobrecidos; quando muito, mera concessão de alguns interesses. A concepção elitista dos direitos humanos, por sua vez, afirma que não são aplicáveis direitos concebidos dentro da lógica estatal a povos cujo desenvolvimento não atingiu o grau de sofisticação requerido.

4 – Aplicação da Convenção n.º 169 da OIT pelos Tribunais

Christian COURTIS, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Buenos Aires, estudou as diferentes interpretações e a eficácia da Convenção n. º 169 da OIT. Revela que o subcontinente com a maior quantidade de ratificações da Convenção n.º 169 foi a América Latina, com 14 adesões até 2009, dado relevante se levamos em consideração que a população indígena em muitos desses países é majoritária (p. 53). Porém, há casos de países, como Belize, os quais, embora não sejam signatários da Convenção, invocam-na como doutrina.

O professor ressalta que vários países, tais quais Equador e Guatemala, concederam dignidade constitucional à Convenção, de modo que está acima das leis ordinárias na hierarquia normativa (p. 58).

Quanto à consulta prévia, prevista no art. 6º da Convenção, a Corte Constitucional da Colômbia invalidou atos normativos porquanto afetavam direitos indígenas sem a devida consulta.

Na Argentina, a situação de extrema miséria de comunidade tradicional do Chaco ensejou demanda apresentada pelo Defensor do Povo para que o País auxiliasse, materialmente, aquela tribo, nos termos da Convenção n.º 169 (p. 70). No mesmo sentido, a Corte Suprema da Costa Rica proferiu sentença à comunidade indígena exigindo que o Estado reparasse ponte sobre o rio Rincón que lhes é essencial para o desenvolvimento de suas atividades.

É digna de elogios sentença do juizado de paz do Município de San Luis, Guatemala . Nela, o crime de “tráfico de tesouros nacionais” deixou de ser aplicado a indígena maia que trasladava artefatos históricos de uma comunidade a outra. Com isso, a Justiça guatemalteca afastou a aplicação de pena tipificada em ordenamento jurídico estranho aos costumes do povo tradicional, entendendo que a lógica penalista apenas poderia punir o tráfico com fins comerciais, ao passo que os maias realizavam o transporte com fins cerimoniais e ritualísticos.

Por outro lado, é criticável a Sentença Constitucional 295/03, proferida pelo Tribunal Constitucional da Bolívia. Um casal de indígenas, moradores de comunidade tradicional, seria expulso pelos próprios pares por faltar com pagamentos de água e luz. O Tribunal decidiu que a sanção comunitária não poderia ocorrer, por atacar direitos fundamentais do ordenamento estatal. É verdade que a Convenção n.º 169 da OIT permite tal análise, mas trata-se de equívoco do diploma: fazer parte de comunidade tradicional significa ser aceito pelos seus membros. Se a comunidade opta pela expulsão, o Estado boliviano deveria respeitar as noções de moralidade daquele povo.

No âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Convenção n.º 169 já foi empregada como referencial de interpretação acerca do direito de propriedade em situações que envolvem reivindicação sobre terras ancestrais de comunidades indígenas que foram objeto de ocupação por proprietários privados. A Corte entendeu que, ao se procurar estabelecer os limites do direito de propriedade, deve ser utilizada a Convenção com vistas à restituição, às comunidades, de suas terras ancestrais.

Bibliografia

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berna de. Terras Tradicionalmente Ocupadas: Processos de Territorialização e Movimentos Sociais. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. V. 6. N. 1.

COURTIS, Christian. Anotações sobre a Aplicação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas por Tribunais da América Latina. [online]. 2009, vol. 6, n.10, pp.52-81.

NOHARA, Irene. Direito Administrativo. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2013, 922p.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Cidadania e Globalização: Povos Indígenas e Agências Multilaterais. Horizontes Antropológicos. [online]. 2000, vol. 6, n.14, pp.125-141.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 476p.

SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, 386p.

SHIRAISHI NETO, Joaquim. O direito das minorias: passagem do “invisível” real para o “visível” formal? Curitiba, 2004. 237p. Doutorado (Doutorado em Relações Sociais) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, 928p.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998, 211p.

SÜSSEKIND, Arnaldo Lopes. Convenções da OIT. 2. ed. São Paulo: LTr, 1998, 623p.

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